Ao promover a despersonalização, a Revolução visa instaurar uma organização social onde os indivíduos fiquem reduzidos a números, criando assim condições desfavoráveis à santificação.
Em Versailles, há uma galeria chamada “Galeria dos Espelhos”. O rei e a rainha ficavam numa ponta dessa longa galeria, e a jovem nobre que seria admitida na sociedade se postava na outra extremidade.
Ingresso de uma jovem nobre na sociedade francesa
Pessoas da corte, vestidas em trajes de grande gala, ocupavam arquibancadas de um lado e de outro. A moça entrava, o alabardeiro batia com a alabarda no chão e anunciava: “Mademoiselle tal” e ela fazia uma primeira reverência; depois — todo mundo olhando e criticando a reverência — caminhava até o meio do salão, onde fazia a segunda reverência; chegava junto ao rei, terceira reverência. Então o rei e a rainha diziam-lhe palavras amáveis, às quais ela devia responder de um modo fino e distinto.
Pensam que está pronto? O mais difícil vai começar. Para não dar as costas aos soberanos, ela deveria voltar andando de costas ao longo de toda a galeria, com elegância, refazer as três reverências nos mesmos lugares e sair.
A vida era tão árdua para os nobres, que Santa Teresa de Jesus saiu uma ocasião do convento, e passou uma temporada numa casa da Duquesa de Lacerda, na Espanha; e ela escreveu que preferia o Carmelo, porque era vida mais fácil e mais cômoda do que a vida de etiqueta que se levava na casa da Duquesa de Lacerda.
Cortesia: o predicado por excelência da nobreza
Essas maneiras beneficiavam o nobre, porque ele se tornava mais elevado, alteava o espírito. E melhoravam a sociedade inteira, porque todo mundo começava a imitar isto, e assim se modelava toda a sociedade. Era uma vida dura. Enquanto que a vida do burguês era muito mais fácil: gordalhona, desembaraçada, tranquila, sacolão de dinheiro, despreocupação com o futuro.
Tenho a impressão que se eu fosse fazer aqui um plebiscito: Quem nessas condições quereria ser nobre, quem desejaria ser burguês? Não sei se eu me engano, mas um certo número opinaria por ser burguês, sem dúvida. Outra parte do auditório opinaria por ser nobre, provavelmente. E a grande maioria ficaria na indecisão. De tal maneira a condição de nobre exigia coisas difíceis.
Então, a ideia era de fazer da cortesia o predicado próprio por excelência da nobreza. A nobreza é a classe que frequenta a corte. Cortesia é o modo de ser daqueles que frequentam a corte. É o lugar por excelência das personalidades altamente definidas, altamente buriladas como obras de arte, que se tratam de um modo magnífico e que elaboraram o trato mais fino que houve na sociedade, que foi o trato social antes da Revolução Francesa.
E se me perguntarem: “Mas esta gente tinha virtude?” A resposta é: Alguns tinham, outros não tinham. Mas a cortesia é uma virtude. Isso é preciso notar. Então houve nessas cortes desse tempo muitas pessoas de alta virtude.
Por exemplo, Luís XVI teve uma irmã cuja heroicidade de virtudes foi reconhecida pela Igreja — isso os livros de História não contam —, a Venerável Maria Clotilde de Bourbon. Ela era casada com o Duque de Sabóia. Luís XV teve uma filha carmelita e que morreu em odor de santidade, Madame Louise de France, que deixou tudo para ir ser lavadeira no Carmelo. Luís XVI teve outra irmã, cujo processo de canonização está em andamento: Madame Elizabeth de France.
Ao lado disso, havia vícios repugnantes, todos os defeitos que a criatura humana possui quando não tem Religião. Quando tem Religião, pode santificar-se; quando não tem, não pode. E na corte entrou muita decadência, muito ateísmo, mas a cortesia era um resto dos antigos tempos. Era um traço da antiga civilização cristã. Esta era a definição, a imagem da cortesia. É o que se chama la douceur de vivre — a doçura de viver. Talleyrand1 dizia que quem não viveu antes da Revolução Francesa não conheceu a doçura de viver. A vida era doce antes da Revolução Francesa.
A Revolução quer despersonalizar e acabar com a cortesia
Virando a página, há um estampido e entra a Revolução Francesa. E com ela começa veladamente o panteísmo a se insinuar. E o panteísmo quer uma coisa que é o oposto. Como ele deseja despersonalizar os indivíduos, ele quer uma organização social onde os indivíduos fiquem reduzidos a números.
Por quê? Porque o número, a quantidade, é próprio da matéria. A matéria é inerte, não pensa. Tomem um rebanho de gado. O que é cada peça de gado no rebanho? É um número.
Peguem uma estufa com plantas. O que é cada planta na estufa? É um número. Tomem um conjunto de pedras. O que é cada pedra do conjunto? É um número. Considerem um conjunto de homens. Cada um é apenas um número? Não. Entrou a alma humana, entrou a eternidade. É a pessoa, uma coisa completamente diferente.
