Embora a cultura alemã tenha exercido uma importante influência na formação da mentalidade de Dr. Plinio, ele soube analisá-la com cuidado, discernindo os aspectos bons e maus, de maneira a assimilar o que correspondia ao espírito católico e rejeitar tudo quanto se opunha a este.
A Fräulein Mathilde entrou em minha casa porque mamãe, sendo muito doente, principalmente nas primeiras décadas de minha existência, não tinha condições para educar minha irmã e eu. A Fräulein foi contratada em Paris e, para esse efeito, trazida da Alemanha para cá.
Elaborando remotamente o tema “Ambientes, Costumes, Civilizações”
Dona Lucilia, sempre com recursos pecuniários moderados, dizia: “Num ponto não farei economia: é na educação de meus filhos. Eles terão o que for preciso.” Realmente, não posso imaginar pessoa mais competente, mais inteligente e mais capaz de influenciar os seus alunos do que a Fräulein Mathilde. Ela foi excelente!
Possuía uma característica dos alemães: muito gosto em aconselhar. O tempo inteiro ela estava pensando, elucubrando e dando conselhos. E com um senso de adaptação ponderável, ela, que educava em casa três crianças – minha irmã, uma primazinha que morava conosco e eu –, adaptava isso ao modo brasileiro, e parece ter aprendido instintivamente que para afirmar a influência dela era preciso contar histórias.
Então, para justificar os conselhos dela e a orientação que tinha empenho em nos dar, narrava histórias relacionadas com sua vida na Baviera. Ela era de uma cidade que teve importância histórica e, do ponto de vista artístico, muito recomendável: Regensburg. Regen quer dizer, chuva; Regensburg, cidade das chuvas.
Contava também histórias do tempo em que ela foi governanta em outras casas. Durante algum tempo esteve no Uruguai, onde trabalhou na casa de uns ingleses muito ricos que tinham negócios nesse país. Depois, na família de duas meninas da aristocracia inglesa, chamadas Glads e Monona. Se eu conversar um pouco com minha irmã, ainda me lembro de uma pilha de casos da Glads e da Monona.
Posteriormente, esteve em uma família da nobreza francesa chamada Daubigné. E a Fräulein insistia muito: “Não é Daubigni, é Daubigné. Um dia vocês entenderão o porquê. Agora são muito crianças para saber.” E eu pegava aquilo e dizia: “Olha, é Daubigné e não Daubigni!”
Bem mais tarde eu soube. A Fräulein já se tinha perdido nos nimbos da História. Daubigné é a família da Marquesa de Maintenon, segunda esposa de Luís XIV. Daubigni é uma família de mediana nobreza. E as meninas educadas pela Fräulein eram Daubigné.
Depois educou umas meninas polonesas. Ela correu o mundo! Então, contava história de tudo isso.
Por feitio, temperamento, inclinação, desde que eu me lembro de mim mesmo, sempre fui enormemente propenso a prestar atenção em psicologias e ambientes. De maneira que ela me contava aquilo tudo e eu prestava uma atenção enorme em como eram as pessoas, e depois que ambiente aquilo constituía e no que aqueles vários ambientes eram parecidos ou diferentes do ambiente em que eu vivia. E assim, desde pequeno, pelas diferenças de ambientes sobre os quais ela falava, eu ia pré-elaborando remotamente o tema “Ambientes, Costumes, Civilizações”.
Como uma estrela, a França assiste ao que se passa na Terra
Naturalmente, a carga mais forte que ela trazia era alemã. Ela não dizia muitas coisas da Áustria. Eu tive minha atenção chamada para a Áustria depois. Ela falava muito mais do mundo germânico nascido com Bismarck1. Quer dizer, Prússia, Alemanha, Würtenberg, Saxen, Baden e a Renânia. Era o essencial. A Áustria ficava meio lateral. Ela não dizia, mas se via que o polo era a Prússia. Eu ia notando todo o modo de ser dela, vendo o contraste com jeitos brasileiros, e formou-se no meu espírito o contraste Brasil-Alemanha do qual resultou uma coisa, a meu ver, curiosa. De dentro dos meus olhos brasileiros, fiz uma análise própria da Alemanha que, desde o tempo de menino até hoje, foi sendo ampliada, completada, porém não desmentida.
