Cais do Mercado em 1885 (por Benedito Calixto) - Museu de Arte de São Paulo, Brasil

Ao discorrer sobre personagens, costumes e ambientes do século XIX, Dr. Plinio analisa a monarquia no Brasil através de pitorescos fatos que dão extraordinário sabor ao estudo da História.

Todos devem ter visto em álbuns e revistas, fotografias de gente vestida com as modas de outrora. Modas muito diferentes, desde as da Idade Média até as do século XIX, ou mesmo as de nosso século. As modas variaram enormemente.

Os homens se foram modificando ao sabor da Revolução

Com as modas, diversificaram também as casas: o arranjo, a apresentação externa e interna das residências, os móveis e outros objetos. Tudo variou.

Mas o elemento principal que variou não foi nada disso, foi o ser humano. Os homens se foram modificando ao sabor da Revolução muito mais do que da Contra-Revolução, porque esta se apresentava muitas vezes indecisa e sem conhecer ainda as manhas da Revolução; e por causa disso sempre recuando um tanto. Mas, enfim, oferecia certa resistência e, em alguns casos concretos, admirável resistência. E isso segurava um pouco a onda.

Em cada geração que vinha, a Revolução avançava mais; a Contra-Revolução segurava um pouco a Revolução, mas ia recuando. E assim, cada geração foi ficando mais revolucionária.

Então, podemos imaginar, por exemplo, cem anos atrás — portanto em 1885 — como eram os homens, como se vestiam, se alimentavam, quais eram as ideias que eles tinham, como conversavam, no Brasil, em concreto.

Como era o Brasil de 1885?

Não tive tempo de consultar livros que dessem os pormenores. É possível que algum lapso histórico ocorra. Mas, de um modo geral, era assim:

No Brasil de 1885 havia duas instituições que morreram. Duas instituições muito diversas, uma das quais quase morreu por ter matado a outra. Eram elas: a monarquia e a escravatura.

O que dizer a respeito dos escravos, dos senhores de engenho, do monarca e de sua corte? Como tudo isso viveu no Brasil, concretamente, em 1885?

Não se trata de uma História do Brasil; é uma história dos indivíduos, dos particulares dentro deste País.

Vamos analisar um pouquinho como era a monarquia no Brasil, mas através de fatinhos.

As três formas de governo, suas vantagens e desvantagens

Antes, porém, poderíamos nos perguntar qual seria a melhor forma de governo: monarquia, aristocracia ou democracia.

Com muita sabedoria, São Tomás diz que, propriamente, depende do país. Por vezes, uma forma de governo serve para uma nação e não para outra. Cada país tem as suas exigências, suas necessidades.

O modo de pilotar um avião depende da marca da aeronave e também de quem pilota, do seu temperamento, do seu feitio. Digamos que um país seja o avião e o monarca o piloto; depende da relação entre o rei e o país para que este ande bem. Então, a monarquia é uma forma de governo que, quando essa relação se estabelece bem, pode dar um grande resultado. Qual é a vantagem? É a unidade do comando; um manda e os outros obedecem.

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Retrato equestre de Dom João VI (coleção particular)

Um exército com dois generais mandando juntos, ainda que sejam dois grandes generais, não funciona. Os dois maiores maestros de orquestra do mundo, regendo juntos a mesma orquestra, fracassam.

Percebe-se, através desses dois pequenos exemplos, a vantagem que apresenta a monarquia.

A aristocracia é o governo de uma elite. É um escol, são os mais capazes, os que tiveram uma melhor educação, uma melhor instrução, possuem mais inteligência, os que foram formados num ambiente que os elevou mais. Esses são mais capazes de governar por vários aspectos. E o governo dos melhores — esta é a aristocracia — tem muita vantagem que a monarquia não possui. Porque quando um rei desanda, o país vai água abaixo… É muito bonito dizer que o piloto dá unidade ao comando, mas quando dá a louca no piloto o que acontece?

Então, a aristocracia tem a vantagem de que, se der a louca em um, os outros compensam, abafam, dirigem. Isso é muito bom.

Mas pode acontecer que os membros de uma aristocracia briguem entre si. Seria como um estado-maior de um exército cujos membros brigassem entre si; sairia encrenca! De maneira que a aristocracia tem vantagens quando ela presta, e não apresenta vantagens quando não presta. Pelo contrário, pode ser uma forma perigosa de governo.

