Há espíritos curtos e outros de grandes horizontes. Uns se interessam somente pelo que lhes toca de perto, outros por cogitações muito acima deles. Salvo vocações muito especiais, a perfeição está em saber contemplar tanto o grande quanto o pequeno, pois as perfeições de Deus se espelham em todas as criaturas. Também as obras saídas do talento humano refletem as perfeições divinas, pois quando a pessoa está muito penetrada pela graça, espraia-se em torno dela uma ação de presença às vezes indefinível.

Há indivíduos com uma mentalidade tal que, naturalmente falando, têm a impressão de que as coisas são como se eles fossem o centro do universo. O centro de todas as suas atenções, preocupações, apetências, de tudo quanto entendem, é aquilo que eles são, têm que fazer e o que lhes convém. O que for de uma esfera maior do que isto, para eles passa a ser desinteressante, na medida em que está longe deles. De maneira tal que um fato acontecido a uma grande distância deles não lhes interessa.

Um aspecto da alma humana finamente descrito por Eça de Queiroz

É conhecido o caso de Eça de Queiroz contando a história de um almoço em Portugal, em que ele fala do “pé da Luíza Carneiro”. Em duas palavras, diz ele que numa casa de certa distinção do interior de Portugal – aquele interior tão tranquilo, tão largo, tão farto, tão repousando sobre si próprio – termina um almoço de domingo. A refeição esteve esplêndida, compareceram vários convidados da família, e passaram todos para uma sala ao lado a fim de conversar. Mas o peso do almoço opulento da comida portuguesa, que é muitas vezes difícil de digerir – há um restaurante em Lisboa que se chama “Ao Farta Brutos”, onde eu teria comido se soubesse de sua existência quando estive lá –, provoca sono; à medida que o sono sobe, a conversa vai se amortecendo. Por educação, cada pessoa joga de cá e de lá uma palavra, a coisa se arrasta…

BNP (CC3.0)
José Maria de Eça de Queiroz

Chega o carteiro que entrega os jornais, e uma pessoa lê a notícia de um desastre medonho na China. Um rio transbordou e, digamos, cem aldeias ficaram submersas ceifando não sei quantas vidas, destruindo casas, lavouras, culturas, obras de arte, pagodes. Foi uma catástrofe, mas houve desinteresse geral na sala.

E o Eça então descreve, com aquela capacidade de reconstituir a realidade que ele tinha, todo mundo ouvindo aquilo com uma pena platônica dos chineses, porque a China está longe de Portugal, é quase um outro mundo. Ainda mais naquele tempo de um telégrafo escasso, em que as comunicações eram feitas por navio; não havia ainda avião.

De repente entra alguém e traz um aviso: A senhora, Da. Luíza Carneiro, que estava sendo esperada para o almoço e não apareceu, nem deu satisfação – não havia telefone –, mandava um recado pedindo desculpa. Ela tivera uma queda na rua e machucara o pé. Como Da. Luíza Carneiro era amiga de todo mundo que estava ali, foi um alvoroço:

– Mas Da. Luíza Carneiro machucou o pé? O que terá sido?

Mandam imediatamente bilhetes, recados para Da. Luíza Carneiro. E o sono, que a catástrofe dos chineses não tinha sacudido, o simples pé da Luíza Carneiro sacudiu!

Eça, muito finamente, põe o ponto final e não comenta o fato. Mas fica entendido o inconveniente da alma humana, que ele queria apontar aí: uma catástrofe, absolutamente falando, grande, ocorrida na China, para o homem comum é como se não fosse nada.

Por quê? Porque não diz respeito ao círculo no qual se move, pois acha que o centro de tudo é ele. Pelo contrário, o pé da Luíza Carneiro é uma coisa insignificante; uma senhora que, nas ruas tranquilas de uma aldeiazinha de Portugal, caiu, machucou o pé, está com a perna estendida, passando sonolentamente o domingo em casa. É uma bagatela, mas julgam ser muito importante porque se trata de uma pessoa da roda deles. E como isso toca a eles, o pé da Dona Luíza Carneiro fica valendo muito mais do que todo o desastre acontecido na China, que é distante.

