No fim do período imperial, a cidade do Rio de Janeiro se tornou comparável às muito boas urbes da Europa. O bom gosto foi aparecendo, a urbanização se tornando mais bonita. Pessoas de sociedade começaram a importar modas muito elegantes, vindas principalmente da França.
Quando Dom João VI mudou-se para o Brasil, instalou-se no Palácio dos Vice-Reis. Esse edifício ainda existe e, com a proclamação da República foi convertido na Central de Correios e Telégrafos. O prédio é uma característica construção portuguesa do século XIX, cuja arquitetura tem certo “sabor”, mas não creio que seja qualquer povo que apanhe o “sabor” que isso possui. À primeira vista, é a arquitetura que muitas casas apalaciadas e de fazenda do Brasil vão tomar também, e da qual posso falar livremente, porque dando uma impressão, à primeira vista desfavorável, estarei me referindo ao meu País.
O Palácio dos Vice-Reis
Lembro-me muito dessa impressão quando era pequeno e via certas construções brasileiras. Eu passava diante daquilo, olhava e pensava: “Mas, afinal de contas, isso aqui no que é diferente de uma caixa de sapatos? É um quadrilátero enorme, com uma ponta um pouco mais enfeitada em cima, uma fileira de janelas iguais, cada uma com uma pequena sacada e, entre janela e janela, um braço de ferro com uma lâmpada dependurada. Embaixo, outra porta ornamentada e mais janelas. Percebe-se como é a planta interna disso: um corredor no centro e, em cima, quartos que dão para a frente e para o fundo. Onde está a arquitetura? Onde está a arte? Onde está o bonito disso?”
Não se poderia imaginar uma planta que desse menor dor de cabeça a um arquiteto do que essa. Eu tinha objeções sérias contra isso, sobretudo porque fazia a comparação entre esse estilo de construção e os edifícios que, naquele tempo, via em fotografias da França. Eu me extasiava com as construções francesas e, em consequência, vendo essa simplicidade quase elementar, estranhava e ficava objetante.
Recordo-me, entretanto, de que, às vezes, no momento de virar a página de um álbum de fotografias, eu pensava: “Curioso, na hora de virar a página estou achando isso bonito… E percebia que, de vez em quando, daquilo desprendia certa beleza que não era a de uma coisa francesa, de deixar o olhar encantado, mas tinha, por vezes, uma chispa de pulcritude. Mais tarde acabei percebendo que essa chispa estava em alguma coisa que sentimos depois de nos termos habituado à monotonia. Então aparece uma grandeza, uma seriedade, uma distinção que nos encanta. Esse era o Palácio dos Vice-Reis onde Dom João VI se instalou.
A Quinta da Boa Vista
Não muito tempo depois, ele recebeu o oferecimento de um comerciante rico, português que morava no Rio de Janeiro, pondo à sua disposição uma grande propriedade chamada Quinta da Boa Vista. Era um lugar mais fresco, mais arejado do que a cidade do Rio, que é terrível no tempo de calor. Não havia estrada de ferro para Petrópolis naquele tempo. Então, naturalmente, era preciso fugir do calor indo para lugares mais arejados. A Quinta da Boa Vista correspondia a essa necessidade e Dom João VI foi residir lá.
Com o tempo, a Quinta foi sendo ampliada e muito bem decorada. Muitos anos atrás, eu tinha ido passar uns dias de repouso no Rio de Janeiro e fui visitar a Quinta da Boa Vista, que havia sido transformada em Museu de Ciências Naturais. Pela disposição das salas, percebi que nem tudo estava acessível aos visitantes, e que eu poderia tentar visitar a parte que não era mostrada ao público. Com jeito, perguntei a um funcionário o que havia além de algumas portas trancadas e manifestei meu desejo de conhecer aqueles recintos.
— Não, não pode! Essas salas estão fechadas… – asseverou.
— Mas o que é que têm? Se estão vazias, então não há razão para mantê-las fechadas…
Depois de uma boa conversa, consegui que ele me abrisse as portas. Eram os aposentos da Princesa Isabel. Encontrava-se ainda ali algo do antigo mobiliário, mas pouca coisa. Havia de encantador os vitrais do século XIX trazidos da Europa, representando personagens célebres do tempo da Renascença: músicos e poetas, principalmente italianos. Tenho a impressão de que eram vitrais de fabricação italiana. Percebia-se, pelo acabamento das paredes e do teto, que a quinta do português comerciante tinha sido transformada gradualmente no interior de um palácio principesco, com muito espaço, muita largueza, com bonitos móveis, etc. Afinal, consegui entrar também na Sala do Trono, onde havia um trono e alguns móveis bonitos, dignos.
