Tratando com o próximo, não devemos desde logo considerar seus defeitos, mas precisamos ter um conhecimento exato de quais são seus lados positivos, e pensar como seria aquela alma se correspondesse ao que deve ser.
Para se ter um bom conhecimento da alma humana não se deve ir desde logo aprofundando na consideração dos defeitos. Essa é uma concepção detetivesca que para efeito de polícia terá sua utilidade, mas para nós não é a verdadeira.
Procurar ver no outro o que ele tem de melhor
É preciso, tratando com o próximo, ter um conhecimento exato de quais são os lados positivos, o que seria aquela alma se correspondesse ao que deve ser. A partir daí se faz uma medida do que a alma deveria ser e o que ela é, e se vê a diferença no que está faltando. Depois pode-se ter a consideração do que a pessoa infelizmente é, do que pode vir a ser, do mal para o qual ela tende. Mas a vista primeira que elucida todo o resto é o conhecimento do melhor aspecto da pessoa. Eu acho que o espírito dos ditos argutos não vê isto, e por essa razão eles acabam vendo muito pouca coisa.
Isso não é ingenuidade, porque não quer dizer que se imagine ser a pessoa como ela deveria ser, mas vê-se como ela deveria ser e não é. O que supõe na base da perspicácia uma generosidade de alma pela qual se é propenso a ver no outro o que ele tem de melhor, e não um rival, mas uma complementação de si próprio. Se a pessoa não tem esse estado de alma nunca chegará à verdadeira perspicácia.
Há, portanto, um certo discernimento na base de todo conhecimento, por onde se vê, antes de tudo, o melhor aspecto da pessoa e algo que tocaria quase na pessoa utópica, em que ela fosse a plena medida de si própria, na promessa de Deus. A partir disso, então, é que vêm os vários graus de conhecimento.
É muito importante esta impostação para conhecer as pessoas e saber agir em face delas, e ter assim o espírito retamente construído. Daí nasce um primeiro passo no caminho de uma ordem ideal realizável, que consiste em não se contentar com a vulgaridade, com a trivialidade, como sendo a própria face autêntica das coisas. Ao contrário, entender que a vulgaridade e a trivialidade são sempre deformações, pois nada é, ex natura propria, vulgar e trivial a não ser certas coisas materiais feitas por Deus para nos despertar a repulsa, pensar no Inferno, outras coisas assim; mas, de si, nada deve ser visto a não ser numa ordem cumeada que faz com que o justo viva de esperança e nunca perca, ao longo de sua vida, esse movimento de alma pelo qual ele trabalha continuamente para que todos e tudo se aproximem daquele ponto alto ideal.
A arte, a cultura, o verdadeiro progresso
Decorre daí uma visão de um plano de Deus sobre o conjunto das pessoas, das instituições, que é uma espécie de primeira elevação, primeiro salto que ainda não é voo, mas um ensaio de voo. A partir desse primeiro salto começa-se a subir para os saltos superiores.
A arte, a cultura, o progresso no sentido bom da palavra são uma tendência para isso. E o encanto da Europa esteve em que ela intensamente teve isso, foi muito modelada para que no contato com cada coisa se visse o ideal dela e que cada uma, sem ser idêntica ao ideal, participasse em algo do ideal que ela tinha consigo. E a alma assim como estou dizendo já acolhe essas participações com simpatia, com bondade, ela não olha para a coisa que apenas participa do seu próprio ideal e afirma frustrada: “Porcaria! Você não participa inteiramente.” Não, ela diz: “É pena você não participar inteiramente, mas em tal ponto eu me encanto.”
Há, portanto, uma espécie de posição benévola da alma que é o ponto inicial. A influência da Igreja ajuda fabulosamente as almas a serem assim. Eu conheci uma pessoa ou outra enormemente assim, que representava um convite contínuo a se colocar em função do próprio ideal. Não com repreensão, mas um convite generoso, bondoso, sem, contudo, ocultar o amargo da decepção.
Assim, há um primeiro movimento de alma por onde se constrói um mundo para o qual se deve tender com uma esperança infatigável, pois vendo existir ali um plano de Deus, tem-se sempre a esperança da misericórdia d’Ele e da realização.
A partir daí a pessoa pode subir, não digo cronologicamente, mas logicamente, para a utopia e depois para o sobrenatural. Há, pois, uma gradação que me parece interessante, mesmo porque não importa só à criança, uma vez que cada idade tem diante de si, a seu modo, essa encruzilhada e essa possibilidade que se abre.
