Dona Lucilia era uma senhora posta em proporção ao relacionamento com uma rainha, mas também com o mais desafortunado, infeliz e minguado de seus filhos. A sepultura na Consolação e os ambientes de seu apartamento parecem estar impregnados de sua presença.
Vendo fotografias isoladas de damas da corte britânica no cortejo ou na tribuna da nobreza, durante a coroação da atual Rainha, eu tinha a impressão de que uma ou outra poderia ser a soberana, pois, como é próprio da presença da soberana comunicar algo de régio àqueles com quem ela trata, aquelas eram damas conforme a Rainha.
Nessa perspectiva eu consinto, de muito bom grado, em atender o pedido de tratar sobre o “Quadrinho”1, o ambiente onde mamãe viveu seus últimos anos, isto é, o apartamento da Rua Alagoas, primeiro andar, e também as graças sentidas no Cemitério da Consolação, junto ao túmulo dela.
Digna diante da realeza e na intimidade
Não há sobre a face da Terra alguém mais empenhado em elogiar o “Quadrinho” do que eu. Ali mamãe não tem nada de régio, nem deveria ter, mas ela estaria bem num ambiente onde houvesse uma rainha. Ela está retratada em trajes domésticos, e compreende-se que jun to de uma nobre ela tivesse um traje de gala. Se estivesse com uma rainha na intimidade, ela não precisava ser diferente para estar consonante com a majestade real.
Quão atenciosa e respeitosa, quão transformada em dedicação, em devotamento, em respeito, em embevecimento, em desejo de colocar-se no devido nexo e na devida proporção com a soberana que ali estivesse presente!
Talvez alguém poderia se perguntar: Será que uma joia ou um vestido de seda não acrescentariam algo a ela? Eu acho essa pergunta tola, pois isso iria bem para outra circunstância, mas não seria necessário para aumentar a dignidade dela; são coisas diferentes. Caso as circunstâncias impusessem, a indumentária seria outra, não há dúvida; ali mamãe está na intimidade da casa e a sua dignidade não precisava ser acrescida em nada.
Entretanto, se viessem avisá-la que em sua casa estava uma rainha, sem dúvida ela se apressaria em adornar-se e em pôr o seu melhor traje de gala. Quando a nobre entrasse, mamãe estaria naquela mesma naturalidade. Portanto, no glorioso cortejo das nobres damas, haveria um lugar para a senhora do “Quadrinho”, pois ali ela está em perfeita proporção com a realeza.
Afabilidade da senhora do “Quadrinho”
Notem, também, a afabilidade maternal! Dir-se-ia: “Então é uma matriarca?” Não propriamente.
No “Quadrinho” mamãe não parece ter em vista a excelência, o estupendo resplendor daquilo que um dia ela alcançaria por meio das suas orações. Porém, parece ter visto a cada um inserido naquela mesma intimidade, tratando com ela, com sua distinção própria, nas distâncias e até nos afagos, no calor da intimidade. Se ela, entretanto, era uma senhora posta em proporção ao relacionamento com uma rainha, também não ficaria maior nem menor ao tratar com o mais desafortunado, infeliz e minguado dos filhos dela.
Consideremos uma imagem muito piedosa da Santíssima Virgem como, por exemplo, Nossa Senhora das Graças. Imaginemos que no momento no qual Ela nos fitasse – como fitou Santa Catarina Labouré – Deus quisesse fazer-nos conhecê-La olhando para Ele. Pois bem, diante do esplendor e da majestade de Deus, seu Divino Filho, Ela seria a mesma.
Se d’Ela se aproximasse Judas Iscariotes – arrastando-se no chão, deitando sangue, pus e mau cheiro – e dissesse: “Eu não tenho coragem de vos olhar…”, tenho a impressão de que Nossa Senhora diria “Meu filho”, mesmo se ele fosse falar-Lhe logo depois de Ela ter assistido ao sepulcro de Nosso Senhor sendo fechado e estar tudo consumado.
Ora, consideremos também o túmulo do Cemitério da Consolação. Eu acho muito bonito o fato de que tudo quanto se tem presente ao ver o “Quadrinho” torna-se, de algum modo, sensível a nós estando diante da sepultura dela. Contudo, eu não seria favorável à ideia de pôr o “Quadrinho” lá, pois, pelas suas expressões próprias, a atmosfera que impregna o lugar é capaz de dizer coisas que o “Quadrinho” não diz.
Notem tratar-se de um jazigo convencional, de um bom granito, com uma cruz deitada sobre a campa. Não há nada, na natureza daquele material, que sugira as impressões que se têm ali.
Alguém perguntará: “Por que o senhor não mandou fazer uma coisa que sugerisse essas impressões?”
Eu não tinha nenhum elemento para achar que deveria ser diferente, e que aos olhos dos homens ela fosse outra coisa além de uma senhora de família tradicional, sepultada no Cemitério da Consolação. Meu sistema, nesses assuntos, é andar passo a passo enquanto não houver indícios para supor que algo vai se dar, e como não havia dados, então agi de acordo com a convenção.
O resultado foi bom, porque o encanto que se sente lá não tem explicação, e se o granito fosse róseo ou de uma outra cor mais festiva, dir-se-ia: “De longe vimos o granito maravilhoso”. E não é assim. O granito escuro é digno e sério, não é senão isso.
Ambientes impregnados da presença de mamãe
Analisemos agora a residência dela. Eu noto no apartamento a mesma atmosfera do “Quadrinho” e da sepultura. Os salões, a sala de jantar e o hall possuem um ornato que contribui, a seu modo, para exprimir muito de sua alma. Nesses ambientes figuram objetos antigos da família de mamãe, com os quais ela se sentia muito autêntica e muito à vontade.
Com exceção da cadeira de balanço que está ligada ao passado da família, os demais móveis foram mandados fazer por meu pai, no Liceu de Artes e Ofícios, quando eu ainda era menino, e são de um estilo usado na Belle Époque2, antes da I Guerra Mundial. Aquele estilo artístico encontra-se caracterizado no alto das estantes.
Dona Lucilia possuía um relógio inglês fabricado em madeira – modesto, digno, bom – e também uma escrivaninha conexa com ele. O sofá, eu mandei fazer posteriormente, mas não é moderno. As cortinas datam do tempo de mamãe, e também são acortinados convencionais.
Quando se entra em algum daqueles ambientes, tem-se a impressão de que ela está presente. Eu acho ainda mais expressivos os dois salões contíguos, em um dos quais está a imagem do Sagrado Coração de Jesus diante da qual ela rezava tanto e tanto.
A mesinha redonda junto ao sofá do escritório não existia no tempo de mamãe, porque era onde eu ficava conversando com ela. Entretanto, quando ela veio a faltar, eu mandei colocar ali esse móvel junto com um abat-jour para preencher – pobre preencher! – a sua ausência, enquanto eu lia um pouco, deitado durante as sestas.
Enfim, tem-se a impressão de que tudo está impregnado da presença dela.
(Extraído de conferência de 28/9/1981)
1) Quadro a óleo, que muito agradou a Dr. Plinio, pintado por um de seus discípulos, com base nas últimas fotografias de Dona Lucilia. Cf. Revista Dr. Plinio n. 119, p. 6-9.
2) Do francês: Bela Época. Período entre 1871 e 1914, durante o qual a Europa experimentou profundas transformações culturais, dentro de um clima de alegria e brilho social.