São Guchiatazade era católico e ocupava alto cargo no Império Persa. Entretanto, por medo da perseguição, renunciou à Fé. Um bispo, seu grande amigo, ao ser conduzido à prisão, passou diante dele e, para não ver o apóstata, desviou os olhos com horror. Esta muda repreensão tocou-o profundamente e, pela graça divina, converteu-se e foi martirizado.
O nome do santo que vamos comentar hoje é Guchiatazade, mártir. Deve ser alguma coisa muito pouco comum essa biografia, tirada do livro Les Saints militaires – Os Santos militares –, do Abbé Profillet.
Um católico que ocupava alto cargo no Império persa
A Religião Católica fora pregada com êxito na Pérsia por São Mateus e São Bartolomeu. Os cristãos nesse país eram profundamente convictos. Assim, foram sem conta os mártires feitos pelo Rei Sapor II, quando este iniciou terrível perseguição contra seus súditos que não adoravam, como ele desejava, o disco solar.
O culto do Sol era a religião imemorial dos persas, desde os tempos da sua pré-História. De maneira que eles haviam de querer sujeitar os católicos à adoração do Sol.
Por esse motivo, o soberano mandou encarcerar o Bispo Simeon.
O prelado era amigo de Guchiatazade, um eunuco do palácio, homem que ocupava alto cargo e muito considerado no reino, mas que, temendo a perseguição, abjurara sua Fé. Ao ser conduzido à prisão, Simeon passou diante do eunuco que o saudou, mas o santo Bispo, para não ver o apóstata, desviou os olhos com horror. Esta muda repreensão tocou profundamente Guchiatazade, fazendo-o chorar dias seguidos e dizer de si para si: “Se um homem que foi meu amigo concebeu contra mim tal indignação, o que não fará Deus a Quem traí?”
Pensando desse modo, o eunuco abandonou suas roupas suntuosas e cobriu-se de luto, assim comparecendo ao palácio. Essa atitude encheu a todos de assombro e o soberano chamou-o logo à sua presença para perguntar porque lançava, daquele modo, presságios funestos sobre o reino, ao que o eunuco respondeu: “Enlutei-me por causa de minha dupla perfídia contra meu Deus e contra vós; contra meu Deus porque violei a Fé que jurara, preferi vossos favores à verdade; contra vós mesmo porque, obrigado a adorar o Sol, eu o fiz com hipocrisia; meu coração internamente protestava contra minha conduta.”
Ameaçado por Sapor II, Guchiatazade permaneceu inalterável em sua posição, sendo condenado à morte. Antes do suplício, contudo, pediu uma última graça ao Rei dizendo-lhe: “Vós sempre me elogiastes pelo zelo e devotamento com que servi a vós e a vosso pai. Agora eu vos rogo: concedei-me a mercê de um arauto bradar a todos que Guchiatazade é conduzido ao suplício não por ter traído os segredos do Rei, nem por se ter envolvido em alguma conspiração, mas porque é cristão e recusou renegar a seu Deus. Minha apostasia foi conhecida de toda a cidade, e talvez minha fraqueza tenha afetado a muitos. Se agora conhecerem meu suplício e ignorarem a causa, ele não servirá de exemplo aos fiéis. Mas, ao contrário, se souberem de minha penitência e de que eu morro por Cristo, eu os fortificarei; suas almas ficarão mais firmes e seu ardor reacendido. A voz do arauto será como uma trombeta de guerra, que dará aos atletas da justiça o sinal do combate e os prevenirá para que preparem as armas.”
Assim se fez e São Guchiatazade foi morto na Quinta-feira Santa do ano de 342.
Por medo de ser executado renegou a Fé
Lindíssima narração!
É conhecido o sistema bárbaro, contrário à Doutrina Católica, adotado em muitos países pagãos e na Antiguidade em geral, em que eram mutilados certos meninos, já na primeira infância, para que eles não tivessem a potência varonil, de maneira que pudessem tomar conta dos haréns, dos lugares onde estavam as várias esposas dos reis, sem que estes tivessem, assim, alguma preocupação. Só isso já mostra a debilidade das instituições pagãs antigas que alguns historiadores querem apresentar como tão fortes. Eram monarquias que se constituíam exclusivamente sobre o medo, a coerção. A esposa do rei só podia estar em segurança diante de homens mutilados. Se ela tivesse nas suas proximidades homens não-mutilados, o rei, apesar de todo o seu poder, podia dessa esposa recear tudo.
