Seria uma belíssima leitura do Evangelho considerar, nas várias atitudes do Divino Salvador, se Ele está agindo como Rei, Profeta ou Sacerdote. Maria Santíssima tem, como ninguém, uma correlação com cada um desses títulos. Também os acontecimentos da História, o mundo angélico e mesmo o mundo visível poderiam ser analisados sob esse prisma.
A respeito da trilogia “Rei, Sacerdote e Profeta” aplicada a Nosso Senhor Jesus Cristo eu gostaria de expor algumas considerações, começando por tratar da ordenação interna desses três títulos, isto é, sobre como eles se relacionam.
Rei da História
A qual deles pertence o primado: é Ele como Rei, como Sacerdote ou como Profeta?
Tenho a impressão de que, na ordem lógica, o primado fundamental é d’Ele como Rei; e o primado na ordem final é como Sacerdote. O Profeta quase faz uma ponte entre os outros dois.
Ele é o Rei da História no seguinte sentido: Deus teve as suas intenções com a História, que são as do Homem-Deus. E suas intenções foram um plano que Ele concebeu, o qual a humanidade segue ou não, cumpre ou não cumpre. Esse plano é, prevalentemente, relacionado com a atitude do homem perante Deus, com a atitude religiosa do homem, no sentido mais lato da palavra.
Em segundo lugar, é um plano da ordenação das coisas como corolário, como o homem deve ordenar, desde que ame Deus. De maneira tal que a ordenação dos homens traz uma ordenação dos acontecimentos, e uma ordenação destes acarreta uma ordenação das coisas materiais. Então as civilizações, as culturas, as obras de arte, os arranjos no mundo etc., também correspondem ao plano de Deus.
Nosso Senhor intenciona fazer isso, mas dá liberdade ao homem de realizar uma coisa ou outra; entretanto, o plano d’Ele, de um modo ou de outro, acaba se cumprindo no que tem de essencial, e por uma imposição d’Ele. Porque Nosso Senhor, como Rei, faz realizar-se a glória que Ele queria. Ele manda e, portanto, é um Rei que governa de fato os acontecimentos, por mais que estes pareçam desgovernados.
Um exemplo característico seria com a vida de Jesus. Dir-se-ia que havia um plano que era de Ele vir à Terra e converter o gênero humano. E entrou um plano B em que — não é verdade, mas dir-se-ia — houve a morte e Ele resgatou o gênero humano. De fato, Ele resgatou e cumpriu mais a fundo o plano de levar a humanidade até o Céu. E Nosso Senhor é Rei fundamentalmente por essa condução forte dos acontecimentos. Ele tem o plano, o direito e o poder de mandar. Jesus Cristo tem o mando efetivo. E com esses ou aqueles desvios, as coisas se realizam como Ele quer.
A própria liberdade que o homem possui e, portanto, pode usá-la contra Ele, é dada por Nosso Senhor. Porque, se Ele quisesse, não criava o homem. Ele quis e, no fundo, é a bondade d’Ele que está sendo feita. Ele é o Rei.
Rei-Profeta que sabe tudo quanto irá acontecer
No elemento terminal da trilogia, Jesus é Sacerdote no sentido de que aquilo que Ele fez e ordenou, Ele oferece ao Padre Eterno.
Nosso Senhor é Profeta na acepção de que Ele, como Rei, sabe o que vai acontecer. Não é como os reis da Terra que conjecturam, mas pode não acontecer o que queriam, e suceder o que não previram. Mas Ele sabe tudo quanto vai acontecer e anuncia. E depois Ele leva à condução o que Ele disse.
O dom profético em Nosso Senhor é o conhecimento que Ele tem da própria vontade e do poder; de como e em que medida os fatos, dentro dos planos d’Ele, se ajustarão de maneira a realizar os seus desígnios. E enquanto revelador, porque o profeta revela. Assim eu concebo a trilogia.
Impostação das almas face a Nosso Senhor
Por comodidade de expressão eu disse Rei, Sacerdote, Profeta. Mas cada um desses títulos poderia ser tomado por outra ordem na qual um dos elementos da trilogia teria a dianteira sobre os outros.
Poder-se-ia dizer, por exemplo, que Ele, como Profeta, é o Profeta-Rei: Ele previu, Ele fará, Ele oferecerá. Por qualquer das pontas pode-se ver o triedro todo.
Caráter fundamentalmente moral do plano de Deus
E o que faz dentro disso o plano moral?
