Há no gênio do bom desenhista uma “objetiva espiritual” que, para captar a realidade, vale incomparavelmente mais do que as lentes de uma máquina fotográfica. Assim, ao analisar algumas ilustrações da morte de Leão XIII, Dr. Plinio descreve a grandiosidade que envolve a morte de um Papa e o esplendor eterno da verdadeira Igreja de Cristo, manifestado até mesmo em suas pompas fúnebres.
Ao longo dos séculos, a Opinião Pública foi se tornando cada vez mais desejosa de conhecer os atos da vida cotidiana onde eles se passavam. E, na época que não havia fotografia, as grandes revistas contratavam desenhistas para ilustrar seus artigos, os quais, sem terem presenciado o acontecimento, conheciam o local em que ele havia se dado e reproduziam a cena de acordo com o noticiário dos jornais.
Daí surgiram verdadeiras peças de sociologia pois, embora eles não fossem artistas eminentes, eram bons desenhistas e compunham a cena de maneira a promover a venda da revista. Ora, para isso o desenho deveria corresponder tanto quanto possível à ideia que os leitores faziam do acontecimento ali estampado; do contrário, recusariam a publicação.
Tratava-se, portanto, de um verdadeiro inquérito silencioso junto ao grande público, com base no qual o desenhista procurava captar a cena como aquele a concebia.
Retratavam-se, por exemplo, a morte ou a coroação de um Papa, a visita de um rei a outro, a posse de um presidente da República. Essa representação resultava verdadeira, ao mesmo tempo que revelava a mentalidade das pessoas da época, como elas consideravam aquela cena e quais eram suas expectativas em relação aos personagens que a viviam.
Nessa perspectiva vamos considerar o noticiário publicado na revista Illustration, a respeito da morte do Papa Leão XIII.
Um ato da augusta justiça divina
A primeira ilustração retrata a constatação da morte de Leão XIII. Um dos presentes, provavelmente o médico efetivo e habitual do Papa, chamado naquele tempo de arquiatra pontifício, verifica sua pulsação. Arquiatra é uma palavra de origem grega que significa “arquimédico”. Os outros dois atrás dele são seus assistentes e esperam a comprovação de que não há mais pulso e, portanto, de que o Papa morreu.
Analisemos como a ideia da morte de um Sumo Pontífice é representada pelo desenhista.
Notam-se vários lençóis, um tecido de muita categoria que chega até o peito do Papa, um assento junto à cama dele o qual, por uma parte que se vê, parece ser uma poltrona confortável; ao fundo, vê-se um tecido damasquinado que reveste a parede e, ao lado, uma cortina. Tudo fala de finura e abundância.
Dentro da abundância, porém, aparece o fracasso: a posição da cabeça demonstra que o Pontífice já não respira. Os braços estão estendidos ao longo de um corpo completamente inerte. Tem-se a ideia de um navio que afundou. Paira no ambiente a impressão da insensibilidade da morte e da dor do último instante. Sobre o Vigário de Cristo na Terra, como sobre todos os mortais, desfechou-se o castigo do pecado original. O Papa morreu e, portanto, Deus acaba de exercer sobre ele um ato de sua terrível e augusta justiça.
O horror e a gravidade da cena se refletem na atitude dos médicos. O que verifica o pulso realiza operação correspondente à sua profissão, ou seja, constatar se há vida, para prolongá-la, ou se houve a morte, para declarar encerrada a sua missão e a mudança de status e de destino daquele corpo, fadado a abandonar todo esse bem-estar e a convivência dos vivos a fim de ser posto em um caixão, murado e entregue à decomposição. O arquiatra toma, em consequência, o ar frio de quem está numa posição científica e profissional. Mas algo em sua postura é solene e sério; ele se prepara para proferir as palavras que encerram um capítulo da História da Igreja: “O Papa Leão XIII morreu.”
O ato do médico-chefe é puramente formal. Os dois assistentes que estão atrás já sabem que o Papa faleceu, pois percebem que ele não respira mais. Ambos têm atitudes diversas. O médico mais moço, de bigode preto, conserva uma postura ereta, como quem olha ao longe e pensa em coisas graves – evidentemente, na morte e suas consequências – e exprime, de modo imponderável, uma certa consternação. Aliás, o bom gosto em todas essas atitudes está precisamente no fato de terem imponderáveis. As maneiras escancaradas são artificiais.
O médico que se apoia na cama acaba de exercer alguma função, pois está usando pince-nez, o qual se utilizava apenas para ler ou fixar a vista em algo. Ele parece ligeiramente entristecido, mas muito pensativo, como quem pondera: “Que grande coisa é uma vida que cessa, um pontificado que se encerra… O que é a morte!” No fundo, seja ele ateu ou não, a palavra “Deus” lhe vem ao espírito.
Devemos parar, refletir e meditar nas grandes verdades
O outro personagem da cena é um monsenhor. Nota-se como o colorido do traje difere dos demais pela tonalidade e brilho que o desenhista colocou. Isso porque a batina e essa espécie de capa com que ele está vestido são de cor violeta. O reluzimento da batina indica ser ela de uma bela seda. Os pequenos botões de alto a baixo são também revestidos de fio de linha violeta. Sem dúvida, uma bonita batina, cujo aspecto vistoso é quebrado pelo sobretudo, também nobre, mas que parece ocultar o esplendor de um traje mais próprio aos dias de festa.