Os homens de espírito curto e os de grandes horizontes

Aqui um vezo do espírito humano fica indicado. E esse vezo é: algo importa ao homem na medida e no sentido em que diga respeito a ele. O que não lhe diz a respeito não importa em nenhum sentido e nenhuma medida.

Esses são os espíritos curtos, mais ou menos como homens afetados de uma forte miopia, e que não veem a não ser o espaço necessário para se moverem. Quer dizer, os horizontes maiores eles não conseguem perceber, porque não lhes é necessário, não sentem falta. Andam à vontade. Se para pegar os objetos, ler algo, se movimentar, eles veem o necessário, pouco lhes importa saber como são as estrelas, os horizontes, como é o mar.

Há um outro tipo de homens que é o contrário. Só se interessam pelos grandes horizontes, pelas grandes coisas, por aquilo em que eles não estão no centro. Têm um gosto enorme disso, a ponto de relaxar, às vezes, sobre aquilo que lhes é imediato. Então, se veem com frequência artistas, poetas, grandes generais, diplomatas, etc., que deixam a família na miséria, que não cuidam de seus próprios interesses pessoais, e vivem com a cabeça posta em coisas que estão muito acima das cogitações imediatas deles.

Isso é um defeito ou uma qualidade? À primeira vista, é um defeito, porque o homem deveria ver longe e perto. A vista boa, proporcional, vê as estrelas tanto quanto é normal e lê a letra pequena do jornal, sem auxílio de lentes. Sabe observar uma formiga e ver uma montanha, ao longe, bem como o que na montanha se passa, sem necessidade de lentes. Essa é a visão perfeita; observa tudo quanto interessa muito à vista humana.

Gabriel K.
São Tomás de Aquino à mesa com o Rei São Luís IX – Convento de São Domingos, Lima, Peru

São Tomás de Aquino, chamado a se preocupar exclusivamente com as coisas do Céu

Na realidade, alguns homens têm uma vocação especial. Nossa Senhora os chama para verem de longe e não se ocuparem com o que está perto. Na vocação especial isto é uma qualidade, porque significa uma tal absorção no que está mais alto e mais longe, que eles como que voam e são mais Anjos do que homens. Existem Santos assim.

É muito conhecido o episódio em que São Luís, Rei da França, convida São Tomás de Aquino para um almoço. É uma honra ser convidado para a mesa do Rei. O Superior dos dominicanos vai com São Tomás de Aquino e começa a conversa, São Luís presidindo. Todo mundo tem por obrigação estar atento ao que diz o Rei, pois é ele quem faz a conversa. Aliás, São Luís tinha muito boa prosa, era muito bom interlocutor, mas São Tomás reimerge nas suas preocupações e se esquece de que está na mesa do Rei. E ele, que era corpulento, de repente dá um soco na mesa e diz:

– Ergo, conclusum est contra manichæos!

“Portanto, está concluído contra os maniqueus”, que eram hereges mais ou menos gnósticos do tempo dele. O Superior o chama:

– Frei Tomás, Frei Tomás!

São Luís:

– Frei Tomás chegou a alguma grande conclusão. Tragam logo material para escrever a fim de tomar nota do pensamento dele!

Rapidamente, vieram pessoas que anotaram as palavras de Frei Tomás. Depois ele normal e mansamente entrou na conversa. Uma luz nova tinha nascido na Igreja: novos argumentos contra os maniqueus. Frade chamado ao abandono das coisas da Terra, a preocupar-se exclusivamente com as do Céu, São Tomás de Aquino evidentemente fez bem de, na própria mesa do Rei, nem olhar para o monarca. Mais terrível ainda: na mesa do Santo, não olhar para o Santo! Esqueceu de tudo, querendo pegar os maniqueus e provar seus erros.

Santos atentos aos acontecimentos deste mundo, mas absortos em Deus

Mas houve Santos a quem Deus chamou para uma outra forma de perfeição. É muito conhecido este fato: Santa Teresa de Jesus estava preparando um almoço para as freiras e teve um êxtase em que foi raptada aos Céus em espírito e recebeu uma visão altíssima – era uma grande mística, com visões absolutamente transcendentais –, na qual contemplou a Deus, enquanto ela fazia uma panqueca. De repente, a auxiliar da cozinheira entrou, viu-a no êxtase, na glória de Deus, e batendo direito a panqueca para as freiras.