Não que o plano moral esteja numa posição secundária à vista disso, mas é uma outra coisa. Ele tem uma amplitude, um senso lato e até latíssimo que ultrapassa a mera interpretação mais estrita do exame de consciência individual, mesmo quando transposto para a clave dos povos, se esta equivale apenas a uma soma de mortificações que os homens têm que oferecer para alcançar a vida eterna.
A realidade moral a que me refiro é a impostação total da alma humana, atingindo, portanto, a disposição da vontade, da inteligência e da sensibilidade, o cumprimento do Primeiro Mandamento em toda a sua amplitude pelo homem. Mas numa amplitude tal que não fica apenas o preceito a ser cumprido, mas um voo da alma para Deus, que se realiza, por assim dizer, independente do preceito, por uma propriedade da alma que vai para o Criador.
Fundamentalmente, é a impostação das almas em face d’Ele, não só para que todas vão para o Céu e sejam felizes, mas é para que possam ordenar para a glória de Deus esta Terra, teatro de batalha esplendoroso da glória d’Ele.
Nosso Senhor Jesus Cristo amará a Terra mesmo depois de destruída pelo incêndio, por ocasião do Juízo, como um general preza um campo de batalha no qual ganhou um grande embate. Se depois houve um homem que ateou fogo e liquidou com as gramas do campo de batalha; para o general isso é uma coisa muito secundária. O importante é que ele venceu a batalha naquele campo.
Assim também a Terra. Os homens bons, os justos tornaram-na sagrada pela batalha que venceram com Nosso Senhor Jesus Cristo.
É nessa amplitude que se pode falar do caráter fundamentalmente moral desse plano.
Um só todo na ordem moral
Ao estudar certas correntes teológicas, vi que faziam uma distinção entre o plano moral e o ontológico. Entretanto, não me parecia adequado distinguir o plano moral do ontológico daquela maneira, porque a raiz da Moral está na Ontologia. A boa Ontologia das coisas é o fundamento, o ponto de partida da Moral, pois a ordem das coisas está na natureza das mesmas coisas, é um imperativo desta natureza.
…devemos pensar em Nosso Senhor Jesus Cristo Sacerdote: oferecendo esse imenso bonum, verum, pulchrum que o precioso Sangue d’Ele tornou possível.
Na época, eu li aquilo, percebi que estava errado e não sabia refutar. Com o curso dos anos, fui refletindo e conseguindo explicitar.
Ademais, a ordem moral latu sensu é intimamente vinculada à ordem moral em seu sentido estrito. Elas se condicionam mutuamente. De maneira que não pode haver uma ordem moral sem verdadeiro pulchrum, sem um autêntico verum; e não pode haver um autêntico verum sem pulchrum; os três elementos do triângulo por sua vez se revertem uns nos outros e constituem um só todo no qual, entretanto, podem-se fazer distinções.
Então, um mundo pulcro, acontecimentos pulcros, almas pulcras, uma História pulcra, tudo isso faz parte desse conjunto moral ao qual me refiro.
É assim também que devemos pensar em Nosso Senhor Jesus Cristo Sacerdote: oferecendo esse imenso bonum, verum, pulchrum que o precioso Sangue d’Ele tornou possível.
Enquanto Rei, Ele tinha o plano de fazer com que a História apresentasse um verum, bonum, pulchrum resplandecente, e que a Terra fosse mais bela, depois de ter vencido a prova e as tentações do demônio, do que seria se ao demônio não fosse dada a oportunidade de tentar.
Pensemos nas naus de Vasco da Gama procurando atravessar o cabo da Boa Esperança. Aquilo tem um pulchrum em si que é o pulchrum da tormenta e o do homem procurando enfrentá-la. Tem uma beleza própria da luta do homem contra os elementos.
Maior ainda é a beleza da luta do homem contra o homem. E uma batalha — que é a luta de muitos contra muitos — tem uma beleza muito maior do que a luta de um contra outro.
Reflexos da trilogia no mundo angélico
Reportando ao mundo angélico, eu seria propenso a achar que os elementos dessas três manifestações de glória de Nosso Senhor — Rei, Sacerdote e Profeta — se encontram refletidos na ordem angélica, de maneira que há Anjos chamados, por sua natureza, a glorificá-Lo mais enquanto Rei, Anjos mais glorificativos do Sacerdote, e outros mais glorificativos do Profeta.
Em torno dessa hipótese — que submeto inteiramente ao ensinamento da Igreja — haveria temas muito “suculentos” a abordar como, por exemplo: Qual é o coro mais alto?
Absolutamente falando, o que é mais elevado: a realeza ou o sacerdócio? Ou será, em algum sentido, o profetismo? Uma vez que o profeta, enquanto recebendo uma comunicação de Deus, introduz nesta ordem algo superior a ela, não é mais do que o rei e do que o sacerdote?