A partir dos prismas alemães que a Fräulein punha, fui fazendo uma análise do Brasil. E as coisas foram se encontrando. De maneira que, se não fosse em função de determinados defeitos dos alemães, eu nunca teria descoberto certas qualidades do Brasil, que nós mesmos brasileiros não prezamos tanto quanto devemos. Mas, por outro lado, se não fosse em função de certos defeitos do Brasil, eu nunca teria visto tão bem certas qualidades da Alemanha. Quer dizer, isso se entrecruzou e eu poderia ainda desdobrar esses entrecruzamentos se não fosse dar à matéria um vulto que ela não merece.
Formaram-se assim dois pontos de comparação, acima dos quais, intacta, estava a admiração pela França, que eu apenas de soslaio comparava um pouco com a Alemanha e com o Brasil, mas era como um astro. Na Terra pode-se discutir, pode-se lutar, mas a estrela assiste de cima.
Para termos bem em vista a análise da Alemanha e mais tarde a do Brasil, é preciso tomar em consideração o seguinte: na nossa linguagem corrente, chamamos de permissivismo a atitude de temperamento, de espírito, e a convicção moral – portanto, filosófica porque a Moral é uma parte da Filosofia – de que se deve deixar as pessoas fazerem tudo. Não se deve traçar regra nenhuma. Elas fazem aquilo de que gostam. No campo científico, o permissivismo tem um nome: freudismo. No campo moral, outro nome: liberalismo, ou, se quiserem, anarquismo. Já passamos do campo moral para o campo político, a ausência de toda lei, de toda regra é a característica do permissivismo.
O homem de bom coração
Porém, uma pergunta que me poderia ser feita é se o permissivismo pulou de dentro da realidade como um boneco de mola pode saltar do interior de uma caixa, ou se ele mesmo foi gerado, preparado anteriormente.
Aqui temos dois polos. A Alemanha é um país entregue ao permissivismo. O Brasil vai, em matéria de permissivismo, como vemos. Qual foi a origem do permissivismo na Alemanha e no Brasil? Por que vias chegaram ao mesmo ponto?
O permissivismo no Brasil teve por origem, por “mãe”, a bondade. Eu sei que a afirmação choca, mas é assim. “Coitado! É preciso ter bondade, misericórdia! Ah, afinal deixa passar! Não se incomode. Este é o espírito cristão: deixe tudo correr para onde quiser, em nome do bom coração.”
O homem de bom coração era aquele que permitia tudo. Não em nome do princípio de que tudo deve ser permitido, pois este é um princípio novo. Naquele tempo dizia-se que nada deve ser punido. Tal princípio vigorava, por exemplo, quando se afirmava que não se deve roubar, ou comer pegando diretamente com os dedos o alimento. Mas se alguém roubou? Pobre coitado! Sabe-se lá que necessidade ele teve para roubar… Deixa passar. Se outro comeu com a mão, dir-se-á que ele é um pouco extravagante, mas é tão evidente que andou mal, que daqui a pouco se arrepende e vai comer direito, com faca e garfo. Bondade, bondade, bondade!
Assim eu via nos ambientes tradicionais, que eram os meus, muito frequentemente as regras mais fundamentais, mais vincadas, mais marcadas irem sendo, não propriamente negadas em tese – alguns as negavam, mas esses eram os extravagantes; a média das pessoas não as negava, como também não as afirmava –, mas ficavam assim meio pairando no ar, tolerando-se toda espécie de violação da regra em nome da bondade.
“Sejamos bons, tenhamos compaixão. Nunca falemos mal de ninguém. Tenha alguém feito o mal que fez, não se fala mal porque é falta de caridade, pois esta consiste em ver só as qualidades dos outros, não os defeitos.”
Então, a Moral, a educação, até a Gramática, o modo de pronunciar as palavras, de conversar, tudo se erodindo, esvaindo, os vocabulários se empobrecendo, os erros de português invadindo o vocabulário como erva daninha. As más maneiras substituindo as boas de antigamente, mais ou menos como as joias falsas podem inundar o mercado e roubar clientes das verdadeiras.
