A Revolução insinua existir um conflito entre elevação e grandeza, de um lado; bondade e amenidade, de outro. Dona Lucilia desmentia este erro pela sua presença. Do alto de seu espírito desciam, como quedas d’água limpidíssimas e discretas, ondas de doçura, bondade, ternura sobre as pessoas que se aproximavam dela. Mas com quanta elevação e dignidade!
Na alma de todo revolucionário existe um horror – que eu não hesitaria em qualificar de ateu – a uma dimensão das coisas, a certa profundidade, certa elevação de vistas que vê tudo com uma grandeza fenomenal, relacionada com uma porção invisível e maior, tão grande que chega até aos pés de Deus.
A Revolução detesta contemplar as coisas pelo lado mais elevado
A Revolução acusa esse estado de espírito de gerar a guerra santa, o fanatismo, não a bondade; pode gerar o entusiasmo, não o bem-estar. As grandes elevações de espírito conduzem a alturas que o espírito não foi feito para habitar. E, portanto, no máximo se deve esvoaçar por lá um pouco e depois voltar às planícies do cotidiano. Em outros termos, é preciso viver a vida a pé ou montado num burro, como Sancho Pança, ao invés de viver montado a cavalo, como Dom Quixote.
Insinua a Revolução que há um conflito entre esses dois estados de espírito, essas duas perfeições: a elevação e grandeza, que se exprimem numa seriedade extraordinária, de um lado, e de outro a bondade, a amenidade.
Tenho lido furtivamente uma ou outra descrição desses voos em que o astronauta sai da órbita da Terra e entra numa espécie de noite que há entre os vários astros, e vê tudo se modificar. Noto que fazem uma descrição de caráter estritamente científico, sem perceber a seriedade que aquilo tem, a qual envolve o homem. Quando o astronauta sai da atração da gravidade da Terra e começa a se deixar atrair por outros planetas, isto tem uma seriedade imensa. Ele é chamado para vias que não são as comuns do homem, e para órbitas que não são as dele. Ele constitui uma exceção na ordem do universo e é posto como espetáculo para os Anjos e para os homens.
O homem moderno detesta contemplar as coisas por este prisma. Ele quer ver na viagem astronáutica um mero percurso de uma mercadoria. Mandam um foguete para a Lua. Dentro tem um homem que aperta uns botõezinhos e complementa a máquina. Esse homem chega ou não chega? Traz ou não traz amostras para a Terra? Acabou-se.
O grandioso dessa viagem interastral formidável, que nunca ninguém fez até então, a grandeza do homem que extrapola da regra e fica num zênite ao longo dos séculos, como sendo o único que pousou na Lua – uma coisa fenomenal! – isso as pessoas não querem perceber. Todas as grandezas estão alheias.
Grandeza sem interstícios de mediocridade
Os revolucionários querem afirmar que esse tipo de alma não tem bondade, doçura, amenidade, nem misericórdia e, portanto, perto de uma pessoa assim encanta-se sem se distender. E como não se pode viver tenso, é necessário tomar férias da grandeza.
Se analisarmos os mais diversos ambientes contemporâneos, encontraremos, talvez com raras exceções, o choque entre a grandeza de alma a que os panoramas da Fé nos convidam e o pedestre do pequeno arranjo doméstico, da pequena situação para resolver: a criada que entrou, o emprego que o pai tem ou não tem, o famoso problema da saúde, enfim, essas coisas todas que vão entrar na primeira linha da preocupação. E o homem é levado, pelos hábitos mentais recebidos desde muito cedo, a esperar precisamente que lhe seja dado um intervalo entre grandeza e grandeza, no marco da mediocridade. Esses são os momentos de interstício dentro da vida de entusiasmo, de grandeza.
Esta espécie de tentação dos hiatos de grandeza encontrava na alma de mamãe o desmentido mais completo. Porque se uma coisa havia que a caracterizasse era exatamente essa grandeza que ela punha na menor coisa.
Dona Lucilia era uma pessoa a quem se fosse dada uma rosa podia ficar horas contemplando a flor e fazendo comentários. Mas comentários que tinham isso de característico: desciam ao mais miúdo da vida e tomavam os pormenores mais minúsculos para os analisar. Entretanto, quando se via com que espírito aquilo estava sendo analisado, percebia-se que tocava no alto. Tudo interessava a ela na medida em que certas altas cogitações, que ela não largava nunca, estavam presentes nela.
Devo dizer que, embora um homem em nada se deva comparar a uma flor – ele pode se comparar a um fruto ou a uma árvore, mais do que a uma flor –, entretanto, era assim que eu me sentia tratado por ela em minha infância. A vinculação profunda de alma entre ela e eu tinha a sua razão mais profunda neste ponto de enlevo meu com ela, desde pequeno.
“Luciliotropismo”
Eu percebia que, sendo muito pequenino, mamãe tratava comigo, debaixo de certo ponto de vista, como com um brinquedinho. Ela achava graça na minha fragilidade, na minha insipiência, enfim no meu estado de principiante em tudo. Mas eu notava que naquilo entrava uma espécie de carinho contemplativo que ia até as mais altas regiões e – vejam o paradoxo da linguagem – as mais altas profundidades da alma dela. E que aquele carinho, cheio de um pensamento inteiramente superior, me envolvia todo: “Este é meu filho. Dele tenho razão para esperar que seja de tal jeito, de tal outro… Vou brincar com ele envolvendo-o no meu afeto, protegendo-o, mas procurando nele os sintomas precursores de minha esperança. O que de minha esperança poderá se realizar?” Eu me sentia estimulado por uma indagação esperançosa como quem dizia com afeto: “Meu filho, tu serás aquilo que eu tenho no fundo de minha alma?”
