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A procura do absoluto e o perfeito convívio – II

Um dos principais fatores de desequilíbrio nas pessoas está na ideia de ser impossível um perfeito relacionamento nesta Terra. Elevando-se das considerações filosóficas às teológicas, Dr. Plinio demonstra não ser uma utopia o convívio ideal.

Tomadas duas almas inteiramente dadas a Nossa Senhora que considerem assim as coisas temporais, qual é o píncaro do convívio que se pode estabelecer entre elas?

Santo Agostinho e Santa Mônica: um relacionamento que culmina no êxtase

Tal convívio não pode ser visto apenas como um relacionamento doutrinário, baseado nas mesmas convicções. O relacionamento chegou ao auge pelo fato de as convicções realmente serem as mesmas e ambas as almas amarem coisas metafísicas, transesféricas, sobrenaturais. Há uma espécie de harmonia que é mais excelente de um para outro, do que em todas as outras coisas terrenas que estão em volta.

O relacionamento de Santo Agostinho com Santa Mônica no colóquio de Óstia é um exemplo perfeito disso e, aliás, muito frisante.

Sendo assim, então, podemos nos perguntar de que formas de extensão esse relacionamento é capaz. Por exemplo, qual era o grau e o modo de relacionamento entre Santo Agostinho com Santa Mônica no colóquio de Óstia? Podemos definir assim: É um filho que, encostado no beiral de uma janela, conversava com a mãe numa hospedaria de uma cidadezinha, Óstia, olhando um jardinzinho interior da hospedaria. Está acabado, não tem mais nada que dizer? Mas quantos filhos se encostam com a mãe ali e não se dá o mesmo relacionamento! O que havia? Ele não define, mas ele descreve, e é um relacionamento que chega ao êxtase.

Gustavo Kralj
Santa Mônica com Santo Agostinho, menino Museu Amadeo Lia, La Spezia, Itália

Quer dizer, onde a graça está muito presente a transparência de uma dessas almas para a outra e a consonância de uma com a outra aumentam ainda mais e dão numa plenitude difícil de conceber. Santo Agostinho e Santa Mônica ali constituíram em grau muito alto o “ser” um em Nosso Senhor Jesus Cristo. Toda aquela descrição grandiosa acaba desfechando na “intro-vazão” respectiva em Nosso Senhor. É onde chega.

A Civilização do Amor a Deus, prefigura do Céu

O propriamente inefável é imaginar como isso era em Nossa Senhora com Nosso Senhor, porque ali se criou o analogado primário1 perfeito de todos os relacionamentos, e tudo quanto é relacionamento desde então deveria conter isso.

Se tivéssemos pessoas capazes de compreender e querer esse padrão, criar-se-ia propriamente o mais alto teor de felicidade que se possa ter na Terra.

Uma civilização católica, não utópica, mas perfeita, seria composta de um ambiente onde esse relacionamento fosse frequentíssimo e constituísse o tesouro essencial da sociedade humana. De maneira tal que todos os outros problemas da vida humana fossem embebidos deste princípio primordial. E, enquanto embebidos por isso, tivessem uma doçura e uma afabilidade, uma espiritualidade impossível de descrever, a não ser imaginando, em graus muito diversos, colóquios ou relações que preparassem, para que não fosse inteiramente excepcional um relacionamento patrão-empregado, ou pai-filho, ou amigo-amigo, esposo-esposa, que desfechasse em cenas à maneira das transcorridas em Óstia.

Os píncaros seriam para esse lado. Então, envolvendo o indivíduo inteiro na sua personalidade, no seu modo de ser. E é claro que isto compreenderia graus, mas a sinfonia que constituiriam esses inter-relacionamentos conforme as famílias, as cidades, as regiões, as nações, seria uma sinfonia incomparável. E viajar seria para conhecer essas diferenças.

Isto seria propriamente a Civilização do Amor a Deus, uma prefigura do Céu, porque o Céu é isso.

Santo Agostinho tem esta frase em relação a Deus: “Fizeste-nos para Ti e inquieto está nosso coração, enquanto não repousa em Ti.”2 É uma frase linda e quão verdadeira! Mas, esse repouso não pode ser considerado exclusivamente o da alma no meio dos pagãos e dos neopagãos, e pensando em Deus. É magnífico, mas a ordem temporal católica ideal, não utópica, deve oferecer isso, tanto quanto a miséria humana o permita.