A ação dela – não absolutamente, mas neste ponto – era mais alta do que a de São Tomás, porque este estava pensando nos maniqueus, e ela, vendo Deus face a face. O Criador falava a ela naquele momento e a ajudava a bater a panqueca. E ela, por espírito de disciplina e pelo senso das coisas como são, tinha o êxtase místico e, ao mesmo tempo, estava fazendo a panqueca.

Samuel Holanda
Santa Teresa de Jesus – Mosteiro de Santa Teresa, Ávila, Espanha

Talvez mais característico ainda, seja um dito de Santo Inácio de Loyola, a respeito do seguinte: ele media tão bem o pró e o contra de tudo quanto fazia e, portanto, qual a razão última da convicção formada ou da deliberação tomada, que no simples ato de passar por um noviço da Companhia de Jesus – portanto, o que a Companhia tem de mais modesto – e tirar seu barrete para ele, Santo Inácio poderia encher uma folha de papel com, digamos, quinze motivos prós e dezoito contra, explicando porque cumprimentou ou respondeu ao cumprimento, com esse ou aquele matiz. Quer dizer, era uma visão agudíssima do que lhe era imediato, mas sem ter perdido a noção, em nenhum momento, daquilo que é o verdadeiro centro de todas as coisas: Deus Nosso Senhor.

Esta exposição mostra várias famílias de almas. Santo Inácio, agindo com a finura de um político, de um ultrapolítico – estou certo de que um Talleyrand ou um Metternich não saberiam calcular tão bem um cumprimento como ele –, estava por inteiro posto nos acontecimentos deste mundo. No extremo oposto, podemos imaginar São Tomás de Aquino pensando, não na panqueca, nem no Rei da França, o Santo que tinha diante dele, mas exclusivamente nos maniqueus.

As perfeições divinas espelhadas no talento humano

É uma gama enorme de variedades onde se espelham as perfeições infinitas de Deus. Então se compreende bem que deve haver gente que preste atenção em tudo, neste sentido da palavra: tudo aquilo que Deus criou, é conforme a Ele, foi feito para ser visto pelo gênero humano. Esse é o princípio geral.

E precisa haver homens com o feitio de espírito para ver cada coisa. Uns veem mais uma, outros veem mais outra, mas tudo é objeto para ser contemplado muito atentamente por um certo tipo de homem.

Dou um exemplo modesto. No uso doméstico, não há nada de mais comum do que uma colherzinha de mexer café. A diversidade de formas, de estilos de colherzinha de café que se tem fabricado no mundo, desde que há café, é tão grande que se poderia fazer um museu enorme com essas variedades. E o homem fez mil obras de arte e mil horrores com colherezinhas de café. Quer dizer, a colherzinha de mexer café é uma criatura indireta de Deus, porque ela foi modelada por aqueles que foram criados por Deus. Só em torno desse objeto o talento humano quantas modalidades inventa! Quanto o homem pensou a respeito de colherzinha de mexer café! É um certo tipo de homem. Deus quer que alguns tenham espírito feito para isso.

Em alguns lugares da Europa se fizeram colherezinhas de mexer café tão magníficas, que na Áustria chegou a haver isto: no fim de certas recepções, às vezes com mais de um milhar de convidados, o Imperador da Áustria mandava oferecer café pelos lacaios, e a colherzinha era de ouro. Tão bonita era essa colherinha que já se sabia, por tradição, que o convidado tinha o direito de levá-la para casa. Era um presente do Imperador.

Tenho certeza de que, vendo essas colherezinhas de café as quais se encontram frequentemente em qualquer lugar, nunca lhes passou pela cabeça que pudesse haver isso.

Considerem outra coisa: o saleiro, o objeto mais rotineiro que pode haver no mundo. Pois bem, o que existe de variedade de saleiros é simplesmente inimaginável; poder-se-ia fazer um museu de saleiros.

