Fotos: Arquivo Revista

No dia 21 de abril de 1968, Dona Lucilia entregava a alma a Deus, encerrando sua peregrinação terrena. A serena ação de presença que a caracterizava continuaria, porém, a se fazer sentir junto a Dr. Plinio, abrindo-lhe uma nova perspectiva daquele horizonte no qual já o havia inserido desde tenra infância, quando lhe ensinou a dizer os nomes de Jesus e Maria antes mesmo de saber falar papai e mamãe.

Fotos: Arquivo Revista

Durante sua vida, Dona Lucilia teve todas as formas de ternura possíveis. Entretanto, quando ela ficou bem idosa notei que sua afetividade se expandia mais comedidamente. Não podia nem um pouco imaginar que fosse por querer-me menos, mas pensei que se tratava da falta de vibratilidade própria à velhice.

Delicadeza de alma levada ao extremo

Algum tempo depois de seu falecimento, porém, soube de um fato encantador, que a exprime por inteiro. Ela contou a alguém que havia programado começar a me agradar menos alguns anos antes de morrer, para que eu não sentisse tanto sua falta quando isto acontecesse. Quer dizer, até lá chegou a previdência.

Fotos: Arquivo Revista
Dona Lucilia em março de 1968

É uma delicadeza de alma levada ao último ponto. Porque o egoísmo moveria a pessoa a pensar: “Quando eu morrer, que falta ele vai sentir de mim?” Contaram-me de um senhor a quem os filhos não respeitavam como deviam, e que os censurava dizendo: “Quando eu morrer, vocês vão sentir a minha falta.” Nunca ela disse uma coisa destas, mas nunca, nunca, nunca…

Fotos: Arquivo Revista
Sala de jantar do apartamento de Dona Lucilia

Acho que só a ouvi falar da própria morte uma vez, com papai. Em certa época do ano, havia pores do sol muito bonitos sobre a Praça Buenos Aires1, que se faziam notar de nossa sala de jantar. Os dois estavam contemplando o entardecer quando mamãe se aproximou dele e apoiou a mão sobre seu ombro. Eu fiquei assistindo à cena, interessado naturalmente na ação dela. Então ela disse: “João Paulo, vamos fazer uma combinação? Aquele de nós que morrer depois do outro, quando vier aqui à janela e encontrar esse pôr do sol, reza uma Ave-Maria pelo que já faleceu.” Com certeza ela rezou muitas Ave-Marias, pois morreu quase dez anos após meu pai.

Fotos: Arquivo Revista
Dr. Plinio em março de 1968

Em meio ao sofrimento, contemplando o Céu que se aproximava

A morte de mamãe se passou do seguinte modo. Eu ainda me encontrava em vias de completar o restabelecimento da crise de diabetes que tivera, e jantávamos a sós em casa. Com 92 anos, minha mãe já não estava inteiramente lúcida e, por isso, eu falava bem devagarzinho, para ela poder entender e participar da conversa. Parecia muito entretida, olhando-me fixamente e procurando acompanhar o que eu dizia.

Enquanto estávamos assim, na tranquilidade de nossa casa, a morte se apresentou. Ela começou a dizer que sentia como que uns algodões em torno do pescoço, que lhe tiravam o ar e incomodavam muito. Não havia algodão algum, ela estava em condições normais. Então percebi que se tratava de algo grave.

Embora o médico recentemente a tivesse examinado e achasse que o coração dela estava normal para aquela idade, de imediato mandei chamá-lo. Com a ajuda da empregada que a auxiliava, levei-a para o quarto e ela se deitou. Havia chegado o fim de sua vida: era uma crise cardíaca fortíssima, acompanhada de asfixia.

Após examiná-la, o médico me disse baixinho: “O coração está em condições péssimas, de repente… Ela chegou ao fim da vida. O senhor precisa se preparar.”

Naturalmente passei o dia 20 de abril inteiro junto à cama dela, conversando, rezando e procurando consolá-la. No meio da falta de ar, ela mantinha uma calma que me deixava pasmo. E com resolução, olhando sempre para a frente. Eu notava que ela tinha consciência de que estava morrendo; via a morte chegar, mas via também o Céu se aproximar!

Estando ainda muito debilitado, no fim do dia fui descansar.