A respeito da democracia — o mando de todos — eu quase diria a mesma coisa: quando todos prestam dá certo…

Quer dizer, com uma matéria-prima ruim, com uma farinha ordinária não se faz um bolo bom, por mais que a receita seja ótima.

São Tomás de Aquino, tomando isso tudo em consideração, aconselha que cada povo escolha livremente sua forma de governo, mas o ideal seria um regime que acumulasse as três formas: monarquia, aristocracia e democracia.

Então, o imperador ou o rei detém uma parcela do poder; outra parcela, a aristocracia; e outra parte do mando está com o povo.

Esta é uma situação que, segundo São Tomás, dá maiores possibilidades de um governo se fixar. Porém, isso não é mecânico, não quer dizer que deve ser para todos os países. É em tese, teoricamente. Na prática, vemos países florescerem e chegarem ao mais alto progresso com uma dessas formas de governo, e não com as três compostas.

Fugindo de Napoleão, Dom João VI viaja para o Brasil

Por ocasião da separação entre Brasil e Portugal, o Rei de Portugal era D. João VI, um homem muito esperto que viera para cá fugido de Napoleão I. Quando ele soube que as tropas de Napoleão tinham invadido a Espanha, ele achou melhor deixar os espanhóis se defenderem como fosse possível, o que levava algum tempo. Então ele organizou a sua vinda para o Brasil, que ficava longe das garras de Napoleão completamente.

Para essa viagem, D. João VI mandou trazer todos os seus objetos e os de sua família: arquivos, móveis preciosos, quadros, roupas, constituindo uma esquadra colossal. Contam os historiadores que, ainda na hora da esquadra partir, com o povo assistindo à partida do rei, vem um homem gritando:

— Para! Para!

Isso é muito português e muito brasileiro: uma coisa que acontece à última hora…

Para a esquadra… Por quê? Tinham esquecido no palácio real uma escrivaninha preciosa… Então, vinham trazendo o móvel para instalar no navio…

Thomas Gun (CC. 3.0)
Embarque de D. João VI (em destaque) para o Brasil – Museu Nacional de Belas Artes, Rio de Janeiro, Brasil

Tetraktys (CC. 3.0)

D. João VI era louco por sardinhas e tinha ouvido dizer que no Brasil não havia este tipo de peixe. E como ele queria comer sardinhas no Brasil, vinha trazendo, num dos navios da esquadra, um reservatório com água salgada para as sardinhas serem mantidas vivas, pois ele queria colocá-las no Brasil.

E aconteceu com as sardinhas o mesmo que com o rei e com os portugueses, quando veem para o Brasil: deram-se extraordinariamente bem… Hoje há sardinhas em quantidade pelo litoral brasileiro, todas descendentes das sardinhas portuguesas…

Afinal, a esquadra pôs-se a caminho, veio do Tejo para cá.

Cenas que se passaram nas bonitas caravelas

Imaginem aqueles navios, caravelas bonitas com aquelas velas nas quais estavam pintadas ou a Cruz de Cristo, ou as armas do Rei de Portugal. Passeando no tombadilho, fidalgos e fidalgas de cabeleiras empoadas, vestidos de seda; as senhoras com saias balão, os homens, trajando roupas ornadas com botões de brilhante, de esmeralda, usando chapéus de três bicos, cheios de plumas.

Reprodução
Chegada da esquadra de D. João VI ao Rio de Janeiro Museu Histórico Nacional, Rio de Janeiro, Brasil

Devia ser muito bonito ver de longe passar a esquadra de D. João VI! Em certo momento percebe-se o Rei que aparece, sempre com uma condecoração e uma faixa de viés, trazendo pela mão a Rainha, e os fidalgos fazem vênia. Soa o Ângelus, por exemplo, todos param, vem um capelão que reza, abençoa toda a tripulação, inclusive os marinheiros. São cenas a que todos nós gostaríamos muito de assistir.

