Santo Erlembaldo, Duque de Milão, era riquíssimo e possuía um magnífico palácio. Estando a Diocese de Milão dominada por elementos simoníacos e favorecedores da corrupção dos costumes, dirigiu-se ele a Roma, e o Papa ordenou-lhe que empregasse as armas contra aqueles ímpios. Lutou como um leão e obteve vitórias extraordinárias, mas foi assassinado pelos inimigos da Igreja.
Tenho para comentar uma ficha extraída do livro do Abbé Profillet, Santos militares1, que diz o seguinte:
Varão riquíssimo, corajoso como um leão
Santo Erlembaldo, senhor milanês, intrépido cavaleiro de Cristo, falecido no ano de 1075.
Erlembaldo Cotta pertenceu a uma ilustre família milanesa. Desde jovem ingressou na carreira das armas e, apesar de pouco robusto, era corajoso como um leão.
Riquíssimo, o palácio que possuía em Milão igualava-se em magnificência ao de um rei. Entretanto, não tinha o seu coração preso aos bens da Terra, mas sim a Deus. Assim, pretendendo entrar para a vida monástica, foi impedido pelo Santo Diácono Arialdo, que o aconselhou a lutar pela Igreja como um leigo. Mostrou-lhe que a Igreja passava por uma hora de trevas, com o alastramento da simonia e a apostasia do clero, protegidos, tais erros, pelo poder civil.
Erlembaldo, então, dirigiu-se a Roma, onde o Papa Alexandre, apoiado por vários cardeais, ordenou-lhe que voltasse para Milão e ajudasse a Arialdo a combater os inimigos de Cristo, e resistisse até a morte se preciso fosse. Deram também o nome de São Pedro ao estandarte de guerreiro, que deveria ter sempre à mão para reprimir o furor dos hereges. Esse estandarte foi sustentado pelo Santo com perfeita lealdade durante dezoito anos.
Este ilustre senhor, aparecia em público sempre ricamente vestido, como convinha à sua dignidade, acompanhado de um pomposo séquito. Em sua vida particular, contudo, ao rezar se revestia de um pobre traje de lã. Quando andava pelas ruas de Milão, o povo o acompanhava para homenageá-lo. Se ele percebia na multidão algum maltrapilho ou algum doente, fazia um sinal a um seu servidor para que a pessoa fosse conduzida secretamente ao seu palácio. Aí o nobre cuidava do pobre miserável com as suas próprias mãos. Era assim tão carinhoso como devotado aos interesses da Igreja.
Isto era de tal forma que o Bem-aventurado Arialdo dizia sempre: “Ai! Com exceção de Erlembaldo e do eclesiástico Nazário, não encontro senão pessoas que, com falsa prudência, aconselham-me o silêncio e que deixam os simoníacos impudicos exercerem em liberdade as obras do demônio.”
Havia já dez anos que o Duque defendia, com zelo, a causa de Deus, quando São Pedro Damião, legado papal, exigiu de todos os bispos de Milão e do Arcebispo Guido um juramento de condenação à simonia. Todos juraram, mas ao vagarem algumas sedes o próprio Arcebispo realizou um tráfico ilegítimo. Erlembaldo foi enviado a Roma para conferenciar-se com o Papa sobre o problema, e regressou com carta de excomunhão para o Arcebispo. Era um dia de Pentecostes e o prelado simoníaco conseguiu reunir enorme multidão na igreja. Aí, segurando a bula papal que o condenava, excitou o povo contra Arialdo e Erlembaldo.
“Jamais – disse ele – esta cidade vai obedecer à Igreja romana. Abaixo os miseráveis que querem arrebatar-nos a nossa antiga liberdade”, e o populacho gritava: “Matemo-los logo, matemo-los logo!”, e atiraram-se contra os dois servidores de Deus que estavam na igreja. Os clérigos sobre Arialdo, e os leigos sobre o cavaleiro. Arialdo foi gravemente ferido, mas Erlembaldo defendeu-se tão bem com seu cetro militar, que ninguém conseguiu se aproximar dele.
Arialdo refez-se de suas feridas e empreendeu uma viagem a Roma. No caminho, foi entregue por um sacerdote aos partidários do Arcebispo simoníaco que o arrastaram para um lugar deserto, onde foi morto por dois clérigos que o mutilaram horrivelmente. Erlembaldo, ao saber do ocorrido, foi buscar os restos mortais do amigo. Acompanhado de grande multidão, depositou o corpo de Santo Arialdo na Igreja de São Sancho.