Carlos Aguirre
“Vida da Sagrada Família” (detalhe) – Santuário de Loreto, Itália

A ruptura com a ideia de um convívio perfeito é a fonte de todos os desequilíbrios

O fato de a educação não formar e não preservar a ideia para isso, rompe nas pessoas um dos padrões mais augustos e primeiros da inocência. Porque elas se desencantam com a possibilidade de verem, nesta Terra, essa realidade. E isso, numa zona hipersensível da alma, é um golpe axiológico tão brutal e tão profundo, que realmente não tem conserto sem uma graça especial.

Uma vez atingida aí, a pessoa se torna uma espécie de caverna de onde todos os maus ventos saem, porque também ela começa a se vingar, ficar ressentida, sentir-se recusada neste lado bom dela, que os outros não querem ver. Porque houve uma ruptura da ideia de que as coisas deveriam e poderiam ser assim. Quem crê que elas devem e podem ser assim, rumando obstinadamente nessa direção, custe o que custar, antecipa o dia em que elas serão assim.

Mesmo na vida em meio aos “chacais” de hoje, isso põe uma forma de doçura, de serenidade, de felicidade que é o único jeito de resistir a essa vida, sem cair numa espécie de desequilíbrio.

A meu ver, a aceitação dessa situação, sem este pressuposto que estou dando, conduz a uma espécie de desequilíbrio ou a um aviltamento completo em que o sujeito fica meio louco na ponta da vileza. Ou, então, se ele se mantém fiel a esse princípio da procura do absoluto, há um desequilíbrio pelo fato de não ter a explicação sobre como ele é feito para algo e não encontra reciprocidade.

Um profeta que espera e antecipa o Reino de Maria

A atitude equilibrada seria: “Eu me manterei assim sempre que isto corresponda ao bom senso, ao cabível. Manter-me-ei assim, obstinadamente, diante de todas as decepções, de todas as ruínas, e ainda quando parecer não ser nada, serei assim, pois sei que aproximo o dia em que as coisas serão assim.” Esta é uma maneira de ser um profeta que espera e antecipa o Reino de Maria.

Uma pergunta que me é muito cara, e por isso a formulo, é a seguinte: O Segredo de Maria3 não será uma graça por onde o relacionamento dos homens volte a esse ponto com auxílios naturais e sobrenaturais de tal ordem que levem isso a uma excelência que custamos a imaginar? E que relação tem com a troca de vontades? Aqui, para mim está o fundo da questão.

Acontece que isso tem certa aparência de fundamento no seguinte: as relações de Nossa Senhora com Nosso Senhor Jesus Cristo eram relações paradigmaticamente assim. A mais não poder!

Rodrigo Aguiar
A Sagrada Família – Santuário do Caraça, Minas Gerais, Brasil

Também as relações d’Ela com as outras Pessoas da Santíssima Trindade só podiam ser assim, de modo inefável! O que é ser Esposa do Espírito Santo? Filha do Padre Eterno? Mas Filha como ninguém foi filha de ninguém!

E vamos abrir o sacrário: o relacionamento entre as naturezas humana e divina, na Pessoa de Nosso Senhor Jesus Cristo, não teria algo a nos dizer dentro desse mistério? Ou seja, Deus de tal maneira relacionando-Se com o homem e no homem com todas as criaturas, já se entende o que quer dizer filosoficamente, teologicamente, mas não há algo de vivo aqui, muito interessante para se considerar dentro desta linha que acabei de falar?

Uma objeção: “Você está pintando um mundo de utopia, ao conceber uma existência sem a cruz, porque essas almas não sofrem. Ora, a Cruz de Nosso Senhor Jesus Cristo é indispensável.”

Eu digo: Adoramus te Christe et benedicimus tibi, quia per sanctam crucem tuam redimisti mundo4. Eu compreendo e respeito a objeção, mas não concordo com ela, porque é evidente que Nossa Senhora saberá sempre fazer essas coisas deixando a cruz. Ela não nos roubaria os atos de generosidade que multiplicam o amor pelo amor. Como será não sabemos.

Entre nós, cada qual espera um relacionamento perfeito na ponta do qual estaria algo assim. Espera confusamente, mas não utopicamente. Começa a entrar o disparate, os menosprezos, a ciranda das loucuras e das comparações.

Qual seria a ação do demônio aí dentro? No paraíso ele entrou, para quê? Isto não é objeto de nossa cogitação no momento. Agora devemos, contra tanta utopia má, saber levantar o ideal bom.

(Extraído de conferência de 11/3/1982)

1) Termo utilizado em Filosofia, significando matriz, padrão.

2) Confissões I, 1.

3) Expressão utilizada por São Luís Maria Grignion de Montfort. Ver Revista Dr. Plinio n. 156, p. 25-26.

4) Do latim: Nós Vos adoramos, ó Cristo, e Vos bendizemos, porque por vossa Santa Cruz redimistes o mundo.

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