Percebe-se que esse monsenhor, o qual tem mais ou menos a idade do médico de bigode preto, vai se retirando como alguém que estava assistindo o Papa e cuja função cessou, mas ainda realiza os pequenos serviços a que estava habituado. Por exemplo, leva na salva, presumivelmente de prata, um copo provavelmente de cristal, e assim começa a dar uma pequena ordenação ao quarto do Pontífice para as cerimônias fúnebres se iniciarem.
Entretanto, vendo que a palavra decisiva vai ser dada, ele se detém, preocupado e um tanto aflito, para ouvir o médico declarar, em definitivo, não haver mesmo esperança alguma.
Compreendemos, assim, quanto pensamento o desenhista pôs ao retratar esta cena. Ele soube transmitir em seu desenho a ideia de como a morte, episódio tão frequente no quadro geral da existência, é uma grandiosa cena diante da qual devemos parar, refletir e meditar em grandes verdades. Em última análise, tratava-se do supremo poder pontifício, o fulgor da genialidade – Leão XIII era considerado um gênio –, que em certo momento se apagaram, e só restou um cadáver.
Dali a pouco o corpo médico sairia e comunicaria aos Cardeais, grande número dos quais presumivelmente já estaria na antessala, que o Papa havia morrido.
Três discretas batidas com um martelinho de marfim
Depois da constatação científica, vinha a Igreja comprovar a morte do seu chefe. Entrava o Cardeal Camerlengo, o qual substitui o Papa de imediato no caso de morte, e com um martelinho de marfim se acercava com todos os Cardeais presentes, batia discretamente sobre a fronte do Pontífice e perguntava:
— Santíssimo Padre, vives?
Tendo repetido este cerimonial por três vezes, diante da ausência de resposta ele declarava:
— Sua Santidade Leão XIII morreu.
A notícia era imediatamente levada aos sineiros, e os grandes sinos da Basílica de São Pedro começavam a dobrar finados. Em poucos minutos, os sinos das quatrocentas igrejas de Roma passavam a ecoá-los.
Declarada a morte do Papa, os Cardeais recitam a primeira prece oficial por alma do Pontífice morto, oração que se desdobrará pelo orbe. Em todas as igrejas se celebram Missas, o mundo inteiro põe-se a gemer, a rezar e a esperar porque o Papa morreu.
Contraste entre a riqueza e a pobreza, a altaneria e a humildade
Outra ilustração retrata o momento em que, ainda antes da morte de Leão XIII, o Santíssimo Sacramento é levado para o Papa moribundo. O Viático percorre uma das galerias do Vaticano, e no centro do quadro está um clérigo, provavelmente um Cardeal, que, utilizando as vestes litúrgicas e o cerimonial tradicionalmente estabelecidos, porta o Santíssimo Sacramento sob uma umbrela carregada por um sacerdote.
O clérigo que conduz a Sagrada Eucaristia vai rezando, com o rosto próximo do cibório. Ele se mantém recolhido, não olha para os lados, pois está transportando Nosso Senhor Jesus Cristo verdadeiramente presente, sob as Espécies Eucarísticas, em seu Corpo, Sangue, Alma e Divindade.
À frente vão soldados da Guarda Suíça portando alabardas, com seu traje bem característico. Ao lado direito de quem conduz Nosso Senhor Sacramentado, está um membro da Guarda Nobre Pontifícia, constituída apenas por aristocratas. Enquanto os da Guarda Suíça abrem caminho, esse acompanha o Santíssimo como guarda de honra; por isso leva seu bonito elmo na mão, e não sobre a cabeça.
Entre o Santíssimo Sacramento e a Guarda Suíça avança um clérigo tocando uma sineta, para alertar as pessoas da passagem da Santo Viático, que está ladeado por clérigos portando velas acesas.
Acompanham a procissão lacaios, camareiros e senhores da corte pontifícia. Todos se dirigem da capela do Santíssimo Sacramento para os aposentos papais.
No primeiro plano veem-se dois padres franciscanos com a cabeça tonsurada, inclinados e rezando. É muito bonito o contraste entre a simplicidade do traje franciscano, a humildade com que eles genufletem, o espírito de prece expresso pelas mãos e pela atitude, de um lado, e, de outro, a solenidade e o recolhimento dos que acompanham o Santíssimo Sacramento. Esse contraste entre a riqueza e a pobreza, a nobre altaneria e a suma humildade constitui uma harmonia especial.
Trata-se de outra cena que o desenhista soube representar muito bem. Chama a atenção o lustroso do chão, dir-se-ia que estão andando sobre a água; é o mármore eximiamente polido e de uma qualidade esplêndida, tão frequente na Itália e tão belo no Vaticano.