Segurando o estandarte, desbaratou os inimigos da Igreja
No ano seguinte, o Arcebispo Guido reconciliou-se com a Santa Sé e decidiu-se de antemão escolher o seu sucessor, nomeando Gotefrido, seu secretário, para ocupar o seu cargo após sua morte. Mas os habitantes de Milão, especialmente os camponeses, repeliram esse nome com horror. Vendo o seu plano frustrado, Guido procurou Erlembaldo para tentar um acordo com o Duque, mas este considerou não haver perdão para um prelado tão culpado e o fez encerrar-se no mosteiro de São Celso. Gotefrido, então, temendo pelo seu futuro, se fortificou no castelo, então inexpugnado, de Castillon. Os milaneses decidiram desalojá-lo de lá e já o estavam conseguindo quando o inimigo provocou um grande incêndio em Milão. Ante o perigo, os atacantes retrocederam e seriam derrotados se Erlembaldo, tomando o estandarte de São Pedro, não atacasse com tal impetuosidade que desbaratou completamente os inimigos.
O Papa São Gregório VII nomeou novo arcebispo para Milão, excomungou Gotefrido e encorajou o Duque a defender a sede de Santo Ambrósio. Ainda muito lutou Erlembaldo para garantir os legítimos direitos do Arcebispo.
Não podendo derrotá-lo em batalhas, decidiram os seus inimigos recorrer ao assassinato. Um dia em que o Duque de Milão falava aos povos, os conjurados se precipitaram contra ele. Embora resistindo heroicamente, foi vencido pelo número. Segurava em sua mão o estandarte de São Pedro, quando sucumbiu aos golpes do assassino. Sua morte foi chorada por todos os fiéis da Igreja romana, até mesmo nos confins da Inglaterra. Ninguém se conforma com o desaparecimento do intrépido cavaleiro de Cristo, como era chamado por São Gregório VII. O Beato Urbano II, pouco tempo depois, colocou Erlembaldo no número dos Santos.
Simonia e corrupção dos cargos eclesiásticos
É uma das mais bonitas fichas que nós temos recebido. A biografia dele é tão cheia de dados e aspectos, que talvez o comentário seja um pouco longo. Procurarei ser tão breve quanto possível, mas vamos analisar um pouquinho o que se passou na vida deste Santo.
Em primeiro lugar, nota-se a situação da Itália nesse tempo. Ela estava dividida em duas correntes: uma obedecia à Igreja romana, Sede infalível de São Pedro; a outra tinha laivos de heresia, mas se caracterizava, além do defeito doutrinário, também pelo fato de seus membros terem muito maus costumes e praticarem a simonia, ato pelo qual uma pessoa vende um cargo eclesiástico. Um arcebispo, por exemplo, tenta nomear um vigário ou um cônego e, ao invés de escolher o mais digno, põe aquilo em leilão e dá o posto para quem pagar mais. Na Idade Média, como a generosidade popular era muito grande, esses cargos eram bastante lucrativos. Havia a possibilidade de fazer-se muito dinheiro com um cargo eclesiástico, sobretudo se a honestidade não fosse grande. Então, havia muitos ambiciosos que disputavam esses cargos.
Isso vinha de acordo com a corrupção, porque o indivíduo comprava um cargo para o qual não tinha vocação; depois, naturalmente, não cumpria com as obrigações dessa função. Entre outras coisas, não era casto, de maneira que a corrupção entrava aos borbotões. Além disso, quem cumpre um cargo interessado apenas em fazer dinheiro, dá em roubos, em venda de relíquias e de objetos da Igreja, desagregação do culto, etc.
Havia, entretanto, uma consolação para a Igreja, que era a Ordem de Cluny, a qual floresceu numa corrente religiosa que representava o rigorismo, tendo à testa a Santa Sé e cujo maior expoente foi São Gregório VII, precedido de uma série de Papas também santos, dignos, corajosos e que combatiam as heresias, a simonia, a corrupção com toda a sua força.
Muitas vezes havia leigos favoráveis à simonia porque compravam esses cargos eclesiásticos para pessoas de sua família, ou recebiam dinheiro para não vetar o acesso de determinada pessoa a certo cargo, pois os senhores feudais tinham o direito de vetar certos cargos eclesiásticos. De maneira que para eles era uma fonte de renda, e havia um grande número de senhores feudais que apoiavam sacerdotes simoníacos e corruptos. Constituía-se, então, um extravasamento do problema religioso para o terreno político. Os Papas combatiam esses bispos simoníacos depondo-os; os bispos recusavam-se a abandonar as dioceses e eram escorados por aqueles dentre os senhores feudais que quisessem essa corrupção. Evidentemente havia senhores feudais bons, fiéis ao Papa e que não estavam de acordo com essa corrupção.