Entretanto, vejam como eram as cenas da vida de outrora e como se compunha o lado humano desse protocolo todo. Durante a viagem, um dos flagelos era que esses navios todos, levando mercadorias nos porões, não tinham os desinfetantes de hoje. E a mercadoria corria o risco de mofar. E desse mofo surgia uma proliferação de insetos, os quais se tornavam tão terríveis que todas as senhoras precisaram raspar o cabelo, e ficar calvas durante algum tempo, para os insetos não atormentarem demais a vida delas.

Por fim, chegam às proximidades da Bahia. D. João VI, sempre com aquela ideia de que podiam fazer uma “Revolução Francesa” nas terras dele, vinha para cá preocupado: o que iria encontrar aqui?

Chegada a Salvador e viagem ao Rio de Janeiro

Mal as naus reais entram na baía, uma explosão de pólvora, um tiroteio medonho de todos os lados… Ele ficou apavorado! Mandou parar os navios e enviou um barquinho com dois ou três fidalgos para saber o que havia. Encontraram o contrário do que o monarca receava: estava preparada uma grande festa! Com salvas de canhões, o Brasil recebia o seu próprio Rei!

No cais, estava tudo organizado: o Governador-Geral, as autoridades militares, o Bispo da Bahia, que era o Primaz do Brasil, acompanhado de todo o cabido e o restante do clero, com a relíquia do Santo Lenho diante da qual o Rei se ajoelharia logo que chegasse…

Assim que o monarca pusesse o pé em terra firme, todos os sinos da cidade de Salvador começariam a repicar; e uma procissão — meio civil, meio militar — o acompanharia até o seu palácio.

Quando o barquinho voltou e os emissários transmitiram estas notícias para o Rei, ele ficou muito sossegado e aportou.

Em meio ao repicar dos sinos, o monarca pisa em terra, ajoelha-se diante do Santo Lenho e recebe a bênção do Bispo. Canta-se o Te Deum, na presença do povo encantado por ver o Rei presente. Afinal, nunca um rei tinha pisado o solo em nenhuma das três Américas! E o primeiro foi o Rei de Portugal, Brasil e Algarves… Era uma grande alegria!

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Aclamação de Dom João VI no Rio de Janeiro Biblioteca Mário de Andrade, São Paulo, Brasil

Depois de alguns dias de sossego na Bahia, D. João VI retomou a esquadra e veio para o Rio de Janeiro, onde estava estabelecida a sede do Governo-Geral do Brasil.

No Rio de Janeiro a festa foi ainda maior. Até hoje se mostra no cais do Rio o lugar onde o Rei D. João VI desceu. Existe ainda o Palácio onde ele morou, próximo à antiga Catedral.

O Brasil era governado por um Vice-Rei, o Conde dos Arcos, pertencente à maior nobreza portuguesa. Ele morava num prédio enorme, transformado, após a Proclamação da República, em agência central dos correios e telégrafos. Havia ali uma espécie de ponte coberta que ligava o palácio do Vice-Rei à Catedral. Junto ao altar-mor havia um trono para o Rei, de onde ele assistia à Missa.

Banhos de mar, siris e caranguejos

D. João VI era um rei bem ao gosto dos brasileiros: pomposo, autêntico, legítimo, mas, ao mesmo tempo, com uns lados muito familiares. Tratava as pessoas muito bem, com muita liberalidade, bondade e gentileza. E ele mesmo simples ou quase simplório no modo de viver.

Por exemplo: ele tinha uma doença, coitado, por onde se lhe inchavam as pernas, e os médicos aqui da Colônia recomendaram-lhe tomar banho de mar.

Naquele tempo nem se cogitava na hipótese de um homem da categoria dele banhar-se em público, absolutamente nunca! Mas ele precisava tomar o banho de mar. A solução era ir para praias inteiramente desertas, o que não era difícil encontrar; por exemplo, as praias do Flamengo ou do Botafogo, que estão no coração do Rio de hoje, eram desabitadas naquela época.

Arranjavam, então, uma barraca onde o rei trocava de roupa, vestindo uma espécie de camisolão. Interditavam a praia, para garantir que ninguém passasse por lá enquanto o monarca estivesse tomando banho. E ele entrava no mar assim. Portanto, uma coisa digna e bem arranjada, própria a um homem que tem pudor.