No fundo, o raciocínio era o seguinte: “cumprir uma regra pode ser desagradável; fazer algo desagradável é sofrer; causar sofrimento a alguém é maldade; logo, ninguém reclama o cumprimento de nenhuma regra e está acabado.” Isso era a bondade!
Daí veio, depois, o permissivismo que afirma: não há regra! Primeiro, a violação da regra é impune, e posteriormente se declara que não existe regra, está acabado.
Esse modo evidentemente errado de entender a bondade e essa atitude perante ela encontra tal ou qual consonância com o temperamento brasileiro. Este é afetivo, desinteressado, acolhedor, afável, gosta de querer e de ser querido. Normalmente, salvo situações excepcionais, tem horror à briga. Quando o brasileiro é briguento, ainda o é menos do que um estrangeiro seria nas mesmas circunstâncias. Nós gostamos da vida calma, onde todos se entendem sem bagunça e tudo dá num acordo.
Críticas aos moles que não têm lógica, elogios à coerência e à força de vontade
Ora, eu via no ambiente criado pela Fräulein o contrário disso: a regra saliente, protuberante. Já o modo de chamar atenção era característico disso. Se, por exemplo, eu fazia alguma coisa errada, ela não dizia “Plinio”, acentuando normalmente o primeiro “i”. Mas “Pliniô!” Então, eu já tocava todos os alertas, pois sabia que qualquer coisa não estava direito. Em seguida vinha a pergunta:
— Você fez tal coisa assim?
— Sim, senhora, fiz.
— Está bem, então tal castigo.
Castigo físico, nunca. Era, por exemplo, privar-me de certa guloseima, ao que eu era sensibilíssimo, e outras punições do gênero.
Os casos contados por ela giravam em torno de uma constante: havia um dever a cumprir e a pessoa que precisaria cumpri-lo foi mole, e não o fez porque não era gostoso. Então, deu mau resultado e a pessoa levou na cabeça. Isso na vida terrena, pois a Fräulein não era de falar do Céu, da vida eterna. Esse aspecto sobrenatural, aprendi com mamãe, no Colégio São Luís e nas aulas de Catecismo na Igreja Santa Cecília. Com ela, não. Ela se dizia católica, mas o era pifiamente. Porém, era portadora de uma tradição que, em muitos aspectos, mil anos de civilização católica tinham formado. De maneira que aquilo andava nos trilhos bons.
Sempre os episódios contados pela Fräulein desfechavam em um comentário depreciativo para com a pessoa mole que não teve a lógica, não soube prever, dispor dos meios e arrancar de si a força para cumprir seu dever; acompanhado da ideia de que a coerência e a força de vontade exigiam do homem uma Leistung2 – termo alemão utilizado por ela com um matiz intraduzível para o português –, em que ele se empenhasse inteiro. Esse era um homem! O resto era um mole, desprezível, um tipo que fracassaria, cumulado de todo o nojo do universo.
Eu ouvia aquelas narrações e, naturalmente, filosofava. O primeiro obstáculo encontrado por mim era minha moleza. Fui uma criança ultramole. Eu pensava: “O que essa mulher está exigindo é uma vida dura como tudo. Como é que eu vou pegar essa moleza toda e pôr isso em movimento como ela está indicando?”
Mas, de outro lado, eu não deixava de perceber que minha preceptora tinha razão a respeito dos fracassos da moleza. E se em vários pontos o meu modo de ser nativo me desservia, num ponto me servia: o que eu achava desejável, dentro de toda a minha preguiça de obter, eu queria mesmo; e o que julgava indesejável, rejeitava categoricamente.
Não tardei a colocar diante de meus olhos a seguinte ideia: em última análise, ou terei uma existência de luta contínua para acabar tendo o que quero, ou serei um armazém de pancadas da vida, levando uma existência que não desejo. Diante de mim, num prato da balança está a moleza; no outro prato estão a lógica e a energia. No plano terreno – o plano sobrenatural entrou um pouco depois –, qual é a pior vida? Do esforçado que toca seu barco para onde quer ou do moleirão que se deita, mas o barco vai parar não se sabe onde? Eu pensava: “No fundo, ainda é melhor ser esforçado. A Fräulein tem razão.”