Então, começa a Revolução a promover a massificação, quer dizer, um estilo de vida no qual os homens cada vez mais vivam em multidões, em grandes cidades, em grandes aglomerados, onde eles não se conhecem ou quase não se conhecem uns aos outros. E quando se conhecem, levam uma vida com tanto trabalho e tão apertada, que não têm tempo de conversar uns com os outros. Uma organização que vai cada vez tomando menos em consideração as características de cada um, para igualar todos e fazer com que tenham tanto quanto possível as mesmas caras, as mesmas casas, os mesmos gostos, os mesmos hábitos, os mesmos modos de sentir e de pensar, e que cada um fique tanto quanto possível reduzido a um grão de areia; e em que as relações entre uma pessoa e outra não sejam mais pessoais, de uma pessoa que conhece outra, que estima, gosta, detesta, mas relações anônimas: “Este tipo que se encontra a meu lado é como um passageiro de ônibus que está ao meu lado.” A intimidade não é senão como a do passageiro de ônibus com quem encontramos muitas vezes.
A Revolução deseja, instaurar um mundo de anonimato para preparar as almas a não terem personalidade e desaparecerem quando morrerem.
Personalidade, personificação não existem. Cada um é um número para o outro. Para realizar isto era preciso fazer a cortesia morrer. Porque a cortesia é o contrário, nasce da harmonia das coisas diferentes. A Revolução, acabando com as diferenças, extingue a cortesia e há apenas essa correção fria que se tem com um companheiro de viagem: está ao lado, se ele vai morrer, eu o ajudo, se está aflito, digo uma palavrinha; mas o ideal é o companheiro mudo. Abro um livro, ele olha a paisagem e o veículo vai se movendo. Sobretudo o que eu quero de meu companheiro de ônibus é que ele não me amole. Era melhor que o lugar estivesse vazio para eu estar inteiro na poltrona. Ele é o importuno, não é um companheiro. O ônibus vazio seria a delícia; eu me tornaria dono de tudo.
E implantar a civilização do panteísmo
Quer dizer, o outro não é um irmão, mas um concorrente. Em face do Estado o que a pessoa é? Um contribuinte. Cada um é um número. E já existem especialistas que pensam em fazer um recenseamento numerado de todas as pessoas, de maneira que, perante o país, o nome não tem importância, é um número; um indivíduo é “o indivíduo número tanto” do país.
Percebe-se que de repente o nome acaba desaparecendo no trato pessoal e entra o número, e com isso a cortesia morre, mas também as personalidades morrem, tudo vira massa. Não é organismo, mas é massa.
Qual é a diferença entre “massa” e “organismo”? Uma massa de cimento, por exemplo, é uma justaposição de coisas que estão presas entre si, mas cada uma não se confunde com a outra. Num organismo há células vivas em que uma ajuda a outra a viver, que constituem um tecido vivo.
A Revolução deseja, evidentemente, instaurar um mundo de anonimato para preparar as almas a não terem personalidade e desaparecerem quando morrerem. É a civilização do panteísmo, e por isso não há cortesia.
As almas que se maravilham com as coisas, se entusiasmam, se encantam, essas são corteses. O contrário é a alma hipocondríaca, pessimista. Essa não é propensa à cortesia.
Destruindo a personalidade, destrói-se a possibilidade de santificação
É errado pensar que o tipo humano característico da IV Revolução tem uma personalidade muito acentuada, por ser capaz de sair de um contexto e viver sozinho. É o contrário: como ele não é capaz de se encaixar em nenhum contexto, porque ele não tem nem personalidade, nem harmonia, ele se isola e perambula. A tal ponto que, fitando-os, percebe-se que são olhos vazios. A impressão que eu tenho é que não são cegos de corpo, mas de alma, e que eles olham sem ver. De vez em quando arregalam os olhos para não olhar nada, depois passam e continuam. E assim ruminando um não ruminar interior, que é a pura vida vegetativa.
Se uma pessoa pode ter personalidade boa ou personalidade má, poder-se-ia objetar que, do ponto de vista da virtude, é indiferente ter personalidade. Por exemplo, ninguém vai dizer que o demônio não tem personalidade. Cada demônio é um anjo decaído. O anjo tem personalidade. Então, o que adianta ter personalidade se não ajuda para a salvação?
A resposta é muito simples: Se é verdade que uma pessoa pode ter muita personalidade e não ser boa, é verdade também que não é possível ser bom se não tiver personalidade nenhuma. É evidente. Por exemplo, um gato não pode ser santo porque ele não é pessoa.
De maneira que para ser bom é preciso ser pessoa. O que significa ter personalidade? É ser intensamente pessoa. Quer dizer, a santidade, necessariamente, aumenta a personalidade daqueles que são santos, embora haja indivíduos não santos que foram criados com mais personalidade do que um santo. Também é verdade que a santidade tem, portanto, como pressuposto a personalidade. Em consequência, a Revolução, combatendo que alguém tenha personalidade, cria condições desfavoráveis para a santificação. E destruindo a personalidade, destrói a possibilidade de santificação.
(Extraído de conferência de 29/6/1974)
1) Charles-Maurice de Talleyrand-Périgord (* 1754 – † 1838). Político e diplomata francês.