Compreende-se o clima de uma civilização que isso supõe e a repercussão lúgubre para todas as instituições políticas, sociais, econômicas. Quando nós estudamos a Idade Média vemos isto: o vínculo que propriamente une, coordena os elementos constitutivos de uma instituição medieval é o de fidelidade, a ideia de que é ponto de honra de ambas as partes, do menor como do maior, observarem as obrigações recíprocas, de maneira tal que invadir os direitos do outro é uma vergonha muito mais para quem lesa do que para quem é lesado. E se é uma coisa infamante para um homem que a sua esposa o logre, era considerado, a justo título, muito mais infamante lograr seu senhor ou o seu vassalo, roubando-lhe a esposa. Notem que outra elevação tem a Civilização Católica, e em que lodaçal de baixeza se afundava o mundo antigo.
De qualquer forma, acontece que esses homens assim mutilados tinham muita possibilidade de entrar em contato com os reis, os soberanos, por causa daquela intimidade de palácio. E como eram indivíduos que muitas vezes – mas não sempre – não se entregavam às orgias, nem às desordens dos homens comuns, eles liam muito mais, eram mais estudiosos e frequentemente mais inteligentes do que os outros. O resultado é que eles, com muita frequência, eram guindados aos mais altos postos do Estado: confidentes de reis, de governadores de província, generais – alguns deles famosos –, todos eles com muita projeção no respectivo país.
Temos, então, o caso desse personagem que, nessas condições, tornou-se eminente em um dos maiores impérios da Antiguidade, que foi o império persa. Ele era católico, tinha se convertido em razão da presença, séculos antes, de São Bartolomeu na Pérsia, e começou a praticar a Religião. Mas veio o Rei Sapor II que promulgou um decreto de condenação à morte de todos os católicos. E ele, de medo de ser executado, renegou a Religião. Um outro Santo que era Bispo, do qual tinha sido antigamente amigo, passou perto de Guchiatazade e nem o olhou. O apóstata o cumprimentou, mas o Prelado desviou os olhos e continuou caminhando para o martírio.
Bela e pitoresca teatralidade do Oriente
Vejam como são diferentes as vias da graça. Nosso Senhor encontrou São Pedro, deitou-lhe um olhar de bondade e o converteu para todo o sempre. Dir-se-ia que esse Santo Bispo deveria imitar o Divino Salvador e dirigir um olhar de bondade a este apóstata, pois assim o converteria. Mas o Espírito Santo sugere atitudes diferentes, de acordo com as diversas vias que Ele tem para conduzir essas ou aquelas almas. Aconteceu que o Santo passou perto do apóstata, se encheu de horror e desviou os olhos com indignação. O apóstata, em vez de ficar revoltado, foi tocado pela graça por causa desse gesto e fez este raciocínio: “Se esse homem que foi meu amigo me despreza e me odeia tanto pelo mal que eu fiz, que dirá Deus diante do Qual um dia vou ter que comparecer?” E então ele resolveu mudar de vida.
Uma primeira observação a que se presta esta ficha diz respeito à variedade pela qual Deus toca as almas e inspira o apostolado de cada um. A uns o Criador dá o amor contagioso, penetrante que, pela doçura, leva à união com Ele; a outros concede a cólera sacrossanta, sublime, que purifica como um fogo e ordena a Deus as almas que são objeto dessa cólera.
De qualquer forma, temos aqui uma bela e profundíssima conversão. Como São Pedro, embora por vias diferentes, ele chorou intensamente o seu pecado e caminhou para o martírio.
Como ele caminhou? A coisa tem aquela bela e pitoresca teatralidade do Oriente de que eu gosto tanto. Quer dizer, normalmente, em termos ocidentais, ele escreveria uma carta para o Rei, dizendo: “Vós sabeis onde eu moro, querendo podeis mandar pegar-me.” Ou deixava uma missiva em casa, fugia e desaparecia, o que no mundo antigo era relativamente fácil porque a polícia tinha muito mais dificuldade de se mover, e um criminoso ou um rebelde levava uma vida relativamente folgada. Assim, ele poderia ter entrado perfeitamente numa ermida, numa tebaida qualquer, ou passado para outro país onde a Religião Católica já estivesse estabelecida, portando riquezas, joias, e levar uma vida tranquila.
Não, ele resolveu enfrentar o martírio. Mas, em vez de escrever uma carta, sentiu, na sua alma de oriental, a necessidade de exprimir por símbolos aquilo que dizia também por palavras. Então, ele, o homem poderoso, apresenta-se diante do Rei todo trajado de luto. Não sei como seria o luto de um persa, se o traje era preto, violeta ou de outra cor; enfim, ele se apresentou todo vestido de luto para produzir efeito teatral. E produziu.