Assim como existe o heliotropismo, pelo qual a planta procura o Sol, assim também, por uma espécie de “Luciliotropismo”, eu era tendente a me voltar a ela. Quando mamãe fazia as menores coisas para mim, como, por exemplo, ajudar-me a passar de minha cama de menino de dois ou três anos para a dela, sorrindo, brincando, eu percebia que algo de muito mais alto me envolvia e que um dia compreenderia a doçura dos altos píncaros, a distensão e a suavidade dos altos ideais, e como aquilo que era majestoso era doce e atraente!
Isso aprendi com ela de tal maneira que contemplei nela até o fim da sua vida, e tive com ela o trato cheio de veneração que correspondia a uma alma como a dela. Minha mãe merecia meu respeito e eu prezava essa circunstância. Mas não era só isso. Ela era daquele jeito e tinha em sua alma aquela grandeza; por esta razão, eu sentia que todas aquelas qualidades dela caíam sobre mim, circundavam-me e penetravam em mim por uma osmose, para a qual eu abria todos os meus poros.
É no alto das serranias que se encontra a paz
Mais de uma vez desci com ela o caminho de Santos em trem, num período em que quase não se fazia essa viagem de automóvel. É um lindo caminho que passa por serras com manacás em flores, e onde se vê a água correr abundante do alto dos penhascos, e escorrer até os vales que circundam aquilo tudo, no meio do verde de uma floresta onde nunca os pés humanos pousaram, e que estão como os via o Padre José de Anchieta.
Quantas vezes acompanhei o olhar de Dona Lucilia que contemplava aquele panorama! Ela baixava o vidro da janela, encostava a fronte sobre o braço e ficava olhando aquela natureza toda…
Confesso que eu olhava muito mais para ela do que para o panorama. Discretamente, para ela não perceber, porque ela não gostaria… Mas são os raros contrabandos que um filho pode fazer.
Eu olhava para tudo aquilo e pensava: “Isso tem uma qualquer analogia com ela, que algum dia explicitarei…” Estou explicitando agora. Do alto do espírito dela desciam as ondas de doçura, de bondade, de ternura, como quedas d’água limpidíssimas, discretas – não é a Cachoeira Paulo Afonso com aquela barulheira –, e vinham suave e docemente como tudo quanto dela baixava sobre nós. Mas quanta elevação, quanta altura, quanta dignidade!
Se nós queremos encontrar a paz, a tranquilidade, a doçura, o afeto de que por alguns lados, a justo título, a nossa alma é sedenta, sejamos os homens que compreendem que isso só se acha no alto das serranias. E cada vez que, arrastados pela influência subconsciente do espírito moderno, procuramos o cotidiano sem as suas grandezas e sem sua beleza, de fato nós estamos afastando com a mão essa coisa colossal, pois todas as suavidades e convites para a doçura do Quadrinho1 não vão com quem tem a alma posta nessas coisas revolucionárias.
Quantas vezes acompanhei o olhar de Dona Lucilia que contemplava aquele panorama! Ela baixava o vidro da janela, encostava a fronte sobre o braço e ficava olhando aquela natureza toda…
Confesso que eu olhava muito mais para ela do que para o panorama. Eu olhava para tudo aquilo e pensava: “Isso tem uma qualquer analogia com ela que algum dia explicitarei…”
Subir as vias escarpadas da grandeza
Pelo contrário, mamãe fazendo-me sentir, desses altos píncaros, a bondade, a doçura, o bem-estar do convívio com ela, tive uma ideia experimental, viva, do que sejam essas qualidades, como não conheço que tenha havido igual. Quer dizer, quem busca o muito alto, muito majestoso, muito grandioso, aquele que caminha com o passo resoluto até dentro do trágico, e que é sedento do trágico porque sabe que este é a escada que leva até os píncaros – a Via Crucis é a única que conduz até o alto do Calvário –, esse encontra as coisas que procura. O outro é desviado pelo espírito moderno.
Na hora em que tudo convida à falta de seriedade, ao relaxamento, ao meramente florido, ornamental, gostozinho, nós devemos estar de pé, em toda a nossa estatura, contra a tentação da trivialidade e escorraçá-la com o pé, dizendo: “Futuro, com os pés postos sobre os escombros desta banalidade blasfema, eu te chamo. Vem, ó futuro!”
Ide resolutamente escalando as vias escarpadas da grandeza. Ao longo dessas vias encontrareis não só a proteção de quem com uma real grandeza teve tanta bondade, mas Aquela que, incomparavelmente superior a todas as criaturas, é ao mesmo tempo a Rainha majestosa do universo que calca a serpente para todo o sempre. Ela é a Conceição Imaculada, de quem dizemos: “Vida, doçura, esperança nossa, salve, ó Rainha! ”
Subi, não vos deixeis atrair pelo visgo do cotidiano, evitai o banal e amai a grandeza, e ter-me-eis dado aquilo que mais desejo de vós!
(Extraído de conferência de 12/12/1982)
1) Quadro a óleo, que muito agradou a Dr. Plinio, pintado por um de seus discípulos, com base nas últimas fotografias de Dona Lucilia. Cf. Revista Dr. Plinio n. 119, p. 6-9.