Foi na Quinta da Boa Vista que grande parte do reinado de Dom Pedro II se exerceu. Para as proporções do Brasil daquele tempo, era um palácio. O Monarca aumentou-o muito, deu-lhe dignidade e esplendor.
Sedes de fazendas apalaciadas
De outro lado, o corpo diplomático no Rio de Janeiro foi crescendo. Naquele tempo, a diplomacia era um ofício dos nobres. A Europa estava cheia de monarquias, e eram nobres europeus que constituíam quase sempre o corpo diplomático no Rio. Famílias da primeira nobreza europeia, com seus próprios palácios de embaixadas existentes no Rio de Janeiro, tudo isso dava muito brilho à Corte.
Ademais, o plantio de café foi se desenvolvendo muito no Rio de Janeiro. Mais tarde, da cana-de-açúcar também. As antigas famílias, que desde o começo do povoamento do Estado do Rio moravam lá, eram as fundadoras da zona e se tornaram muito ricas por causa da grande plantação e exportação realizada, precisamente por causa da ótima marinha mercante que o Brasil possuía, dotada de navios fabricados com esplêndida madeira brasileira e constituindo a segunda frota do mundo, como contei na conferência anterior1. Exportávamos para o mundo inteiro! Mas exportar significa entrar dinheiro. Com o dinheiro que entrava, essas famílias ricas do Estado do Rio, do Sul de Minas, do Norte de São Paulo formavam uma só rede. Mandavam vir móveis muito custosos da Europa, tecidos finos para revestir paredes, vitrais, maçanetas de porta, lustres muito bonitos, enfim, tudo o que faz o encanto da vida interna.
No próprio Estado do Rio de Janeiro foram aparecendo sedes de fazendas a tal ponto apalaciadas que até figuram em álbuns especializados. Eu conheci até duas dessas casas apalaciadas muito interessantes e bonitas.
Uma linda casa nos arredores de Campos dos Goytacazes
Uma é a que serve de abrigo de idosos, o Asilo do Carmo, nos arredores de Campos dos Goytacazes, pertencente outrora a uma grande família aristocrática de plantadores de cana-de-açúcar. É uma casa linda! Com a forma de luxo que o Brasil podia e ainda pode proporcionar aos que desejarem: salões e outros compartimentos enormes.
Mas o que tem uma beleza especial é o fato de, nas salas nobres pelo menos, todo o chão estar coberto, de ponta a ponta, por tábuas largas de árvores com madeiras bonitas abatidas, com certeza, da floresta virgem daquele tempo. Para um país como o Brasil é mais bonito ter, por exemplo, uma mesa ou um assoalho de grandes árvores que mostram a pujança de nossas florestas, a riqueza de nosso território. Uma beleza própria a essas coisas é mostrar como ainda estamos perto do mato, de nossas origens, até que ponto somos ancestrais de um futuro que nos vai seguir.
Quando se olha para o passado e se diz: “Olhe aqui o meu remoto quinto, oitavo, décimo avô”, é bonito! Mas sentir-se como na origem de uma coisa que vai deitar muitas gerações, é mais bonito ainda! Em última análise, é mais belo ser antepassado do que ser descendente. Daí a beleza daquelas toras enormes de madeira, falando da possibilidade e a força de nosso solo e, com isso, a possibilidade e a força da Nação.
Logo depois da proclamação da República, houve uma crise financeira, e com isso grande parte das famílias rurais perdeu a fortuna da noite para o dia. Então, tiveram que abandonar essas casas. E não havia quem as ocupasse.
Essa de Campos, em concreto, foi tomada por uma obra de caridade, creio que pela Associação de São Vicente de Paulo, que estabeleceu lá um limpíssimo e modelaríssimo asilo para idosos. Impressionou-me ver os pobres velhinhos que não têm mais com quem estar, às vezes pelo fato de seus descendentes terem morrido ou, coisa mais cruel, não querem o velho e a velha, e jogam-nos lá, porque dão despesa, obrigam a acordar durante a noite para tratar deles, outras coisas assim… Então, empurram-nos de lado.