Seria muito bonito, à luz dessas considerações, classificar os coros angélicos existentes, e imaginá-los constituídos assim, reluzindo e cantando a Nosso Senhor Jesus Cristo como Rei, como Profeta e como Sacerdote de maneiras diferentes.
Reluzimentos no mundo visível
Nasceria daí uma pergunta que me encanta, mas para a qual não tenho senão vislumbres de resposta: Poder-se-ia num mundo sensível, visível, como também no mundo das almas, imaginar almas mais voltadas a contemplar a Nosso Senhor Jesus Cristo como Rei, outras como Sacerdote e outras como Profeta?
A consideração de Nosso Senhor Jesus Cristo como Guerreiro cabe evidentemente no rei. O generalato, a condição de guerreiro é própria ao rei. O rei, quando não é obedecido ou se lhe transgride a vontade em qualquer coisa, é o que luta, faz a guerra para impor a sua vontade. É conforme a ordem e o direito. De maneira que é essencial à função de rei. Cristo gladífero seria Ele enquanto Rei, que avança de gládio em punho para mandar, etc.
A consideração de Nosso Senhor Jesus Cristo como Guerreiro cabe evidentemente no rei. Cristo gladífero seria Ele enquanto Rei, que avança de gládio em punho para mandar, etc.
Então nesta Terra nós não poderíamos considerar vislumbres disso, por exemplo, no pai de família? Ele não tem um pouco do sacerdote, do rei e do profeta? Reluzimentos ele possui.
É conhecido o aforismo: “O pai é rei de seus filhos, o rei é pai dos pais.” Realmente, a presença do pai só é plena na casa quando ele é majestoso, o atrativo e a movimentação da residência. Ele enche a casa com o movimento forte e o pulsar de sua alma.
De outro lado, o pai tem qualquer coisa de sacerdotal. A missão sacerdotal foi toda absorvida pelo sacerdócio sobrenatural e pertence a uma classe instituída por Nosso Senhor. Mas não deixa de ser verdade que o pai de família conserva residualmente uma representação da família junto a Deus. E por causa disso é ele que consagra a família ao Sagrado Coração de Jesus, não é necessariamente o sacerdote; ele pode rezar, dar bênção, tem certas funções de intermediário natural junto a Deus, que não desapareceram.
Certa ocasião, um bispo me disse que a oração do pai e da mãe, Deus atende muito mais especialmente do que qualquer outra prece. Porque aquele é o pai, aquela é a mãe; embora uma pessoa possa rezar por um determinado filho de outrem com mais fervor, com mais virtude, se é o pai que está pedindo, Deus toma em consideração especial a oração do pai. Não quer dizer que Ele leve mais em conta a oração do pai do que a de um Santo, mas que é um título especial próprio para ser atendido. De maneira que um mau pai que faça uma boa oração a favor de seu filho tem condições especiais de ser atendido. A fortiori se for bom pai. Há uma qualquer coisa de sacerdotal nisso, e a família vive suas horas augustas desse modo.
Profeta. Não se pode negar que muito difusamente se encontra daqui, de lá e de acolá, além da função de guia, própria ao profetismo, uma certa capacidade de precognição do futuro em determinados pais e mães: “Olha, cuidado, vai acontecer assim…” Ou então quando dizem: “Bom filho, tu vais ser abençoado, Deus vai te dar tais graças…”; e, de um modo ou outro, Deus concede. É um complemento harmonioso da autoridade paterna.
Nós não teremos uma obrigação de desenvolver esse tríplice aspecto de nossa personalidade? E no Reino de Maria esses três lados não vão reluzir muito mais nos homens, embora nas proporções da vocação de cada um? Eu acredito que sim.
Por exemplo, Santo Inácio de Loyola era um verdadeiro rei, sacerdote e profeta para os seus filhos espirituais.
Distinguindo esta trilogia nos acontecimentos da História
Poder-se-ia fazer uma História que procurasse distinguir os aspectos “régios”, “proféticos” e “sacerdotais” presentes em todo exercício de poder de alguém e na história de alguém ao longo da vida. Assim, todos os acontecimentos históricos dariam glória a Nosso Senhor Jesus Cristo enquanto Rei, Profeta e Sacerdote, na medida em que, nesses acontecimentos, esses aspectos fossem mais salientes.
Então, por exemplo, a batalha de Lepanto não é uma glorificação da realeza de Nosso Senhor Jesus Cristo, no que ela tem de mais quintessenciado, que é a realeza de Nossa Senhora? A meu ver, pode-se e deve-se achar isso.