Força, energia, ênfase e resolução
Tudo isso me levava a prestar muita atenção no modo de ser alemão, nas menores coisas, porque me vinham lições de que, sem pretender o ridículo de bancar o alemão – sou brasileiro, acabou-se –, entretanto há qualidades que se podem adaptar e incrustar na mentalidade brasileira.
Por exemplo, algumas pequenas impressões a respeito da língua alemã. Eu notava os meus compatriotas acharem o alemão feio, com palavras duras, ásperas, cheias de consoantes, com poucas vogais, dando a impressão de agressivas. Tem-se a impressão do exército alemão marchando em passo de ganso por cima da pobre França, esmagando papoulas e trigais no caminho. Assim era a língua alemã aos ouvidos brasileiros.
O brasileiro gosta da língua flexível, sonora, com muitas vogais, e estas bem abertas. Das línguas do Ocidente, creio que poucas terão as vogais tão abertas quanto o português falado no Brasil. Em nossa língua aprecia-se – sobretudo os escritores mais recentes – a frase breve, a ordem direta, o pensamento claro, fácil de captar. A palavra e a frase alemãs constroem-se de um modo completamente diferente, e as palavras são, muitas vezes, compostas. De maneira que com dois ou três vocábulos, de significados diversos, compõe-se um só termo.
Dou um exemplo: a palavra Schnurrbart. Schnur quer dizer barbante, Bart é barba. Com os conceitos de barbante e de barba os alemães compuseram o conceito de bigode. Então, bigode é Schnurrbart. Se tivéssemos que dizer “uma barba de barbante”, falaríamos assim. Os alemães dizem “uma de barbante barba”. Portanto, para se referir a um bigode, o pensamento deles é: “uma de barbante barba.” É um outro mundo, que eu aprecio, mas para nós soa como uma acrobacia.
As frases são, com muita frequência, construídas também em ordem inversa. Assim, em vez de vir sujeito, verbo, objeto direto ou indireto e advérbios, a coisa é de outra maneira, comumente com o verbo no final. Por exemplo, em português se diz: “Você não quer fazer isso?” Em alemão seria: “Willst du es nicht machen?”– “Quer você isso não fazer?”
O modo de utilizar a língua é como no latim: tem nominativo, genitivo, dativo, acusativo, vocativo e ablativo. Logo, pela declinação no final da palavra se compõe a frase.
Eu sentia, em torno de mim, que isso era atacado como sendo feio, mas tinha uma forte beleza. É preciso dizer – não me queiram mal, os alemães –, um tanto rude, agreste. Não é flor de jardim, mas é pinheiro da floresta: espetado, verde, alto e combativo. Mas correspondia à beleza de um povo entusiasta da regra, da lógica, da força de vontade e, por causa disso, jogando com as palavras, compondo, fazendo de cada vocábulo uma definição de sentido, invertendo a ordem das frases para darem mais suco e serem mais fortes. Tudo é força, energia, ênfase e resolução. A beleza agreste disso me encantava e entusiasmava.
As mil suavidades da língua francesa
Isso não me impedia, entretanto, de me derreter com as mil suavidades, bem inteligentes e finas como lâminas de cristal, da língua francesa. É outra questão. Contudo, no ponto de observação dessas duas línguas e culturas, desses dois modos de ser, e da secular contenda entre ambos os povos, mantinha-me alheio, por ser de origem exclusivamente brasileira. Portanto, de fora da briga, mas fazendo o que está no nosso temperamento brasileiro: selecionando de cá, de lá; isto é bom, aquilo não é… Incorpora o que gosta, afasta o que não gosta, e aplaude ambos os lados bons. Eu pensava com os meus botões: “Um espírito onde coubesse admiração pelas duas culturas, e que soubesse tirar o suco delas, estaria acima de ambas.”
Eu ouvia comentários de alguns brasileiros intoxicados pela propaganda antialemã da I Guerra Mundial, que diziam: “Olha que língua rude! Isso aqui parece uma língua de bárbaro!” Entrava, no fundo, o gosto da palavra sonora, agradável, melódica, mas também preguiça de realizar aquele esforço varonil, sem o qual nenhuma nação chega ao teto de si mesma: Aqui precisa corrigir, vamos lá! Toca para a frente.