Autêntico idealismo
Por exemplo, o modo de entender a vida de família pode comportar intimidades degradantes como também um respeito mútuo nobilitante, por mais pobre que seja, pois não entra em cena questão de dinheiro. Enfim, o convívio familiar pode elevar ou rebaixar, ter um dinamismo para cima ou para baixo, como também ter cruzadas algumas coisas muito altas e outras muito baixas onde, em geral, o muito baixo prevalece, naturalmente.
Ora, o feitio de espírito bem construído não omite nada disso. Ao pensar em morar no céu azul, não deixa de considerar, em concreto, o ambiente onde está, mas deseja o modelo ideal de todas as coisas que vê, e tende para ele, batalha por ele e é, portanto, um homem imerso nesta vida concreta. É muito diferente do utopista que se lança num voo com uma espécie de horror desta vida concreta, um indivíduo que entre duas leituras de Saint-Exupéry1 poderia perfeitamente estar numa estrebaria malcheirosa, e para quem a utopia faz as vezes de uma droga. Não é isso! É do alto de uma vida concebida nos seus modelos ideais, na sua arquetipia – os arquétipos têm um grande papel nisso – que se situa o idealismo, palavra conspurcada de todos os modos, mas cujo sentido bom encontra-se nessa faixa; esse é autêntico idealismo.
O indivíduo que, fazendo uma reta análise de si mesmo, tem a noção do que ele deveria ser e procura participar do seu próprio papel na medida em que suas condições lhe permitam, não é um impostor, não visa inculcar a ideia de ser ele o que não é, mas procura ser tudo quanto deve, fazendo-o notar às outras pessoas, não para se estadear, mas por fidelidade aos seus próprios princípios.
Isto é o oposto da teatralidade. O teatral procura fingir ser o que não é, não tem nenhuma vontade séria de ser o que deve e procura até aparentar o que ele não deve ser nem foi feito para ser.
Modos de enfrentar a vida no mundo atual
É preciso levar em conta que o mundo moderno corrente – não o da quarta Revolução, mas da terceira Revolução expirante em que nos encontramos – apresenta a seguinte máxima: olhar para baixo é um pesadelo, olhar para cima é um sonho. Nós devemos rejeitar o pesadelo e o sonho, e viver nessa realidade chata e lisa. Mais ainda, ter sonhos atrapalha uma postura prática da alma por onde se pode evitar o pesadelo.
Eu vejo, por exemplo, o modo de um indivíduo conduzir uma doença. O sujeito tem uma enfermidade qualquer e considera isso um pesadelo e uma inferioridade. Entretanto, uma vez que tem essa doença, ele precisa formar a ideia mais lúgubre de tudo quanto possa lhe suceder de pior e viver na espreita para evitar que isso aconteça. Então, ele transforma sua vida numa batalha contra as hipóteses-pesadelo que o espreitam ao longo da enfermidade. Mas a mesma coisa se dá em relação à carranca que lhe fez o diretor da repartição onde ele trabalha; idem com o tédio que o cliente decisivo sentiu quando conversou com ele e que talvez o faça abandonar o escritório…
De tudo isso o indivíduo prevê as coisas piores que podem acontecer, e fica lutando contra aquilo para evitar uma ruína na sua vidinha e conseguir os interstícios de umas férias gostosas, numa viagem de transatlântico para não sei onde. Isso não é vida, não é ideal, mas é o mundo atual.
Eu vi pessoas dos antigos tempos adoecerem. Elas sabiam que havia as hipóteses extremas, mas as hipóteses médias eram sempre as mais prováveis. Então, preparavam-se para estas e viviam confortavelmente dentro da doença. O que se pode fazer a não ser isso? Hoje, não: consultam-se quinze médicos, fazem não sei mais o quê, conversam entre si sobre Medicina para saber se há mais uma invenção…
Um apelo para o mais elevado
A inocência é uma visão global das coisas que contém o que estou dizendo. Portanto, não estou fazendo outra coisa senão traçar um pormenor da inocência. Por causa disso também, a alma verdadeiramente inocente é benévola, com boa vontade se dá, acolhe, se abre. Com as agruras da vida, a inocência comporta uma decepção muito triste, mas não uma amargura antiaxiológica. Ela vê a realidade, mas tem esperança de que isso se recomponha, se reconstitua, pelo menos em alguma medida, e trabalha generosamente neste sentido, sem ilusões e sem se deixar arrastar nem calcar aos pés. Quer dizer, a inocência espera do mal todo o mal, e quando vê em alguém uma pontinha de mal, começa a recear que aquilo tome conta da pessoa à maneira de um câncer; isto é positivo. Contudo, mesmo na pior decepção aquela esperança fica.