Contudo, esperto e prudente como era, D. João VI tinha um medo enorme de siris e caranguejos… Elaboraram, então, um sistema que consistia em estacas de madeira das quais pendiam cordas e uma roldana. O Rei entrava numa grande cesta de vime, que era pendurada nas cordas e erguida o suficiente para que a água do mar pudesse entrar pelos lados, mas não por cima. Assim, tudo quanto era siri e caranguejo ficava de fora, e o monarca podia tomar seu banho sossegado…

Quando ele estava farto de se banhar, dava uma ordem e levavam-no de novo para a barraca, onde o ajudavam a secar-se e vestir-se. D. João VI vestia, então, sua roupa de gala, cabeleira empoada, chapéu de três bicos, e voltava para o seu palácio dentro de uma carruagem dourada, com cristais, puxada por dois, quatro ou seis cavalos, encimada por lacaios e corneteiro.

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Dona Carlota Joaquina Palácio Nacional de Queluz, Portugal

Havia em tudo isso um misto de aspecto popular e régio, muito do agrado do modo de ser dos brasileiros. Ninguém se lembrava de caçoar do Rei por causa disso. Ao contrário, era um pobre doente que tinha o direito de se tratar assim, pois uma mordida de siri ou de caranguejo em suas pernas inchadas poderia complicar a situação.

Suponho que isto dê certo sabor do mundo de outrora, o que me leva a contar mais alguns casos…

Dona Carlota Joaquina

Quando veio ao Brasil, D. João VI era Príncipe Regente, pois sua mãe, Dona Maria I, Rainha de Portugal — aliás, pessoa muito boa e muito católica — ficara louca. Ele era casado com uma princesa espanhola, Dona Carlota Joaquina, senhora de temperamento muito difícil, uma “pimenta malagueta”.

Ela quis ficar rainha de todas as colônias espanholas da América do Sul, e mandou emissários para tomarem conta do Uruguai e da Argentina… Criou uma diplomacia paralela à do marido, porque este não queria saber dessas aventuras. D. João VI queria ficar no Brasil, já enorme para ele dominar, e não pretendia dominar mais a América espanhola inteira. Era uma doidice! Ela fazia e, então, reclamava com ele.

D. João VI era um homem bonachão e de muito bom temperamento e bom caráter, que deixava vir a tempestade e depois se adaptava diante dela. Era um político… Então dizia: “Deixe-a fazer, porque não dará em nada…”

Ela mexeu e remexeu, e não deu em nada mesmo…

Era a arte do drible; ele driblava na perfeição.

”Os bêbados já se casaram?”

O monarca era, ademais, muito sensato. Aquela era a época das peças de teatro românticas, que representavam quase sempre histórias de casais em que um moço queria casar com uma moça, mas não podiam por uma razão qualquer — ou a família não queria, ou eram de religiões diferentes, ou de classes sociais diversas, ou de países inimigos — e, então, ficavam amando-se à distância. No fim do romance, em geral, ou se suicidavam, porque não podiam se casar, ou se casavam.

Embora D. João VI tenha elevado o Brasil à condição de Reino Unido de Portugal, o atraso era ainda fenomenal! Assim, vinham para cá umas companhias de teatro muito ordinárias. Mas sendo o teatro a distração que se tinha naquele tempo, o Rei possuía uma frisa reservada; era a primeira, bem em frente do palco, no melhor lugar.

Ele ia, sentava-se lá e começava a representação teatral, mas ele dormia durante a peça…

De vez em quando ele acordava e, como achava aquelas peças todas malucas, sem bom senso nenhum, perguntava para algum ajudante de ordens ou cortesão:

— Os bêbados já se casaram?

— Não Majestade, isso ainda leva tempo até lá…

Ele não se incomodava, e caía no sono novamente.

A certa altura, havia um intervalo. Como ele era muito gastrônomo, mandava vir do palácio, numa bandeja de prata, um frango frito com farofa, e ele comia.

Em geral, os professores não contam esses pormenores que dão extraordinário sabor à História!

Quando, afinal, terminava de dormir, acabava o frango, os bêbedos se casavam, etc., o monarca voltava para casa. Mas sempre muito bondoso, muito paternal, com um aspecto muito digno, envolto em um grande aparato, com uma grande corte, muito sério e levando as coisas direito. Ele sabia administrar bem, e não lhe faltava certo senso humorístico.

(Continua no próximo número)

(Extraído de conferência de 26/10/1985)

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