Ao longo dos séculos, Nosso Senhor Jesus Cristo manifesta aos fiéis diferentes tonalidades de suas infinitas perfeições, segundo as necessidades de cada tempo. Numa época como a nossa, em que a Igreja e a sociedade se encontram assaltadas e aflitas, qual de seus atributos deseja o Redentor realçar?
A noção que o Bem-Aventurado Urbano II e os que, como Godofredo de Bouillon, atenderam ao seu apelo pela libertação do Santo Sepulcro tinham a respeito de Nosso Senhor Jesus Cristo era tal que acendia neles o entusiasmo pela Cruzada. Quer dizer, no entender desses varões a personalidade do Redentor continha aspectos que despertavam em suas almas o espírito de cruzado.
Ora, o modo de ver Nosso Senhor Jesus Cristo a que me habituaram na minha infância não conduzia de forma alguma a isso! Faltava, portanto, um determinado elemento que havia necessariamente n’Ele, mas que a “heresia branca”1, somada a outros desfalques do tempo, retirou de sua Pessoa adorável.
Para compreender bem este tema, temos de levar em conta alguns pressupostos.
“Nuances” diversas no modo de considerar Nosso Senhor
Movidos por um modo peculiar de contemplar Nosso Senhor Jesus Cristo, os cruzados realizaram proezas santíssimas e grandiosas; seus nomes ficaram marcados na História até o fim dos tempos. Por outro lado, também é certo que, apesar de muito diversa, a forma de considerar o Homem-Deus nos séculos XIX e XX era santíssima e grandiosa, e levou muitas pessoas a praticarem atos santos insignes, representando todo o sacrifício do espírito humano e uma santidade autêntica, embora parecesse que nela não estivesse presente aquilo que movia os cruzados.
Percebe-se com facilidade que se trata de uma questão espinhosa. Mas vamos analisá-la com confiança em Nossa Senhora de que chegaremos a uma solução séria, sólida e ortodoxa.
O modo de os medievais verem Nosso Senhor Jesus Cristo continha algo próprio ao período particularmente guerreiro e militante no qual viveram. Não se tratava de uma consideração subjetiva, mas real, que fazia reluzir atributos especiais da Pessoa d’Ele. Contudo, sem negar essas perfeições, em tempos posteriores Ele as deixou mais na sombra e manifestou outras, que precisavam ser realçadas.
Portanto, não se pode dizer que tenha havido algo de defectivo nesse processo. Mas indiscutivelmente nele se introduziu um desvio, de maneira que, quando a época do combate se apresentou novamente sob a forma de uma Cristandade tão assaltada e tão aflita que só se reergueria com uma Cruzada, os homens encontravam-se impedidos de ver a perfeição que Nosso Senhor então manifestaria.
Sub-reptício exagero na “mudança de cores”
Quando estudamos a vida dos Santos do século XIX canonizados pela Igreja, cuja santidade, portanto, nos inspira toda a confiança, notamos com alguma frequência lances que mostram haver neles o espírito de Cruzada. Entretanto, o modo de apresentar tais Santos ao público põe na surdina esses fatos, ainda que sem ocultá-los inteiramente.
Houve, por conseguinte, uma certa “mudança de cores” na consideração da Pessoa de Nosso Senhor Jesus Cristo, disposta pela Providência por causa das circunstâncias; mas houve também uma certa subtração, que exagerou essa diferença de tonalidade e fez com que o colorido próprio à Idade Média estivesse mais ausente do nosso panorama do que legitimamente deveria estar.
Assim, a “heresia branca” retardou a evolução geral dos fiéis na direção que os acontecimentos pediam e foi, portanto, nociva sob esse ponto de vista. Ademais, ocultou ou pelo menos subestimou algo que não deveria ter ocultado nem subestimado, acabando por criar uma situação muito difícil para nós. Com efeito, nossas almas só darão inteiramente o grande dos grandes se postas diante de uma perspectiva e de uma adoração a Nosso Senhor que abarque todos os elementos próprios a despertar o espírito de cruzado!
A alma de cruzado da Carmelita de Lisieux
Algo muito característico nesse sentido são as imagens de Santa Teresinha do Menino Jesus que comumente vemos, as quais a representam desfolhando pétalas de rosas.
Quem, dos que rezam a Santa Teresinha diante dessas imagens e se extasiam com a santidade dela, tem a noção de que em sua autobiografia a Carmelita de Lisieux manifesta desejos ousadíssimos?
Ela almejava fazer em favor da Igreja tudo quanto fosse necessário, naquele tempo, para salvar as almas. Então dizia: “Queria corroer-me de penitências; queria ser missionária em terras longínquas; queria – agora vou acrescentar alguns anseios imaginados – ser professor, e do alto de uma cátedra prestigiosa desbaratar o erro dos infiéis; queria ser Bispo, para do púlpito reivindicar os direitos da Igreja.” E daí para fora2.