A luta religiosa se estendia para os terrenos político e militar
Então a luta religiosa passava para os terrenos político e militar, porque era preciso que os prelados legítimos expulsassem os maus para obedecer ao Papa, e os senhores feudais ruins protegiam esses prelados indignos. Assim, os senhores feudais bons e ruins faziam uma guerra entre si. Conflito de proporções pequenas, porque a Itália estava pulverizada numa porção de principados e republiquetas burguesas, e cada uma tinha a sua luta interna. Porém, foi uma espécie de guerra que se estendeu a toda a Itália como uma espécie de erisipela. Por toda parte da Itália havia guerrilhas dessas que se entrelaçavam, porque o partido de uma cidade era aliado ao congênere de outra. Formava-se, desta maneira, uma situação caótica na qual a Itália inteira estava mergulhada.
Enquanto a corrente de Cluny vai tentando a reforma da Igreja, vemos aparecer em Milão dois Santos de uma envergadura excepcional. Um deles é o Bem-aventurado Arialdo, clérigo profundamente adversário da simonia contra a qual luta com as armas religiosas eclesiásticas. E a figura extraordinária desse Duque, com um nome também um pouco extraordinário, pelo menos para os nossos ouvidos brasileiros: Erlembaldo. O nome indica bem a proximidade do sangue bárbaro, isto é, o nome germânico do tempo das invasões; provavelmente um nome longo-bardo, porque os longo-bardos ocuparam Milão, lá se estabeleceram e tiveram descendência. Erlembaldo e Arialdo são nomes de origem comum que indicam o mesmo fundo racial.
“Heresia branca”: visão deformada a respeito da santidade
A figura de Erlembaldo se nos apresenta com um aspecto e uma vocação diversos de muitos Santos dignos de toda a nossa veneração, canonizados pela Igreja, e que seguiram uma linha diferente da que muitos católicos, entre os quais nós, pessoalmente, devemos seguir. Mas a “heresia branca”2 gosta de apresentá-los como os únicos e verdadeiros Santos. Assim, a história que a “heresia branca” gostaria de fazer de Santo Erlembaldo seria a seguinte:
“Ele era um santo mancebo – porque começa por ser um mancebo, com a conotação por vezes ridícula que esta palavra adquire em português –, filho do Duque de Milão, que desde a sua mais tenra idade manifestava o seu profundo horror ao sangue e, quando ele mesmo via animais serem maltratados, corria junto ao colo da sua mãe e dizia: ‘Mamãe, quanta tristeza nesta vida!’ A mãe dele levava-o então para junto de uma imagem onde ele deitava copioso pranto, afinal se consolando com a ideia de que tudo terá um fim quando for para o Céu. O santo mancebo era de uma saúde frágil e delicada; por causa disso levou uma vida de muito sofrimento quando menino; tinha uma ferida na testa que deitava mau cheiro.
“Depois que ele ficou mocinho, concebendo horror às coisas terrenas, resolveu deixar tudo e se consagrar ao serviço dos pobres. Então, durante toda a sua vida passou cuidando dos pobres e tratando de bichos doentes. Sua especialidade era reconciliar todo mundo que ele encontrava, e por isso era chamado de ‘Erlembaldo da paz’. Morreu muito velho e sorrindo. Era chamado ‘o Santo do sorriso’.”
Notem bem: se alguém tivesse esta biografia na Idade Média poderia ser um autêntico Santo. Sem dúvida, isso faz a vida de um Santo, e Deus me livre de afirmar o contrário. Não seria, portanto, um Santo “heresia branca”, porque não há Santo “heresia branca”. Seria “heresia negra” dizer que um santo é “heresia branca”. Todos os Santos são perfeitos, e a eles devemos veneração. A questão é outra: dizer que a santidade é só isso, aqui está a “heresia branca”. Ora, Erlembaldo foi em diversos aspectos o contrário disso, e foi um Santo também.
Conservar o cargo usando-o a favor da boa causa
Milão foi sempre umas das principais cidades da Itália, situada no Vale do Pó, ao centro de uma porção de estradas, uma das regiões mais ricas da Europa, povo muito inteligente, culto, político, artístico. Logo, Duque de Milão significa ser um dos mais altos chefes da Itália. Um Duque de Milão naquele tempo tinha peso na política internacional, porque os reis da França, os imperadores do Sacro Império viviam de brigas, e o apoio que eles tinham das cidades italianas deslocava a favor de um ou de outro a balança política, de maneira que, muitas vezes, esses pequenos principados do Norte da Itália eram fiéis da balança internacional.