Sentir o ambiente do Brasil no tempo de Dom Pedro II
Olha-se então para o pátio interno da propriedade, onde outrora pessoas com bonitas roupas conversavam coisas agradáveis, há um velhinho comendo, sentado no chão. Mais adiante, uma velhinha… Quase não conversam, a vida está esgotada… São os últimos e preciosos anos da vida em que o homem, pela conformidade, repara seus pecados e se prepara para o Céu.
E se vê um granito não-polido, cinzento, e não-bonito. Parecido com o granito que se encontrava antigamente em todas as ruas de São Paulo, antes de haver asfalto. Agradava ver pedaços grandes desse granito nos peitorais das janelas e enquadramentos das portas. Pode-se imaginar a bela vida, ao mesmo tempo de família e de sociedade, que ali se levava, quando fazendeiros de outras bonitas casas visitavam esta, e os desta iam visitar outras. Havia festas. Percebe-se pelo tamanho a cozinha que foi um local de gastronomia caipira, mas opulenta. E a gastronomia caipira tem coisas bem boas, que também fazem parte do charme do Brasil e não devem ser escondidas. Os pratos meio cheirando à África que há aqui, a meu ver seria uma imbecilidade ocultar: cuscuz, vatapá, feijoada, pratos excelentes com um gosto forte, uma tropicalidade boa. Percebe-se quanto de tudo isso se comeu por lá…
Os diretores do asilo que me levaram a visitar as várias partes do estabelecimento contaram-me que todos os anos, em certa data, aparecia uma senhora idosa, de condições modestas, e pedia licença para visitar a casa. Ela nunca dizia que nexo tivera com a propriedade, mas talvez tivesse sido dona ou filha da dona, e sentia vergonha de contar. Como era uma pessoa respeitável, muito direita, abriam a casa e ela andava por onde queria. Visitava tudo, e em alguns aposentos ela parava e chorava. Depois saía e, na escadaria do lado de fora da casa, sentava-se e chorava longamente também. Por fim, ia embora e no ano seguinte, na mesma data, ela voltava.
Alguém me dirá: “Isso não é História do Brasil!” Mas é inegável que em algo isso faz sentir o ambiente do Brasil no tempo de Dom Pedro II.
Canal ligando o Rio de Janeiro a Campos
Há também restos desse tempo precisamente em Campos, onde existia um canal que Dom Pedro II mandara fazer para ligar, em linha reta, com a cidade do Rio de Janeiro. Naquele tempo, fazer estradas era uma dificuldade, e uma “estrada” de água era um luxo. Então, ia-se e vinha-se de Campos ao Rio nesse canal que com o tempo deixou de ter interesse comercial e, pela falta de cuidado, foi se encolhendo. Ora, o planejamento dos rios que desembocavam no canal para alimentá-lo com suas águas era uma obra de engenharia e, tendo-se relaxado na manutenção disso, só chegava um pouquinho de água ao Rio de Janeiro ou para a ponta de Campos. No Rio de Janeiro entrava num bueiro qualquer. Em Campos, nem percebi onde morria o canal.
Contudo, vendo esse canal poderíamos ter uma ideia de Dom Pedro II com a Imperatriz Dona Teresa Cristina e toda a corte chegando em vários barcos. Que poesia tem uma viagem como essa e quanto a navegação por um canal é diferente das viagens pelas estradas de ferro ou de rodagem!
É preciso dizer que o Brasil sempre negligenciou uma coisa que tem seu encanto próprio: a navegação fluvial. Nós aproveitamos muito as nossas praias. Se o fizéssemos dentro da moral, faríamos muito bem, pois são praias maravilhosas. Mas não se ressalta que o Brasil tem várias redes fluviais enormes, as quais percorrem o país quase de ponta a ponta. Enquanto na Europa, por exemplo, a navegação fluvial é muito aproveitada. Hoje, na era do automóvel, do trem, do avião, ainda se anda naqueles rios à vontade. É a forma de transporte mais cômoda que se possa imaginar, porque o rio trabalha por nós e nos leva para onde quisermos. Pelo menos metade da viagem é feita gratuitamente pelo rio, ele nos carrega sem gasto de combustível ou de braços humanos.