Isso me levou a prestar atenção nas várias coisas que a Fräulein Mathilde contava, mas também comecei a me interessar por narrações históricas alemãs e algumas caçoadas feitas por franceses que, às vezes, se referiam a defeitos, mas às vezes a qualidades. E pensava: “Está vendo? Aqui estão atacando nos alemães uma qualidade. Nessa crítica não embarco, pois aquilo está direito.”
O foco do espírito batalhador era a Prússia
Acabei percebendo que o foco dessas qualidades que eu admirava estava na parte da Alemanha que, entretanto, não apreciava: a Prússia. A Baviera, muito simpática, encantadora, artística ao último ponto, gentil e acolhedora o quanto se pode ser, terra das comedorias excelentes, mas não da guerra, do militarismo, do heroísmo, da força de vontade até arrebentar… Notei que o foco desse espírito enérgico, batalhador era a Prússia, e que algo da ambientação prussiana marcava na Alemanha essas qualidades que eu apreciava tanto.
Entretanto, eu considerava outras lacunas como, por exemplo, diplomacia nula. Para usar uma frase francesa de um verso de Molière: Hôte toi de là, pour que je me mêtre – Retira-te daí para que eu me ponha, esta é a “diplomacia”: “Eu quero esse lugar, sai porque vou ficar aqui. Se não quiseres, pancada! Por isso tenho tais fábricas, tais recursos, e te esmago!” Assim não funciona, vamos devagar, as coisas não são desse jeito. Ademais, há uma coisa chamada energia, mas há outra chamada inteligência. E na inteligência, há a subtileza. O que eles fazem disso?
E, sobretudo, o que os tornava censuráveis até onde se pode ser: é o foco do Protestantismo na Alemanha. Pecado com o qual não se transige, levantaram-se contra Roma, negaram o Papado, instituíram um livre exame, que é o caos, expandiram isso pela Europa inteira.
Outra objeção: a Alemanha da qual ouvia falar era a Alemanha fabulosa dos cavaleiros da Ordem Teutônica, que saíam a cavalo para converter o mundo báltico. Isso deu lugar à mania de pensamento laico, meramente científico, de ciências positivas e naturais, só reconhecendo como verdade o que é evidente. Por causa disso, quando se metiam em Filosofia, os filósofos alemães só admitiam como verdadeiro, aquilo que eles percebiam e pensavam. É o caos mental, em relação ao qual tenho todas as reservas, todas as distâncias e todas as objeções.
Mas, de outro lado, como gostei quando soube que uns dez por cento da Prússia se tinha consevado católica, e esses foram os católicos mais contrarrevolucionários da Alemanha no século XIX!
A vidinha cintilante do pequeno e médio burguês
Outra coisa que me agradava muito no ambiente europeu em geral, mas no alemão de um modo particular, era a atmosfera que envolvia o pequeno ou o médio burguês, do tempo que eu conheci a Alemanha, uma organização quase inocente da vida de todos os dias. Casa pequena, com cortininhas muito bem arranjadinhas presas dos dois lados, de pano barato, comum, mas com cores alegres, com seu vidrinho bem limpo, do lado de fora um pote de gerânios que sorri ao verão que o está iluminando. Ou, se é inverno e amanhece em dia de neve, o gelo forma certas figuras geométricas na vidraça. Venezianazinha verde conservada sempre bem pintadinha, cuja fechadura não range, mas abre e fecha bem direitinho. Dentro, uma lareira com aquela madeira bem serrada. Numa gaiola, um passarinho. E quando chega a hora do passarinho dormir, e as pessoas ainda não se recolheram, há uma espécie de pano para colocar em cima da gaiola, e o passarinho entra na noite antes das pessoas. Mas é um pano bonito, a coisa é organizada, lava-se, renova-se, a gaiola do passarinho é limpíssima, tem um alpiste de primeira qualidade, o dono ou a dona da casa assobia, o passarinho responde, eles têm um certo diálogo com o passarinho. Num canto, está um instrumento que o filho toca. É um violininho; a irmã dele também canta, deixando os pais derretidos… De dentro exala um bom odor agradável, está sendo preparado um pão. É a terra dos pães! A Fräulein Mathilde elogiava os Milchbrötchen,– “de leite pãezinhos”–, que em Regensburg parece que havia em quantidade.
