No mundo contemporâneo, onde se preza a funcionalidade acima de qualquer qualidade, poucos espíritos compreendem a indissociável relação posta pelo Criador em sua Obra entre o belo e o funcional.
Que nexo há entre formosura e religião, formosura e moralidade?
É bem evidente que a formosura pode ser utilizada para o mal, e o tem sido muitas vezes. Mas, considerada em si mesma – abstraindo-se do mau uso que se possa fazer dela – ela é vista pela Igreja, pela Doutrina Católica, como um reflexo de Deus, que é a Formosura incriada, subsistente, infinita. Deus é infinitamente formoso!
Suma formosura do Homem-Deus
Pode-se ter disto uma ideia contemplando a fisionomia de Nosso Senhor Jesus Cristo, a qual corresponde à natureza humana que teve a Segunda Pessoa da Santíssima Trindade quando Se encarnou. É a face que melhor poderia refletir toda a formosura humana e divina.
Pode-se pensar na formosura infinita de um olhar do Homem-Deus. Por exemplo, o primeiro que deu à Santíssima Virgem, logo depois de ter nascido.
Que maravilha de candura, de inocência, de inteligência e de elevação! E digo intencionalmente de inteligência, porque o Menino Jesus a teve em grau eminente desde o primeiro momento de seu ser, nas entranhas puríssimas da Virgem Maria, porque foi concebido sem pecado original e tinha todas as perfeições humanas imagináveis.
Pode-se conceber a formosura sem fim do último olhar que Nosso Senhor Jesus Cristo deu à sua Mãe. Que doçura, que elevação, que sentido de holocausto, que harmonia, que nobreza, que bondade neste último olhar antes que seus olhos se fechassem para sua existência terrena! São coisas de uma formosura que nenhum artista pode sequer descrever.
Desordem e hediondez próprias ao demônio
Do lado oposto, vê-se a ação do demônio: é próprio a ele semear em torno de si a desordem e o horror. Se, por exemplo, a Providência lhe desse a possibilidade de atuar como deseja numa sala, sua primeira manifestação seria queimar objetos, colocar suas garras negras, pôr os móveis em convulsão, trazer de fora matérias imundas, impregnar tudo de mau odor.
Aquilo que é por excelência desordenado, hediondo e atrozmente horrível, a ele lhe convém como ambiente próprio à sua natureza revoltada, pecadora, decaída.
Comprova-se assim que a recusa de toda forma de formosura, sob pretexto de funcionalidade é, no fundo, uma manifestação do caráter diabólico das transformações pelas quais o mundo contemporâneo vai passando.
Ainda que o demônio possa ter utilizado algumas vezes a formosura para perder as almas, fá-lo apenas como um artifício, porque, por sua própria inclinação, só executa o horrível. Deus, pelo contrário, faz só o que é formoso.
Então, a ideia essencial das considerações que farei é: Deus – formosura; demônio – hediondez.
Para ilustrar esses dois pensamentos consideremos alguns aspectos da natureza e da cidade moderna.
O mar, tão formoso quanto funcional
O mar tem uma extraordinária formosura e uma rara beleza. Por vezes, o panorama fica dividido em duas partes, uma obscura e outa luminosa; é a luz do sol que deixa seu reflexo luminoso desde o horizonte até a praia, onde as areias úmidas brilham ao seu calor.
Isso nos leva a pensamentos mais altos. Qual a relação que isso tem com Deus? Qual é a forma de formosura?
O olhar do homem vai ao longe, onde o céu e a terra se aliam e se confundem. Se ele tem um pouquinho de senso artístico, admirando-o, vê realidades que transpõem a vida material e os interesses terrenos, e entende que a alma humana tem necessidade de uma formosura que não se encontra nesta existência e que deve existir em outra vida, para a qual nossa alma é feita e pela qual anseia com toda a intensidade.
Há um apetite do eterno, do imutável, do perfeito, do definitivo, que as coisas terrenas não podem dar. Um homem, na contemplação da beleza do mar, aproxima-se da contemplação de Deus, principalmente se é católico e sabe que Deus quis pôr nas criaturas uma semelhança do seu próprio Ser; deste modo, a luz refulgindo no mar é como a luz do Espírito Santo brilhando sobre as almas.