A certa altura ela afirma: “Queria ser um cruzado, para brandir o ferro contra os inimigos que avançassem sobre a Igreja!”3
Ora, a maioria dos devotos de Santa Teresinha não tem ideia de que isso estava em seu espírito e, ao ler este último trecho, talvez até desviassem os olhos por uma espécie de pudor, julgando que tal declaração desfiguraria a beleza moral que viam nela. Porque, segundo pensam, Santa Teresinha devia possuir uma forma de doçura que não era compatível com um cruzado.
Tanto é assim que isso se verifica mesmo na veneração a Santa Joana d’Arc, apresentada em geral com couraça e com todo o apresto de uma Santa que comanda um exército. Não há, por exemplo, imagens que a representem numa atitude de combate. Sabe-se que ela matou durante as batalhas, mas chocaria vê-la praticando o ato de matar, devido a uma ideia deformada e meio instintiva de santidade que nos foi transmitida.
Trata-se de formar o espírito de Cruzada
Cria-se, então, uma espécie de contradição interna em nós. Decidimos levar nosso espírito de Cruzada até o fim, mas nos chocamos com essa imagem da santidade difundida em nossos dias, na qual, de fato, há muito de verdadeiro. Esta é precisamente a questão: houve mudanças de matiz legítimas, e houve subtrações fraudulentas. A tal ponto que o comum das pessoas jamais imaginaria Nosso Senhor presente e falando pelos lábios do Bem-Aventurado Urbano II na convocação da Cruzada, que visava libertar a sepultura d’Ele das mãos dos infiéis.
O resultado é que os elementos capitais da Cruzada estão ausentes da meta que comodamente consideramos como nossa. Torna-se necessária uma espécie de engenharia para introduzi-los no nosso panorama religioso, pois estamos tão habituados a outra coisa que, por nós mesmo, não conseguimos.
No dia em que nos abrirmos para essa perspectiva, nos sentiremos muito mais livres, sem peias nem amarras, para tomar a lança e seguir em frente. Não se trata aqui de partir numa Cruzada, mas de formar o espírito de Cruzada, o qual ficou toldado para nós.
Cristo gladífero, o único ideal capaz de despertar o espírito de Cruzada
Se olhássemos o Santo Sudário, na dignidade ali estampada encontraríamos vários elementos para nos ajudar nesse passo. Com efeito, o espírito que animava os cruzados era uma graça, com o auxílio da qual eles fizeram maravilhas; logo, nesse espírito se refletia Nosso Senhor Jesus Cristo. Assim, para formar a imagem do Salvador enquanto cruzado, sem dúvida é legítimo olhar para os cruzados!
O Apocalipse apresenta Nosso Senhor avançando a cavalo com uma espada entre os lábios (cf. Ap 1, 16; 19, 15). Esse era o modo usado por certos guerreiros para portar mais uma arma. Se a espada se quebrava ou caía da mão durante a batalha, eles tiravam outra da boca e continuavam a lutar. Quer dizer, o Apocalipse O representa ultracombativo!
Bem, quanto essa figura parece incompatível com a ideia que temos de Nosso Senhor! Notamos, portanto, uma espécie de defeito psicovisual que se introduziu em nossa alma, o qual amarra o nosso voo e nos impede de chegar aonde quereríamos.
Eu insisto muito sobre necessidade da piedade junto aos membros de nosso Movimento, e nunca me saciarei de insistir, mas percebo que, se esse ponto se introduzisse na nossa piedade como deve, teríamos muito mais um voo, facilidade e élan para cem coisas, entre as quais a prática da virtude da pureza. Porque essa impostação prepara maravilhosamente a alma para a castidade. Contudo, isso nos falta, pois enquanto a graça nos chama para um lado, uma noção de piedade cheia de “senões” nos retém em nosso voo.
Quase se poderia dizer a esse respeito uma palavra da Escritura que o coro paroquial da Igreja de Santa Cecília cantava quando eu era congregado mariano: “Diripuisti vincula mea, Domine virtutum, Domine virtutum (Sl 116, 16) – Rompestes meus grilhões, ó Senhor dos exércitos.” Lembro-me que ouvia esse refrão e pensava com os meus botões: “Isso é tão magnífico, e faz minha alma voar! Mas o pessoal desta igreja, inclusive o coro que está cantando, não entende o seu significado. E mesmo se alguém desse a tradução, eles não compreenderiam, de tal maneira a ideia de virtude se deixou monopolizar por um aspecto magnífico, esplêndido, que é a clemência e a pena de quem sofre.”
Então, só pode haver um ideal capaz de despertar o espírito de cavalaria: Nosso Senhor visto enquanto gladífero! Somente quando contemplarmos Nosso Senhor assim, chegaremos aonde queremos.
