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A verdadeira amizade

Concebidos no pecado original, todos temos algo a ser aperfeiçoado e corrigido. O amigo verdadeiro é aquele que, considerando sua própria debilidade, é cônscio das lacunas alheias e se dispõe a auxiliar seu próximo rumo à perfeição; aceita as reprimendas daqueles que lhe são benquistos como meio salutar de combater o amor-próprio.

Há um conceito semi-generalizado de que, sendo o afeto mútuo impossível sem a confiança mútua, e de si ambos são sentimentos e disposições de alma tendentes a desvanecer barreiras de um em relação a outrem, os que participam da mesma estima e amizade devem, dentro das possibilidades, dispor tudo quanto têm em comum; não manifestar atitudes que lembrem a possibilidade de desconfiança recíproca, ou que insinuem reprimenda de um a outro, mas, isto sim, permeadas de despreocupação terna e completa.

De modo que, se no trato cordial aparecer a menor reserva, por onde o interlocutor entenda, conforme as circunstâncias, ser objeto de represália, isso tisna as relações, prejudica e pode levar à retração recíproca e irremediável.

Entretanto, a amizade e a confiança verdadeiras não são assim. O descrito acima poderá ser um de seus aspectos, não o único, pois o homem reto não é amigo autêntico de quem lhe demonstra apenas esse lado benévolo. É preciso antes de tudo considerar o seguinte ponto.

“Repreende o justo e ele te amará”

Toda criatura humana é concebida no pecado original e está em estado de prova, logo, é pecável. Portanto, ao nos relacionarmos manifestaremos ao próximo que ele tem de fato toda a confiança que merece. Porém ela não será ilimitada, porque o homem reto duvida de si mesmo e vigia-se. Agindo assim consigo, também deve estar atento em relação ao outro, por ver na sua própria miséria a alheia. Os santos que praticaram de modo extraordinário as maiores virtudes eram, exatamente nessas virtudes, mais especialmente vigilantes de si e dos outros.

A Escritura diz: “Repreende o justo e ele te amará” (cf. Pr 9, 8). No amigo no qual eu note uma vigilância e uma repreensão pelo menos em potencial, ali o amo. Se sou um homem reto, devo esperar de meu amigo uma repreensão. E devo amar nele a disposição de alma por onde ele é assim.

Em consequência, o convívio humano, por mais afetuoso que seja, não pode ser despreocupado, sem fronteiras, e, no sentido psicológico da palavra, desarmado.

Devemos sentir, sobretudo nos superiores, a permanência da vigilância, e por detrás dela, a aptidão de corrigir. Entretanto, muitas vezes um homem justo não repreende porque o repreendido não tem amor.

Pilar fundamental do relacionamento mútuo: a consideração da fraqueza humana

Todas essas observações desagradam as pessoas. Pois não querem aceitar essa consequência necessária de três pontos: o pecado original, a existência do demônio e o estado de prova sujeito ao homem.

Flávio Lourenço
A visita do cardeal – Museu de Cádiz, Espanha

Adão, sem pecado original, estando no Paraíso, sofreu tentação e caiu, haveremos de imaginar, nós e nosso amigo, impassíveis de queda? Como nós, ele também é ser humano, pode começar a decair e a qualquer instante olhar com agrado para o fruto proibido.

Sendo assim, como poderei não ter restrição, ao menos em potencial, em relação a ele? Será ela carregada de consideração, é verdade, mas não deixará de ser imposto certo limite.

A verdadeira amizade implica disposição à correção

O que não for isso, não é sério, não é amizade. Se o repreender é um dos ofícios do amigo, aquele que por moleza ou qualquer motivo não está disposto a fazer-me esta incumbência, não pode ser reputado como tal.

Imaginem alguém que tivesse um amigo que fosse grande cirurgião, em determinado momento julga necessário ser operado, e pede a ele. Contudo, por pena, este se recusa a fazer a cirurgia:

— Ah, eu gosto tanto de você que não quero lhe operar.

— Mas estou precisando, você não quer fazer-me esse favor?

Assim diríamos àquele ao qual devotamos verdadeira amizade: “Preciso que me repreenda, você não quer me repreender?”

O que não for isso, absolutamente, não é amizade séria.

Autêntico trato amigável, averso ao amor-próprio

É inegável que entre nosso povo todas as formas de trato onde transparece um pouco disso elimina a popularidade e cria isolamento. Também os brasileiros apenas a meio sangue, e os habituados a morar em nosso país há muito tempo, se não estiverem atentos, aderem a esse modo de pensar e agir. Inclusive o alemão prussiano, por mais militarista que seja, se viver no Brasil, passado algum tempo isso lhe entra no subconsciente. Porque o amor-próprio se habitua demasiado a tudo o que o afaga.

(Extraído de conferência de 7/5/1983)

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