São Gabriel, São Rafael e São Miguel formam um unum. Conforme o matiz de nossa atividade apostólica, somos mais beneficiados por um ou por outro, tornando-nos eficientes na ação, terríveis no combate, e às vezes nos sentindo tão convidados à meditação, que temos a sensação de não existirmos senão para ela. É uma espécie de síntese dos três Arcanjos.
Na vida do ser humano é possível distinguir três aspectos: a contemplação, a luta e a ação.
Diferencio a ação da luta no seguinte sentido: A ação tem como fim principal a construção; ela, per accidens, derruba os obstáculos que encontra no caminho. A luta é a derrubada de algo que não deve estar de pé.
São Gabriel: o Arcanjo da contemplação
Isso tem uma correlação no mundo angélico? Para encontrar a resposta a essa questão, consideremos o seguinte:
Quando o Divino Espírito Santo convidou Nossa Senhora para ser sua Esposa, no dia da Anunciação, enviou um mensageiro para essa missão. Mas seria contra toda e qualquer ordem celeste das coisas imaginar que esse mensageiro fosse se incumbir de um recado sem ter nenhuma semelhança com a mensagem que ele levava.
Eu posso, por exemplo, mandar uma mensagem de alta nobreza e significação por meio de um portador qualquer que estiver ao meu alcance, dizendo: “Você chega lá, entrega a mensagem e pede um protocolo comprobatório.”
Mas na ordem angélica isso não é assim. São Gabriel deveria representar magnificamente o Divino Espírito Santo para Nossa Senhora, de maneira que fosse a própria figura do Esposo convidando-A. Portanto, ele precisa ser visto como o Arcanjo da contemplação, da chama que leva a alma a se embevecer com o Espírito Paráclito.
Se assim não fosse, São Gabriel não seria um mensageiro, mas um porta-recado. Ele tem que ser a imagem da mensagem que leva. Por aí podemos perceber o que Nossa Senhora sentiu quando viu o Arcanjo São Gabriel.
Compreende-se, assim, que logo que a Santíssima Virgem disse o “sim”, o Espírito Santo Se tenha unido a Ela. O Divino Paráclito preparou a alma d’Ela para ver face a face o “Original”, o Arquétipo, do qual São Gabriel não era senão um tipo. Claro está que o Espírito Santo é infinitamente mais do que um arquétipo, Ele é o Criador. Mas se poderia conceber essa relação à maneira de uma arquetipia.
Nesta concepção, o Arcanjo São Gabriel é aquele que nos traz o lumen, convida-nos para o recolhimento, a oração, a fim de sentirmos o gosto das coisas celestes e o desdém das terrenas, o que é uma graça insigne do Espírito Santo.
Agilidade diplomática de São Rafael
A única passagem da Bíblia onde vem descrita a atuação de São Rafael é o episódio narrado no Livro de Tobias. Pelo que me lembro da narração, Tobit, pai de Tobias, tendo ficado cego acidentalmente, empobreceu, precisando ser sustentado pelo trabalho da esposa.
Vê-se que Tobias era um rapaz casto, direito, sério, alegria de seu pai.
Em determinado momento, Tobit resolveu mandar Tobias a uma cidade onde morava um parente dele para cobrar uma dívida, pois isso os ajudaria naquela situação.
Tobias se põe a caminho e aparece um companheiro que era o Arcanjo São Rafael. A certa altura da viagem, chegam junto a um rio e aparece um peixe misterioso que ataca Tobias. Então, sob a orientação do Anjo, Tobias agarra e mata o peixe. São Rafael o ensina a abri-lo e a tirar de dentro dele um certo óleo que iria curar a cegueira de Tobit.
Chegando à cidade, encontra um parente, homem abastado e influente, cuja filha era lindíssima. Sete homens tinham querido casar-se com ela, mas movidos pela sensualidade. Ora, Deus não permitia que um homem sensual se casasse com a moça. Por isso todos os maridos tinham morrido, e ela já ficara viúva por sete vezes sem ter sido tocada por nenhum homem, pois não aparecera o varão casto que deveria desposá-la.
Apresenta-se Tobias e, com o assentimento do pai da jovem, casam-se. Então, acompanhado de sua esposa, ele volta para junto de Tobit.
Quando Tobias estava fora de perigo, já na casa paterna, o companheiro de viagem anunciou que era São Rafael, um dos sete espíritos que assistem na presença do Altíssimo, e sumiu.
Notem como toda a dificuldade de Tobias não era uma situação de guerra, mas um problema de ação. Seu pai é pobre e Tobias tem uma dívida para cobrar, uma viagem arriscada a fazer, uma jovem a desposar, uma vida para arranjar; pela intervenção do Anjo, essas atividades se consertam em cadeia.
Na ação entra a agilidade diplomática, a continuidade, tudo aquilo quanto representa o operar ao longo de situações incertas. São Rafael é também o protetor nessas circunstâncias, porque se vê que Tobias foi sujeito a toda espécie de vicissitudes até a situação da família dele se regularizar, tendo ele de agir arduamente, e só se saiu bem por meio de milagres.
Por isso, São Rafael é protetor na linha do princípio axiológico1, da confiança, da misericórdia, enfim, de toda a bondade para se restabelecer e se levar uma vida normal.