Eis uma cena verdadeiramente magnífica! Nosso Senhor encontra-Se presente e passa por aquelas galerias; do alto do Céu, Nossa Senhora, todos os Anjos e Santos O estão adorando. Jesus Sacramentado Se dirige ao Papa que está morrendo, e vai haver o último colóquio entre Cristo e seu Vigário na Terra.
Entretanto, o desenho não é nada em comparação com o cerimonial elaborado ao longo de séculos, pouco a pouco, pelo costume, pela tradição e sobretudo pela Fé.
O “pulchrum” eterno da Igreja Católica
Outra ilustração representa a Praça de São Pedro na noite que precedeu a morte de Leão XIII. A praça começa a se encher de gente que anda de um lado para outro à espera de notícias sobre a saúde do Papa, ou do desenlace final que todos aguardam para qualquer momento.
Não se formam essas multidões compactas de nossos dias, mas rodinhas, pois as pessoas ainda têm muita personalidade.
Percebe-se que todos falam baixo. Seria um desrespeito haver ali um vendedor de balas, um jornaleiro ou qualquer outro elemento que levasse os presentes a pensar em algo que não fosse isto: o Vigário de Cristo está muito doente e, de uma hora para outra, serão dadas notícias sobre ele.
Veem-se, dos dois lados, os locais de onde parte a colunata de Bernini. À direita encontra-se o Palácio do Vaticano, e é junto a uma dessas janelas que o desenlace está se dando, os últimos momentos de um pontificado, de uma vida e de um capítulo da História estão escoando. Todo o mundo confabula…
Como não poderia deixar de ser, na praça aparecem várias batinas, traje muito característico do tipo de padre comum naquele tempo, experiente e compenetrado de sua missão. No primeiro plano há um padre que está indo embora. Trata-se de um homem alto, corpulento, com passo decidido, sério, portando um grande chapéu e aparentando uma idade avançada, uma venerabilidade acompanhada de uma espécie de maturidade que se prolonga. A alma é provecta de antiguidade, e o corpo, decidido e forte. O sacerdote se retira imerso em seus pensamentos.
Não é verdade que esse desenho nos faz compreender, mais do que muitas fotografias, o que há de venerável na Praça de São Pedro e todo o pulchrum eterno da Igreja Católica?
Expressão da realidade que a fotografia não capta
O Papa morreu, seu corpo foi posto numa posição um pouco mais ereta e começou a despedida dos Cardeais. O desenho representa um deles que oscula a mão do Pontífice. Atrás, onde a parede faz ângulo, está o futuro Papa Bento XV, sucessor de São Pio X – a sucessão dos Pontífices foi: Leão XIII, São Pio X, Bento XV –, na força de sua maturidade, ainda de cabelos pretos, pensativo. Ele não olha para ninguém, e ninguém olha para nada a não ser o morto.
Ao fundo, um Cardeal bem mais velho fita o infinito. Outro, já mais próximo à cama, olha para o cadáver com uma espécie de ansiedade, como quem diz: “Então, meu velho companheiro de episcopado e de colégio cardinalício, meu Papa durante tantos anos, tu te vais? É assim a morte? Ela não está longe de mim… Ó morte! Fito em ti o meu dia de amanhã. Mais: morte, contemplo em ti o umbral da eternidade, o passado que fica e o futuro que vem. Ó morte! Ó Deus!”
Sentado na poltrona que se via em um dos desenhos anteriores encontra-se um outro Cardeal, literalmente affaissé1 e muito pensativo. No que ele pensa? Talvez nas palavras clássicas: Sicut transit gloria mundi – assim passa a glória do mundo. Tudo se foi, todos os anseios, realizações, aflições, decepções, tudo está encerrado, nada permanece, tudo é efêmero… Ó amargura! Ó Deus que, afinal, sereis a consolação dos justos!
Um certo desalinho intencional do cabelo constitui quase o sismógrafo que indica a sua aflição. Ele não está na postura própria de quem, na Belle Époque2, encontrava-se na presença de outros. Sua atitude é a de um homem da Belle Époque quando estava sozinho no quarto meditando, ou seja, à vontade…
Comparemos a atitude de muita dignidade dos demais Cardeais – até mesmo o cadáver de Leão XIII está digno na sua postura – e a desse cardeal idoso no primeiro plano. É como se ele estivesse sozinho no seu quarto, numa posição inclinada, mas digna, em nada ridícula, nem descomposta. Tudo isso reflete a pompa da Belle Époque.
Eu volto a dizer: na minha opinião, essas ilustrações têm muito mais expressão do que a fotografia. Entretanto, não haveria um jornal hoje que as reproduzisse, porque o público quereria a fotografia que colheu o fato real, recente. As pessoas não percebem que esses desenhos dão a essência da realidade que nenhuma fotografia capta. Há no espírito de análise do bom desenhista uma “objetiva espiritual”, que vale incomparavelmente mais do que o click das máquinas fotográficas.
(Extraído de conferência de 21/11/1980)
1) Do francês: abatido, prostrado.
2) Do francês: Bela Época. Período entre 1871 e 1914, durante o qual a Europa experimentou profundas transformações culturais, dentro de um clima de alegria e brilho social.