Enquanto as vastidões da Terra pareciam ficar desguarnecidas…

Na manhã seguinte, acordei e perguntei por ela a um médico amigo que tinha lhe assistido durante a noite. Tomei o café e li um pouquinho do jornal, com a intenção de ir logo vê-la, quando vieram avisar-me que ela estava in extremis: “Dr. Plinio, se o senhor quiser alcançar Dona Lucilia com vida, venha logo, porque ela está morrendo.”

Fotos: Arquivo Revista
Dr. Plinio na Missa de sétimo dia de Dona Lucilia, em 27 de abril de 1968

Eu havia sofrido uma amputação no pé direito e ainda estava com dificuldade de locomoção. Levantei-me como pude e fui para o quarto dela, contíguo ao meu. Quando cheguei, o médico disse: “Ela morreu.”

O médico contou que, de repente, o coração dela falhou e mamãe sentiu que se aproximava a morte. Percebendo que eu ainda estava convalescente, teve tanta delicadeza que não me mandou chamar. Antes de morrer, ela fez um grande nome do Padre, assim resoluto, do alto da cabeça até o peito, e com esse glorioso sinal da cruz expirou.

Eu entrei no quarto… o que poderia fazer? Não sei quantas décadas havia que eu não chorava. Nessa ocasião chorei copiosamente, caudalosamente…

De imediato, o que eu mais pensei foi que aquele firmamento de beleza moral, que era a alma dela para mim, ia se afastar de minha vista. E essa ideia era muito dolorosa.

De outro lado, tinha a sensação da destruição e da catástrofe próprias à morte. Apesar de crer na vida eterna, eu sabia que a morte é um castigo pelo pecado original e a desintegração de um dos elementos constitutivos do ser humano. Ora, ali estava aquela que havia me dado a vida. Aquele corpo que eu venerava tanto ia ser comido pelos vermes, reduzido a pó, e até o último dia, quando a trombeta do Anjo soasse, ela estaria fisicamente na inanidade da sepultura. É claro que isto me trazia dor também.

Mas o que me causava uma espécie de asfixia – e constituía a dor mais profunda – era pensar que uma alma tão nobre, tão venerável, à qual eu queria tanto, afastava-se do mundo dos vivos, que ficava cada vez mais desprovido de grandes almas. E algo da estética do universo visível se ressentia. No tremendo apagar de luzes prenunciativo de uma terrível crise na Santa Igreja, uma alma dessas ia para o Céu e deixava as vastidões da Terra desguarnecidas. Como filho da Igreja Militante, isso me doía, embora houvesse mil pensamentos para me consolar, como o de que ela ia pertencer à Igreja Gloriosa.

Essas eram as considerações que me vinham ao espírito, misturadas com mil recordações difusas da vida dela.

…um horizonte se abria na eternidade

Depois fui para o meu quarto e preparei-me para ficar velando o corpo dela durante sua permanência em casa e acompanhá-lo até o cemitério.

Enquanto me aprontava, de repente a tristeza sumiu de minha alma e, apesar da dor, senti uma serenidade extraordinária, que era como que uma ajuda dela, solícita até nesse ponto.

Dirigi-me ao salão de casa onde o corpo dela estava exposto, e começaram a chegar os familiares e conhecidos. Mais tarde fui até o cemitério em que seria enterrada, mas não desci para acompanhar o corpo, porque as minhas condições não o permitiam. Voltei então para casa. Era a primeira vez que ali entrava sem sua dona estar presente… O que eu podia fazer? Rezar, deitar-me, adormecer. E a vida continuou…

Daí por diante, a figura de Dona Lucilia como que passou desta vida para a minha alma. Lembro-me dela frequentemente – as reflexões que estou fazendo mostram bem isso –, mas sem lamúrias. Diante de mim se abriu um novo horizonte, na ponta do qual estava Nossa Senhora e a Santa Igreja Católica. Nem se tratava de um horizonte novo, mas um horizonte em que, pela ação de Dona Lucilia, antes mesmo de saber dizer papai e mamãe eu sabia dizer Jesus e Maria.

Nessas condições, a ausência dela apenas ampliava minha perspectiva: minha mãe passava a residir no horizonte que eu devo encontrar quando chegar minha vez de fechar os olhos e entrar para a eternidade.

Imaginando o anelado reencontro

Como se dará esse encontro?