“Pequei contra Deus e contra ti!”
Vendo assim trajado o maior dignatário do Império, as pessoas, assombradas, perguntam-lhe: “Estás de luto? Como se explica isso?”
Podemos imaginá-lo com a fisionomia sinceramente compungida, porque teatro nem sempre é hipocrisia, muitas vezes é a manifestação bela, esplêndida, da verdade. Ele, então, solenemente, com os olhos encovados de dor e de tristeza, disse: “Eu quero falar com o Rei.”
Guchiatazade, então, penetra nos jardins do palácio imperial. Há um pátio com aquelas esculturas de touros – não propriamente touros alados, à maneira dos assírios, porém era mais ou menos desse gênero que usavam os persas –, leões, etc. Isso é muito mais bonito que a matéria plástica. Existe também uma fonte que jorra. Imaginem como romperia a poesia desse ambiente se um telefone tocasse…
Mais à frente, ouve-se o burburinho proveniente de uma antecâmara, onde as pessoas esperavam para ser chamadas pelo Imperador. Guchiatazade é introduzido no palácio do Sapor. Podemos imaginá-lo atravessando várias salas, com escravos se curvando à sua passagem, não olhando a nada e tendo apenas diante de si, enlevado, a sublimidade do furor do Bispo que não o olhou ao ser conduzido à prisão. Fascinado por aquela fisionomia de uma cólera fulgurante e deslumbrante, ele chega até o quarto do Rei, que lhe pergunta: “Que é isso? Tu prognosticas o luto no Império de teu senhor?”
Dito isto do alto de um trono, com uma voz cantante, diante de um homem que se apresenta de luto alguns degraus abaixo, numa sala magnífica, com alguns escravos segurando flabelli, mais adiante um tocador de flauta com uma serpente na sua frente e um incenso que sobe.
Há, então, o diálogo. Diante dos escravos estupefatos, ele diz a Sapor: “Eu pequei contra vós, ó meu Deus; mas pequei também contra ti, ó Rei, porque te menti quando fui adorar o Sol. Meu coração inteiro repelia aquela adoração que eu fazia.”
Pode-se imaginar a raiva do Sapor, que o condena à morte, e ele aceita a sentença com toda a serenidade, dignidade, placidez.
A graça suscitava heróis até mesmo da argila fraca de apóstatas
Vem, então, a última petição. Pode-se supor com que poesia, com que atitude, com que gestos foi dito: “Ó Rei, ainda tenho um pedido para te fazer!” Sapor treme de ódio, mas o Santo não treme diante do ódio do Rei. Ele tremia face ao ódio daquele olhar que não via mais, daquele coração que não pulsava mais, tremia de entusiasmo diante da sublime intransigência do homem que o tinha repudiado.
São Guchiatazade disse: “Eu tenho um pedido a fazer.” Foi um pedido magnífico. Ele não rogou a vida. Alegou a sua antiga fidelidade, mostrou que não tinha feito nada contra o Rei, nem contra o Império, e que até havia servido lealmente o pai do Sapor. E a esse título, pedia apenas uma coisa: que arautos percorressem toda a cidade de Susa, capital do Império, para comunicar que ele morria porque era cristão. Queria, por essa forma, desfazer o escândalo que muitos cristãos teriam tido pelo fato de saberem que Guchiatazade havia apostatado, logo ele que era a alegria e a honra de seus irmãos pela alta situação que ocupava nos momentos em que se celebrava a Santa Missa. E o Rei, apesar de todo o seu furor, atende esse pedido. Por fim, ele caminha para a morte, é estraçalhado.
Momentos depois, a cidade de Susa ouve os arautos que proclamam por toda parte: “Morreu o poderoso Ministro, o sustentáculo do trono foi derrubado porque perseverou em ser católico e não aceitou o culto do Sol que todos nós prestamos.” Podemos imaginar os católicos no meio da multidão, enlevados com o acontecimento, se olhando apenas e combinando secretamente encontros na primeira morada ou primeiro esconderijo, para comentarem o novo triunfo da graça de Nosso Senhor Jesus Cristo e se alimentarem nesse exemplo na certeza de que a Religião Católica não morreria, porque a graça suscitava heróis de tal maneira invencíveis, mesmo da argila fraca de apóstatas. Calculem o entusiasmo que isso deveria provocar.