São Miguel: o Arcanjo da luta
Embora, absolutamente falando, a contemplação seja superior à ação, não corresponderia à realidade comparar a atuação dos três Arcanjos a um triângulo em que São Gabriel estivesse sempre no ângulo superior e os outros dois abaixo, em situação de igualdade. Isso torna-se particularmente claro ao considerarmos São Miguel, o Arcanjo da luta.
O empenho do combate, de si, tem algo de destrutivo de quem o trava. Mesmo quando não conduz necessariamente à morte, a luta corresponde a um esforço superior ao desgaste normal do mero trabalho. Por isso traz consigo um aspecto de oblação, na qual o caráter de desinteresse é maior. Por exemplo, o desprendimento manifestado no episódio de Abraão com Isaac é fabuloso! Aquilo é puro amor. Pois bem, pode-se lutar por puro amor indo para uma Cruzada, como Isaac caminhou para ser morto pelo pai.
Aliás, Nosso Senhor Jesus Cristo afirmou que a imolação é a maior prova de amor: “Não há maior prova de amor do que dar a vida pelo amigo” (cf. Jo 15, 13). E dizia isto de Si mesmo para nos explicar como devemos estar certos de seu amor por nós.
Por aí podemos ver a magnificência da luta e, portanto, da atuação de São Miguel Arcanjo.
Profetismo da luta e do holocausto
Em face deste quadro, a ação parece muito inferior à contemplação e à luta. O problema está em termos uma concepção muito material da ação. Com o próprio São Rafael fica-nos na mente o desenhinho – aliás, encantador e bobinho –, que ilustrava os livros de História Sagrada para crianças, dele andando a pé, com um bastão do qual pendia uma espécie de moringuinha, e conversando com Tobias animadamente.
Ora, São Rafael foi um Anjo de uma sabedoria ativa superior, que ajudou Tobias a ver o que de fato ele deveria querer na viagem, encontrar os meios para realizá-la, e cuja companhia lhe dava força e ânimo para empreendê-la com êxito. O aspecto material da viagem para o Anjo não era nada. Fazer com aquele boneco fabricado por ele – o qual Tobias tomava como sendo um homem – falasse e caminhasse, para um espírito angélico não era coisa alguma.
Compreende-se, então, que para nos referirmos a São Rafael como o Arcanjo da ação devemos escolher os mais altos graus e padrões da ação. Portanto, muito mais do que a atuação operacional, meramente ativa, a ação pensante. Algo à maneira, por exemplo, daquela frase do Marechal Foch2: “Ma droite est pressé, ma gauche est menacé, ma arrière est coupée… que fais-je? J’attaque”3. Isto é magnífico! Quer dizer: “Eu estou num apuro total, então vou atacar!” Esta é uma ação, se assim se pode dizer, “rafaélica”, no sentido de que é o pensamento sobre a ação de uma alta categoria.
A arte de reinar, governar, dirigir profeticamente, a missão profética no conjunto da ação da vida diária estaria com São Rafael, enquanto que com São Miguel estaria o profetismo da luta e do holocausto. Assim se compreende a beleza da distinção entre o agir desses Arcanjos.
Os três Arcanjos em episódios da vida de Nosso Senhor
Poder-se-ia perguntar, na vida santíssima e augustíssima de Nosso Senhor, qual desses aspectos brilhou mais e em quais episódios Ele Se conduziu como o Deus de Gabriel, o Deus de Rafael e o Deus de Miguel. Seria um estudo do Evangelho muito bonito.
A meu ver, na Transfiguração do Monte Tabor Nosso Senhor pode ser simbolizado eminentemente por São Gabriel. Na Paixão, por São Miguel, pois é o holocausto e a luta, foi quando Ele venceu o mundo. Ademais, agonia, em grego, significa a luta do atleta; os atletas eram chamados agonistas. Depois, enquanto Mestre, percorrendo a Terra Santa e fazendo apostolado em sua vida pública, é simbolizado por São Rafael.
Com base nestas considerações poderíamos imaginar a nossa vida como uma ação concomitante dos três Arcanjos, com momentos em que ora prepondera São Rafael, ora São Miguel, ora São Gabriel.
Os três Arcanjos formam um unum e, conforme o matiz de nossa atividade apostólica, somos mais beneficiados por um ou por outro. De maneira que, às vezes, nos tornamos tão eficientes na ação que temos a impressão de existir só para agir. Outras vezes, somos tão terríveis no combate que parecemos viver só para a luta. Mas há ocasiões nas quais nos sentimos tão convidados à meditação, que temos a sensação de não existirmos senão para ela. É uma espécie de síntese dos três Arcanjos.
Donde se poderia deduzir que o objetivo de nossa ação apostólica é uma “angelização”. Há uma espécie de presença angélica entre nós, um prolongamento angélico de uns para os outros, e uma representação angélica correspondente ao fundo de nossos espíritos e de nossas almas, que explica a nossa escravidão e união a Nossa Senhora.
(Extraído de conferências de 28/3/1976 e 12/12/1976)
1) Princípio que leva o homem a ser fiel a sua axiologia, ou seja, ao eixo em torno do qual devem girar todas suas ideias, volições e atividades, visando a glória de Deus e o bem de sua alma.
2) Ferdinand Foch (*1851 – †1929). Militar católico francês que comandou os exércitos da França e da Inglaterra durante a I Guerra Mundial.
3) Do francês: Minha direita é comprimida, minha esquerda é ameaçada, minha retaguarda é golpeada… Que faço eu? Eu ataco.