Eu não ouso pensar nisso! Por incrível que pareça, eu medito a respeito do Céu com certo cuidado. Porque a vida é tão dura, e o Céu tão atraente, que existe o perigo de o homem querer ir logo para o Céu e deixar a luta. Agora, por exemplo, posso cair morto – acontece com tantos homens de minha idade –, ser julgado e entrar para o Céu. Tratar-se-ia de uma tal vantagem, que eu não ouso pensar no Céu!

Quando entrarmos afinal no Céu, nós teremos, desde o primeiro instante, a visão beatífica. Veremos a Deus em toda a sua infinitude, glória e perfeição, de maneira que ficaremos completamente invadidos por esse conhecimento pessoal d’Ele.

Ao mesmo tempo, contemplaremos a humanidade santíssima de Nosso Senhor Jesus Cristo, depois Nossa Senhora e, a seguir, todos os Anjos e Santos. Para compreender o que isso significará, basta considerar que os Anjos, mesmo os de coros inferiores, são de tal natureza que, quando aparecem aos homens, com frequência os deixam apavorados. No Céu não cabe esse temor, mas sim admiração. E tais maravilhas nós conheceremos na luz de Deus.

Vamos também reencontrar as pessoas que amamos na Terra, mas de modo muito diferente do que as conhecemos, porque estarão revestidas da glória do Céu. E nós mesmos estaremos mudados, pois a mesma glória nos revestirá.

Será um encontro indizível, a respeito do qual vale a pena cogitarmos, mas reconhecendo que a palavra humana é incapaz de transmitir a realidade.

Fotos: Arquivo Revista
Dr. Plinio em 22 de abril de 1994
Fotos: Arquivo Revista
Dona Lucilia em março de 1968

Mas eu tenho certeza de uma coisa. É que, quando eu reencontrar minha mãe, nós, por assim dizer, nos abraçaremos e nos oscularemos, como o fazíamos em vida depois de uma muito longa viagem. E assim como ela, à noite, só ficava tranquila quando eu retornava à casa, tenho a impressão – e é uma mera impressão – de que Dona Lucilia terá um gáudio especial vendo que, afinal, eu cheguei ao Céu!

Entretanto, pelo o que eu conheço dela, essa alegria não seria tão completa se eu arranjasse um jeito de ir para o Céu antes da hora. Mamãe seria propensa – para falar em termos desta Terra – a me perguntar: “Filhão, por que você cessou a luta antes da hora?” E ela poderia me aconselhar, em tom de afetuoso reproche: “Eu aguentei até 92 anos. Você não quis aguentar até o fim?”

“Tome um pequeno gole de minha felicidade”

Muitos anos depois do falecimento de Dona Lucilia, certo dia tive um sonho com ela.

Vi uma figura vaga, com aparência entre uma pessoa real e uma fotografia, na qual pareceu-me ver mamãe como ela está na última fotografia que tirou em vida. Olhei com mais atenção. Então me comovi muito e exclamei: “Mamãe!” Ela assentiu confirmando, mas sem deixar inteiramente o aspecto, por assim dizer, fotográfico.

Disse a ela uma porção de coisas, como a queria bem, e chorei – para mim bastante, porque não sou dado a chorar. Ela se comprazia muito em notar o quanto eu sentia sua falta e me emocionava por vê-la. Sorria como uma pessoa muito feliz e, no fundo, levemente dava a entender que percebia o quanto eu estava sofrendo, mas que, para quem estava no Céu, esses sofrimentos não eram nada.

Sobretudo guardei as expressões de fisionomia dela, as mais afetuosas que se possa imaginar. Mas, ao mesmo tempo, mamãe parecia desejosa de me fazer compreender o quanto ela era feliz e que isso deveria me deixar alegre. Tratava-se como que de um ensinamento: “Meu filho, veja, eu estou no Céu e sou tão sensível ao seu sofrimento. Contudo, isso não perturba a minha alegria, porque vejo que a vida terrena é um átimo e que, se você for fiel, tudo se resolverá. Vendo-me assim, tome um pequeno gole de minha felicidade.”

Quando acordei, percebi que se tratava de um sonho, mas a sensação de proximidade dela era tão viva que me impressionou muito.

(Extraído de conferências de 1982, 1983, 1984, 1986 e 1994)

1) Localizada no Bairro Higienópolis, em São Paulo, próxima ao apartamento em que Dr. Plinio residia com seus pais.