A mais alta postura do espírito humano
Disso decorre o seguinte: nossos problemas se simplificariam muito e nossas almas voariam muito, no momento em que fôssemos capazes de, com uma verdadeira alma de artista, representar Nosso Senhor assim, ou quando recebêssemos uma graça pela qual de fato O compreendêssemos, de modo experimental e até visual, assim!
Por quê? Porque o ideal de cavalaria é a mais alta postura do espírito masculino e, enquanto tal, capaz de influenciar o feminino.
Quer dizer, embora uma dama não possa ser cavaleiro, quando ela admira o ideal de cavalaria em seu interior se levanta uma nobreza – não me refiro à nobreza aristocrática, mas à nobreza de alma – que, sem tirar-lhe em nada a delicadeza, a eleva acima da própria debilidade feminina.
Percebe-se aqui como a figura meramente feminina, sem ideal de cavalaria, ressente-se de uma certa debilidade que o movimento feminista explora. Porque este procura completar a mulher com uma nota de força que a dama romântica do século XIX não tinha. É evidente. E, constatando essa debilidade, lhe diz: “Você não percebe que é uma fracalhona, que a impostação de sua alma e de sua pessoa não estão bem?” Grande parte da modernização da mulher decorre, em última análise, de que a admiração pela cavalaria lhe foi retirada.
Uma senhora assim compreenderia um marido que corresse os riscos do comerciante ou do self-made man, mas não compreenderia o homem que corresse os riscos da Legião Estrangeira4, por exemplo.
Também o homem do século XIX, inclusive os nobres, em via de regra havia perdido o espírito de cavalaria. E, por essa razão, degenerava no nobre de bigode lustroso – no qual passava não sei que forma de vaselina perfumada –, cabelos bem arranjados e maneiras nada cavaleirosas.
Uma vingança da realidade
Resultado: a admiração da humanidade começou a passar para os atores de cinema imbuídos de certas formas de heroísmo não cavaleiroso, mas cavalar – como, por exemplo, o Tom Mix e outros atores de filmes de faroeste –, ou para os que corriam riscos fabulosos com as fortunas jogando na bolsa, porque eram homens que tinham ainda um pouco daquela fortaleza de espírito que os outros haviam perdido.
Então, a vingança da realidade contra a ablação do espírito de cavalaria foi o movimento feminista para as mulheres e o movimento cowboy e self-made man para os homens. Desse modo, para os moços do meu tempo o tipo humano europeu parecia ligeiramente degradado e ligeiramente vaselinoso, em comparação com o homem bem-sucedido do sistema norte-americano.
Donde uma impossibilidade de se voltar para a tradição, porque dela havia sido arrancado um elemento moral integrante fundamental: o espírito de Cruzada.
(Continua no próximo número)
(Extraído de conferência de 9/9/1989)
1) Expressão metafórica criada por Dr. Plinio para designar a mentalidade sentimental que se manifesta na piedade, na cultura, na arte, etc. As pessoas por ela afetadas se tornam moles, medíocres, pouco propensas à fortaleza, assim como a tudo que signifique esplendor.
2) Eis o trecho da Santa da Pequena Via a que Dr. Plinio se refere: “Apesar de minha pequenez, desejaria iluminar as almas como os profetas, os doutores. Tenho a vocação de ser apóstolo… desejaria correr a Terra, propagar teu Nome e fincar tua Cruz gloriosa no solo infiel. Ó meu amor, uma só missão não seria suficiente. Gostaria também de anunciar o Evangelho nas cinco partes do mundo, até nas mais longínquas ilhas… Queria ser missionária, não só durante alguns anos, mas gostaria de sê-lo desde a criação do mundo e até o final dos séculos… Mas, sobretudo, meu bem-amado Salvador, desejaria derramar meu sangue por Ti até a última gota… […] Como Tu, esposo adorado, queria ser flagelada e crucificada… Queria morrer esfolada como São Bartolomeu… Como São João, queria ser mergulhada no óleo fervente, queria sofrer todos os suplícios infligidos aos mártires… […] Jesus, Jesus, se eu quisesse escrever todos os meus desejos, teria de pedir que me emprestasse teu livro da vida; aí estão relatadas as ações de todos os Santos, e essas ações gostaria de tê-las realizado por Ti…” (SANTA TERESA DO MENINO JESUS E DA SAGRADA FACE. Manuscritos Autobiográficos. In: Obras Completas. 2. ed. São Paulo: Loyola, 2001, p. 212).
3) “Sinto em mim outras vocações, a de Guerreiro, a de Sacerdote, a de Apóstolo, a de Doutor, a de Mártir, enfim, sinto a necessidade, o desejo de realizar, para Ti, Jesus, todas as obras mais heroicas… Sinto na minha alma a coragem de um cruzado, de um zuavo pontifício. Queria morrer num campo de batalha pela defesa da Igreja” (Idem, p. 211).
4) Legião Estrangeira Francesa, ramo do Exército Francês criado em 1831 e formado por soldados de infantaria eximiamente treinados.