Neste sentido é muito bonito o modo de Nosso Senhor tratar Judas. Aquela pergunta: “Judas, com um ósculo trais o Filho do Homem?” (Lc 22, 48) ainda tem algo, como quem diz: “Eu vejo tudo quanto há em você e lhe dou uma graça suprema para ser o que deveria.” “Amigo, a que vieste?” (Mt 26, 50). Pode haver uma coisa que indique mais a perseverança d’Ele na esperança de que Judas ainda viesse a ser o que deveria? Entretanto, Ele media também, sem ilusões, a infâmia aonde o traidor estava se atirando.
Isso gera um convívio no qual está presente o vislumbre de todo o bem, até o máximo a que pode chegar uma pessoa, e de todo o mal, também até o extremo onde pode afundar, o que traz um relacionamento ao mesmo tempo sem ilusões e nunca desesperançado, que tem sempre algo de condicional, de quem pensa: “Levarei a minha esperança até o último limite do ‘amigo, a que vieste?’, mas não me iludirei e saberei por que escadas tu desces, e o que de ti devo esperar, e também saberei tomar as precauções para me defender.” O que supõe, naturalmente, muito equilíbrio.
Como a maior parte das pessoas não leva em consideração a existência da graça, não interpreta bem o que se passa dentro de si. Quando alguém tem numa parte da alma algum elemento de virtude sobrenatural, que não recusou inteiramente, olha para si e pensa ter reservas morais ilimitadas e muito nobres, sente com isto um apelo para subir, o qual, de fato, vem da graça.
Papel da bondade
Por outro lado, quem tem experiência da vida espiritual é levado a reconhecer o papel da graça neste ponto: não há quem não tenha fossas dentro da alma e que não se sinta incapaz de vencê-las sem um milagre. Uso a palavra “fossas” de propósito. São infâmias, torpezas desconcertantes que a pessoa sente que não tem condições de vencer a não ser pelo milagre. Ora, para isso entra uma ação da graça, e a pessoa espera que esse milagre se opere.
Até vou dizer mais: isso se presta, com certa frequência, a abusos porque acaba dando uma noção errada da estabilidade à beira do precipício, e a pessoa não se dá conta de que, habituando-se a viver à borda do precipício, pode até não cair nele, mas o solo debaixo dos pés pode ir afundando cada vez mais, constituindo um outro modo de afundar num precipício sem se dar conta.
Cada um de nós carrega fossas asquerosas dentro da alma, e é justo, normal, que alguém receie cair nessas fossas. Como é natural também que outro tenha em nós a grande esperança de que alcancemos altos píncaros, e que no relacionamento conosco ele deseje enormemente que atinjamos o nosso píncaro, mas não sem um olhar atento para nos ajudar e se proteger, caso estejamos facilitando com a fossa. Não podemos ter a menor ilusão a esse respeito.
Aqui entra o papel curioso da bondade: quando alguém se aproxima muito de sua própria fossa, mas sente que o outro persevera em esperar que ele suba, recebe um impulso para cima. É uma baforada vinda de fora para dentro que levanta o homem todo; isto devemos fazer com o outro. Por isso Nosso Senhor disse a Judas: “Amigo, a que vieste?” Por que Ele disse “amigo”? Porque se naquela hora Judas dissesse “sim”, entrava na condição de amigo de Nosso Senhor, diretamente. O convite que entrou nesse “amigo” é o que devemos ter para todos, até depois de tudo consumado.
Infelizmente, as pessoas se tornaram insensíveis a esta forma de bondade como, aliás, Judas o foi. Pode-se usar esta bondade como se queira, as pessoas não se incomodam. Elas preferem a cumplicidade. Como não recebem, tornam-se inimigas.
(Extraído de conferência de 2/6/1982)
1) Antoine Jean-Baptiste Marie Roger Foscolombe, Conde de Saint-Exupéry. Escritor, ilustrador e piloto francês (*1900 – †1944).