A navegação fluvial é um tesouro que durante algum tempo – no fim do Império e mesmo no começo da República – se cultivou no Brasil. Depois, a mania das estradas de ferro e do progresso fez decair esse costume.
A riqueza, o bom gosto e a cultura geral do Brasil iam subindo
Mas voltando às considerações sobre o tempo do Império, com a elevação geral da sociedade no Rio de Janeiro, começaram a importar modas muito elegantes e finas vindas principalmente da França. O bom gosto foi aparecendo, a cidade do Rio de Janeiro se tornando mais bonita. Já no tempo colonial havia lindas igrejas, mas se foram construindo novas. Assim, o Rio de Janeiro foi se transformando gradualmente de maneira a dar, no fim do Império, numa cidade que não se compararia com as principais cidades da Europa, mas entre cidades europeias bem boas, de segundo nível, o Rio ocupava confortavelmente uma bela posição, o que representava um progresso, uma evolução.
Foi nesse tempo que também os estilos da Corte foram se aperfeiçoando. Por exemplo, os deputados e senadores, para participarem das reuniões da Câmara e do Senado, não iam vestidos de qualquer jeito, mas usavam um uniforme de veludo, com galões dourados.
Meu bisavô materno era deputado no tempo do Império, e nós conservávamos em casa – depois isso entrou para outros ramos da família – um objeto que era um encanto: um bonequinho que ele mandou um alfaiate do Rio vestir de deputado, com um chapeuzinho feito da mesma matéria com que eram confeccionados os chapéus dos deputados, no estilo do chapéu napoleônico, com dois bicos e um galão dourado. Num cabeleireiro, ele mandou fazer uma peruca igual à que ele usava. Já não era uma peruca branca, como no Ancien Régime, mas castanha e com cachos dos dois lados, como o deputado devia usar com o chapéu bicorne.
Esse meu bisavô era muito afeiçoado à sua mãe e, como não havia fotografia naquele tempo, para que ela guardasse a recordação dele vestido de deputado, enviou-lhe o bonequinho.
Estes pequenos pormenores mostram como o nível da vida do Rio foi se elevando, como expressão da riqueza, do bom gosto e da cultura geral do País que subiam também.
Razões pelas quais o Império caiu
Ao lado disso, o território brasileiro foi sendo ocupado por estradas de ferro enormes, muito razoáveis em lugares ou itinerários onde não havia possibilidade de navegação fluvial, algumas atravessando precipícios. Eram estradas que se mandavam vir inteiras de Londres – mas inteiras! – porque não havia metalúrgica aqui. Então, os trilhos vinham da Inglaterra, que era a melhor fabricante dessas coisas naquele tempo. Faziam-se obras de engenharia ousadas. Naquela época eram coisas importantes que acentuavam a ideia de progresso.
Entretanto, o Império caiu por três razões. Em primeiro lugar, porque a Europa inteira estava varrida por revoluções republicanas. A República era a forma de Revolução mais avançada naquele tempo, pois o comunismo era pouco frequente e não se tinha espraiado pelo mundo. Era, portanto, elegante ser republicano. Ser ateu e republicano denotava ser uma pessoa com ideias fortes.
Assim, nas Faculdades de Direito do Brasil, principalmente em São Paulo, Recife e Rio de Janeiro, os professores eram quase todos republicanos, ou então monarquistas que queriam reformar a Monarquia, reduzindo-a quase a um papel puramente decorativo, deixando as portas abertas para a República.
Ademais, os monarquistas não tinham coragem de defender suas convicções, enquanto os republicanos tinham. Tudo isso fazia da República a forma de governo do futuro.
Outro dado que concorreu para a proclamação da República foi o próprio feitio pessoal do Imperador. Ele se dizia religioso, e talvez fosse, mas não era católico praticante. Parecia um homem de bons costumes. Pelo menos na aparência, levava uma vida de família modelar: esposo respeitoso e pai excelente. Mas tinha toda espécie de preconceitos anticlericais, de onde nasceu a famosa questão religiosa com Dom Vital, da qual trataremos em outra ocasião.
(Continua no próximo número)
(Extraído de conferência de 30/11/1985)
1) Cf. Revista Dr. Plinio n. 253, p. 19-20.