Todo esse interior constitui um ambiente em que os prazeres inocentes da vida perfumam de tal maneira, que eu nem saberia bem dizer. Essa vidinha cintilante do pequeno e médio burguês não notei em nenhum outro lugar. É uma maravilha da velha Alemanha.
O ápice da França é, por exemplo, Chenonceaux, do qual se poderia dizer o que se afirmou de Fontainebleau: qui porte sur son nom la beauté des eaux – que traz no seu nome a beleza das águas. Não tem dúvida. É a França dos castelos.
Na Alemanha, cada classe social tem o ápice próprio. O Junker é o gentil-homem prussiano. E há um tipo de Junker tão agreste que eles chamam Krautjunker – um Junker da erva. Mas é daqueles!
Bismarck era mais ou menos um Krautjunker. Cerveja, sanduíches com camadas de manteiga fresca e vários recheios dispostos em “andares”. Morde aquilo, conversando com o interlocutor muito seriamente sobre política ou Filosofia, ou então os dois cantando. Podem ser dois velhos, cantam e lá vai!
Desde o Junker ou desde o Kaiser até o último pequeno funcionário público, que tem seu lugar num alveolozinho com cortininha, tudo com certo esplendor. O conjunto disso é o píncaro da Alemanha.
O voo de espírito brasileiro
Mas, ao lado de tudo isso, havia a Alemanha modernizada,a Alemanha das fábricas, das máquinas, da organização no corre-corre que já postulava a Alemanha dos arranha-céus, dos fichários, do anonimato; a Alemanha de Hitler estava se remexendo para entrar dentro disso. A velha Alemanha morria e a nova Alemanha nascia.
Uma mania de limpeza levada ao ridículo. Eu li as memórias de uma Infanta espanhola que contava a viagem dela à Alemanha. Ela foi convidada pelo Kaiser para ver Berlim bem cedinho. Antes de começar o dia – aliás, eminentemente berlinense – limpavam toda a cidade, percorrendo-a com umas escovas giratórias enormes. Pouco depois começava o horário de todo mundo ir para o trabalho, de maneira que se entrava na cidade limpa. A Infanta Eulália conta que o Kaiser tinha uma tal mania de limpeza que aconteceu, por duas ou três vezes, de ele descer do carro e apanhar no chão papel que não tinha sido recolhido pelas escovas. Francisco José3 não faria isso, nem lhe passaria pela cabeça. Mas era a Alemanha da limpeza mecânica, da coisa já levada ao delírio, ao exagero, como não deve ser. No total, uma imensidade de coisas para aprender e algumas para assimilar.
O que aprendi ao apreciar o Brasil? Eu só conscientizei isso nas viagens que fiz à Europa nos anos 1950, 1952 e 1959. Então compreendi o que é o voo de espírito brasileiro, a rapidez, a elasticidade, a facilidade da conjugação dos pensamentos, e a possibilidade de assimilar para formar um todo. E pensei: “No total, é uma grande coisa ser eles. Mas se nós soubermos continuar a sermos nós, corrigindo-nos e assimilando o que os outros países têm de bom, ainda é melhor ser brasileiro.”
Foi viajando que compreendi todo o valor que há em descender de uma nação que não se deixou dominar pelo Protestantismo, nem gerou a Revolução Francesa, embora se tenha intoxicado com ela. Uma nação que tem o gênio latino na sua fosforescência, na sua cintilação incessante. E realmente é muito bom!
(Extraído de conferência de 28/2/1981)
1) Otto Eduard Leopold von Bismarck-Schönhausen, Príncipe de Bismarck, Duque de Lauenburg (*1815 – †1898). Nobre, diplomata e político prussiano.
2) Do alemão, entre outros significados: poder, potência, performance, conquista, desempenho.
3) Francisco José (*1830 – †1916). Imperador da Áustria e Rei da Hungria, Croácia e Boêmia.