Considerados sob este prisma, os acontecimentos da História, à medida que se desenrolassem, glorificariam a Nosso Senhor Jesus Cristo, à Santíssima Trindade por meio de Nossa Senhora, pois todas as graças e favores espargidos ao longo da História por Deus vieram porque Ela pediu. Compreende-se assim a onipotência suplicante d’Ela, conseguindo que a roda da História se movesse no sentido da glória de Deus.
Tudo isso ponderado, no Juízo Final reluziriam sucessivamente essas três luzes com aclamações e esplendores em que, nunca deixando de brilhar, cintilassem ora mais, ora menos, considerando a História do conjunto da humanidade. Então, diante de tal acontecimento preponderantemente régio, sacerdotal ou profético, ora as almas régias, ora as sacerdotais, ora as proféticas clamariam de um modo especial e dariam à Santíssima Trindade, ao Verbo Encarnado, a Nossa Senhora uma glória especial àquele título.
A instituição da Igreja foi um ato de realeza do Redentor
Maria Santíssima teria, como ninguém, uma correlação com cada um desses três títulos, na devida proporção e de modo uniforme. Ela é Regina Prophetarum e a Co-Redentora do gênero humano.
Rei, Sacerdote e Profeta no Evangelho
Constituiria uma belíssima leitura do Evangelho considerar, nas várias atitudes de Nosso Senhor, se Ele está agindo como Rei, como Profeta ou como Sacerdote. E, tomando a figura do Santo Sudário, imaginá-la animada, falando e exprimindo-se conforme as diversas cenas evangélicas.
Vemos, então, que o conceito de realeza, sendo a d’Ele, toma uma amplitude diversa da que nossa inteligência humana seria levada a conceber. Desde logo os limites se rasgam. Por exemplo, o poder que Ele tinha de fazer milagres, creio que Ele o exercia como Rei: mandar aplacar a tempestade, expulsar os vendilhões do Templo são caracteristicamente atos de realeza.
Também quando Ele instituiu a Igreja foi um ato de realeza. Porque é próprio ao rei fazer uma instituição. De algum modo a realeza antecede ao reino, o rei funda o reino. Nosso Senhor Jesus Cristo, fundando a Igreja, num sentido mais especial, funda o Reino d’Ele. Então: “Tu és Pedro e sobre esta pedra… Eu te darei as chaves do Reino do Céu…” (cf. Mt 16, 18-19), tem uma majestade!
Coroado de espinhos, Ele era Rei. O Rei que reina do fundo do infortúnio.
Entretanto, notem que coisa bonita: durante toda a Paixão, Ele fez, ao mesmo tempo, o papel de Rei, de Sacerdote e de Profeta. Porque Nosso Senhor profetizou durante toda a Paixão a vitória d’Ele.
A divina altivez, uma das notas da presença d’Ele durante toda a Paixão, é a profecia da vitória. Ele, como Rei, coroado de espinhos, entretanto sabia muito bem que haveria um momento em que o portador da mais alta coroa da Terra, em certo sentido, a da França, faria uma capela para conter um espinho da Coroa d’Ele. Apesar daqueles verdugos estarem caçoando, havia n’Ele a segurança do Profeta.
Quando Ele disse “Destruí este templo e Eu o reconstruirei em três dias” (Jo 2, 19), falava de Si mesmo como templo, e que ressuscitaria ao cabo de três dias. Entra aí o Sacerdote, em termos magníficos, falando de Si mesmo como se fosse um templo: Pontífice e Vítima. Porque Ele como Vítima é Ele como Sacerdote. Quer dizer, as coisas se entrecruzaram.
Nosso Senhor, com uma vara na mão, o cetro de irrisão da realeza, e a túnica de bobo, sabendo, entretanto, que todos os doutores iriam analisar ponto por ponto o que Ele tinha dito e encontrariam abismos de sabedoria onde aqueles boçais estavam fazendo o que estavam fazendo. É um profetismo de sabedoria.
Nenhum rei ousaria empunhar essa cana! Vou dizer mais: nenhum Papa ousaria empunhá-la. No máximo consideraria uma glória imensa possuir um fragmentozinho dessa cana.
No total, Ele é que foi Rei! E sabia que aquilo proclamava a grandeza d’Ele. Quer dizer, era Profeta, um Rei que profetizava, e que Se oferecia com Vítima. Ele era, pois, na Paixão, o Rei, o Profeta e o Sacerdote. É uma verdadeira beleza!
(Extraído de conferência de 26/11/1982)