Figuremos uma sala de jantar dos antigos tempos. Cada comensal poderia aproximar uma colherzinha e pôr na sua própria comida o sal que quisesse. Na mesa, candelabros, lustres com velas no alto do teto, na indecisão da luz que vai e vem, o saleiro brilha como uma montanha de cristal no meio da mesa, ao reflexo do ouro.

É um objeto tão pequeno, tão modesto. Entretanto, tudo quanto é para o uso do homem foi feito para ser pensado e elaborado de um modo magnífico em alguns espécimes, bom em outros, decente em outros, e de um modo indecente pela Revolução. Quer dizer, há toda uma gradação. E mesmo o indecente que a Revolução faz serve ao homem, porque é útil para comparar e detestar. De maneira que até isso serve aos justos.

Um passeio de Nossa Senhora pela Terra Santa

Daí tira-se a conclusão seguinte: Deus fez na Terra os homens e, abaixo deles, o reino animal, o vegetal e o mineral. Além disso, Ele criou uma forma de vida que vale mais do que o homem: a vida sobrenatural da graça.

Arquivo Revista
Dr. Plinio em 1979

Quando a pessoa está muito penetrada pela ação da graça – daqui a pouco lembrarei o que é a graça –, espraia-se em torno dela uma como que luz, às vezes visível, às vezes invisível; uma como que ação de presença, às vezes definível e às vezes indefinível, em razão da qual a pessoa parece dar a conhecer algo em si, que é superior à própria natureza humana.

E isto nota-se muito bem quando se imagina Nossa Senhora andando, por exemplo, por um vale florido com os famosos lírios do campo; é quase impossível não presumir que, na medida em que Ela ia passando, pela ação de sua presença as flores se abriam mais, ficavam mais brancas, voltavam-se discretamente para Ela e deitavam um perfume mais intenso. Porque havia na Santíssima Virgem, em grau proporcionado à dignidade incomparável d’Ela, algo de sobre-humano, quer dizer, superior a todas as naturezas, mas atraindo tudo quanto era inferior.

Pode-se imaginar que também as outras flores se voltavam para Nossa Senhora quando Ela passava; os recém-nascidos paravam de chorar e começavam a abanar as mãos em direção a Ela; os cordeiros, símbolos do Cordeiro de Deus, se achegavam diante d’Ela e iam se tornando mais alvos na medida em que Ela ia se aproximando; os leões olhavam-Na e ficavam, de repente, dulcificados e mansos como se fossem pássaros, mas depois rugindo ao longe para defendê-La contra o adversário imaginário, e com uma força também duplicada. Assim seria um passeio de Nossa Senhora pela Terra Santa.

A mais alta qualidade que uma pessoa pode possuir na Terra

Isso se deu também com incontáveis outros Santos, em grau infinitesimalmente menor, porque em relação a Nossa Senhora as coisas mais belas, maiores, que se podem imaginar são infinitesimais.

O famoso caso do lobo de Gúbio com São Francisco de Assis. Era um lobo terrível e que incutia medo a todo mundo, comia, devorava, etc. Então, pediram a São Francisco uma providência contra o lobo. Ele o chamou, e o lobo veio todo docinho. São Francisco deu uma bênção e o lobo ficou suave, e nunca mais atacou ninguém.

Também São Francisco Solano, um jesuíta, apóstolo do Paraguai. Quando os índios ficavam muito bravios, ele tocava violino e os amansava. Era como a bênção de São Francisco de Assis.

A vida sobrenatural da graça vale mais do que a vida humana, porque é uma participação do homem na vida divina. Deus cria a graça, a qual confere uma participação na vida d’Ele; e Deus como que a enxerta no homem. E se o homem corresponde à graça, esta é, ao pé da letra, como um enxerto. Põe-se o enxerto numa árvore frutífera e toda a produção muda; também tudo quanto o homem faz como que se diviniza sob a ação da graça. E a mais alta qualidade que pode haver na Terra é estar imbuído da graça, correspondendo a ela com toda a intensidade. Nada se compara à ação da graça.

(Continua no próximo número)

(Extraído de conferência de 9/6/1979)