Devemos caminhar para o nosso futuro com alegria, calma e confiança
Uma aplicação imediata desses fatos é esta: para as situações mais tristes e de maior debilidade da alma humana, há sempre um remédio, um auxílio da graça, desde que se peça. Com certeza Nossa Senhora rezou por esse homem que havia caído numa apostasia completa, tinha tantos liames que o prendiam ao mundo, era um ministro poderoso e fruía de uma porção de vantagens na codireção de um dos maiores impérios da Terra; ele, portanto, estava tão longe da Santíssima Virgem, mas por uma prece foi convertido.
O encontro dele com aquele mártir que caminhava para o último sacrifício e recusou olhá-lo evidentemente foi preparado pela Providência. O mártir teve aquela reação inspirado pela graça porque, nas condições em que Guchiatazade se encontrava, era o que lhe faria bem. Uma recusa de olhar bastou para regenerar um homem que tinha abusado de tantas graças anteriores. Vemos um miserável apóstata, que até pouco tempo antes despertava horror, transformado de repente em um Santo da Igreja Católica, cujo nome mencionamos com respeito.
Devemos ter, na nossa vida espiritual, uma confiança inquebrantável na misericórdia de Nossa Senhora, na onipotência das súplicas que Ela faz. E por essa forma nos mantermos sempre animados e perseverantes, como diz a Escritura: Ainda que caíssem mil à minha esquerda e dez mil à minha direita, eu continuaria a lutar (cf. Sl 90,7). O que no sentido espiritual quer dizer o seguinte: Ainda que apostatassem mil à minha esquerda e dez mil à minha direita, eu continuaria a esperar. E no nosso caso esperar que Maria Santíssima, em determinado momento, reze; e daquelas mesmas almas, a respeito das quais tivemos desapontamentos, tristeza, frustração, suba novamente para Deus o aroma da contrição e do louvor perfeito.
Assim, devemos caminhar para o nosso futuro com alegria, calma e confiança. Não sabemos o dia de amanhã, que provações e que batalhas trará para nós. Não sabemos se mesmo à nossa direita e à nossa esquerda teremos decepções. Não sabemos se seremos chamados para o martírio. Uma coisa sabemos: seremos chamados mais de uma vez para expormos a nossa vida. Não tenhamos medo de nosso medo. É um erro ter-se medo do medo. Devemos ter medo de não rezar, de não recorrer a Nossa Senhora. Se rezarmos e recorrermos à Santíssima Virgem, seremos apoiados, protegidos e cumpriremos nosso dever.
O único temor que devemos ter é de não estarmos unidos a Nossa Senhora
O único medo que devemos ter é de não estarmos unidos a Ela. Mesmo para esse medo há uma súplica que eu acho muito bonita, a oração Anima Christi, que se aplica inteiramente a nós: “Alma de Cristo, santificai-me; Corpo de Cristo, salvai-me…” Em certo momento, há este pedido belíssimo: “Não permitais que eu me separe de Vós” – Ne permittas me separari a Te. Então devemos dizer: “Minha Mãe, sei que sou tal que, se for só por mim, eu acabo me separando de Vós. Mas sei que sois tão insondavelmente boa e poderosa que podeis como que me proibir, me impedir de me separar de Vós. Então, a minha confiança em ser fiel resulta, minha Mãe, essencialmente disto: não permitais que jamais me separe de Vós. Tenho certeza de que, como nunca se ouviu dizer que tendo alguém recorrido à vossa proteção, implorado o vosso auxílio, fosse desamparado, essa minha súplica também não deixará de ser ouvida.”
E quanto mais os castigos se aproximarem, quanto mais sentirmos os perigos se avolumarem em torno de nós, tanto mais devemos dizer ao Imaculado Coração de Maria: “Não permitais que nos separemos de Vós!” Ela jamais o consentirá e, assim, nunca permitirá que nos apartemos de Nosso Senhor Jesus Cristo, para o Qual Ela é nosso traço de união.
Esta é a conclusão que devemos tirar à vista dessa manifestação de poder da graça. Nossa Senhora não permitiu que esse Santo se separasse d’Ela. Ele chegou a apostatar, mas num determinado momento Ela o chamou e ele brilha no Céu entre os Bem-aventurados. É um Santo canonizado pela Santa Igreja Católica que, mais do que apregoar a sua penitência para todos os habitantes de Susa, proclama, pelo seu exemplo, a confiança na misericórdia da Santíssima Virgem a todos os homens, enquanto o mundo for mundo. Peçamos a ele que reze por nós e que, quando chegarmos ao Céu, o encontremos lá bem unido a Nossa Senhora no resplendor de sua glória para, em união com ele, amarmos a Mãe de Deus e a Nosso Senhor Jesus Cristo por toda a eternidade.
(Extraído de conferência de 12/6/1971)