Santo Erlembaldo nos aparece como um homem saudável, forte, bem-apessoado, rico que se apresenta com fausto nas ruas, acompanhado de uma pomposa comitiva e que toma conta do seu poder com força. Mas quer largar todas as coisas do mundo e fazer-se frade. Na “heresia branca” já causava uma torcida: “Ah, já vai acabar frade!”
E nessa hora – que a história começa a tomar gosto para a “heresia branca” – aparece um desmancha-prazeres, Santo Arialdo, o qual dá a Santo Erlembaldo a ideia, que nós reputamos sublime e a “heresia branca” acha estridente, de se conservar no cargo e usá-lo a favor da boa causa. Eis uma coisa de que a “heresia branca” não gosta: “Utilizar a política em favor de um assunto eclesiástico. Jamais! Política é coisa terrena, humana, mundana… Um espírito sobrenatural não gosta nem entende de política.”
Depois lhe diz que deve usar a força contra os corruptos, os simoníacos. A “heresia branca” gostaria do contrário: “Que sorria de tal maneira para os corruptos, que estes deixem a sua corrupção e todos comecem a cantar honras a Nossa Senhora. Não há mal… Com um pequeno sorriso bondoso desmancha-se todo o mal.”
Uma longa vida de luta e resistência coroada pelo martírio
E mais: esse homem vai a Roma, o que também a mentalidade “heresia branca” não gosta. “Fica aqui com o vigário, o pároco… Essa história de ir a Roma, deixa disso… Temos o nosso Reverendo Monsenhor Poeira, tão simpático; para que mais?” Horizontes limitados, nada de grandes horizontes; assim é o indivíduo “heresia branca”. Em Roma, o Papa Santo dá a ele um estandarte ao qual coloca o nome de São Pedro: “Eis aqui meu estandarte, vai ser o meu gládio em Milão.”
“Solta a fera – pensa a ‘heresia branca’ – e agora, coisa horrorosa, vem o gládio defender a Causa de Cristo, que foi todo sorriso e bondade, nunca feriu ninguém na vida…” Ora, Ele chegou a surrar e a expulsar os vendilhões do Templo! Mas não adianta, a “heresia branca” diz que Nosso Senhor nunca feriu ninguém, nem feriria. Contudo, em nome de Cristo esse homem vai derramar sangue!
Como vimos, ele entrou, cortou, lutou, talhou, prendeu e perseguiu padres simoníacos. Pois bem, esse homem é um Santo que, por sua vez, foi sempre apoiado por outro Santo chamado Arialdo.
Outra teoria da “heresia branca”: “Basta apresentar-se um Santo em uma cidade, que todo mundo se converte.” Aqui estamos vendo o contrário. Entra um Santo, pouca gente se converte, a batalha continua e os Papas apoiando essa luta. Isto é sublime! O gládio a serviço do direito, livrando o mundo da presença abjeta do homem que espalha o mal. Há aquela frase magnífica da Escritura: “Maldito o homem que poupa o seu gládio do sangue!” (Jr 48, 10). Para alguém com mentalidade “heresia branca” isto é horrível. É maldito o homem que derrama sangue…
Essa mentalidade também não compreende como uma cidade onde há dois Santos, o chefe dos hereges – que deveria ser tão bom, apenas um equivocado, segundo a “heresia branca” –, pega a bula vinda de Roma, na qual o Papa o excomunga, e a leva para destruir, fazendo um verdadeiro protestantismo; é um “luterozinho” clamando pela independência da Igreja de Milão.
Sai encrenca dentro da catedral, Santo Arialdo é ferido, mas num canto estava Santo Erlembaldo, com seu estandarte e sua espada, ninguém sequer chegou perto dele.
Por exemplo, o sublimíssimo martírio de Santo Estevão a “heresia branca” compreende, mas um Santo que luta até o fim, é como um leão, perto de quem ninguém se aproxima, disto a “heresia branca” não gosta e não compreende.
Santo Erlembaldo resiste, mas para que ele tivesse todas as glórias, no fim da vida acaba recebendo também a coroa do martírio, depois de uma longa vida de luta e resistência.v
(Extraído de conferência de 3/8/1970)
1) PROFILLET, Charles. Les saints militaires: Martyrologe, vies et notices. Paris: Retaux-Bray, 1890.
2) Expressão metafórica criada por Dr. Plinio para designar a mentalidade sentimental que se manifesta na piedade, na arte e na cultura em geral. As pessoas por ela afetadas se tornam moles, medíocres, pouco propensas à fortaleza, assim como a tudo que signifique esplendor.