O mar sem a luz é obscuro, mas quando o sol o ilumina, como é brilhante! Assim são as almas com e sem a graça de Deus. Sem ela, o homem não é senão pecado, defeito e abominação; com ela, como pode se tornar diferente!
E assim se pode ir até as mais altas considerações do espírito e subir às verdades eternas. Imaginemos num panorama marítimo uma aparição de Nosso Senhor Jesus Cristo. Dir-se-ia que Ele estaria em seu ambiente natural, caminhando com facilidade sobre o mar, ainda que revolto, e refletindo nas águas sua luminosidade. Recordaríamos o trecho do Evangelho de São João: “A luz veio a este mundo e as trevas não puderam dominá-la” (Cf Jo 1, 9-10). Nosso Senhor Jesus Cristo é a Luz!
O mar, que é tão belo, é também funcional. Ele é necessaríssimo ao homem e a todo o equilíbrio da natureza, sob inúmeros pontos de vista. Se o mar deixasse de existir, não haveria possibilidade de vida sobre a Terra. Ou seja, a composição química do mar, sua maneira de chegar à praia, seus movimentos, as ondas. Tudo é tão formoso quanto estritamente funcional.
Não há conflito entre a verdadeira formosura e a funcionalidade. A funcionalidade está ligada à ordem prática; a formosura, à ordem estética. Entre ordem e ordem não pode haver incompatibilidade. A verdadeira incompatibilidade há entre ordem e desordem.
Logo, o princípio é: a natureza nos mostra como há uma coordenação, um nexo natural entre formosura e funcionalidade; demostra também que Deus quis que o homem vivesse num mundo no qual houvesse formosuras; que seria mau ao homem que não houvesse formosura e por isso a multiplicou de modo tão frequente em espetáculos magníficos, como o mar.
Cidades funcionais, edifícios ateus
As cidades modernas são funcionais. Verdadeiras cosmópolis indefinidas, elas poderiam ser consideradas como um conjunto de qualquer coisa: de prisões, de fábricas, de grandes universidades, poderiam ser tudo. E o que pode ser tudo, pode ser nada. As cidades modernas são estritamente funcionais, isentas de formosura.
Há edifícios que espantam, causam surpresa. Deslumbram? Não. Porque qualquer criança com seus brinquedos infantis pode fazer uma torre semelhante a um prédio. Chamam-no de simplicidade, mas é primitivismo.
Se considerarmos um conjunto de prédios, por exemplo. Não há nele nenhum ornamento ou preocupação artística; as massas têm o tamanho que a prática sugere; as relações harmônicas entre os vários corpos é o último que se pensou. Um demente ao qual se dão algumas caixas de fósforos vazias em seu hospital, para se divertir, faria algo semelhante. Se há algo que não é necessário, é ser inteligente para fazer isso.
Numa imensa calçada, com tantos retângulos, onde pode haver algo que exprima formosura? Nem no mais pequeno milímetro. A preocupação é, em geral, fazer construções econômicas, a fim de sobrar o dinheiro pa ra se fazer outras parecidas e assim se ter o maior número possível de edifícios mecânicos e hostilmente iguais.
O homem, ao ver uma sequência de prédios idênticos, cai esmagado, aterrado; é inumano. Um animal poderia viver aí; os próprios alvéolos das colmeias não são tão hediondos quanto isso; a não ser que fossem postos todos na horizontal.
É estritamente inumano e ateu, no sentido de ser feito apenas para as conveniências da vida material, não para as da vida espiritual. E onde não há manifestação da alma e só da matéria, há uma negação de Deus. É uma arte feia, melancólica, triste, ateia, do mundo materialista em que estamos.
Alguém dirá: “Mas, Dr. Plinio, isto é uma inovação, não é habitual.”
Eu digo: “É bem verdade, não é habitual.” Quando a arte moderna e materialista quer fazer algo que não seja habitual, o faz de modo extravagante, com um certo aspecto de careta.
Ilusão pelas grandes avenidas
Quando começou a moda das autoestradas, se burlavam as pessoas das pequenas ruas tortuosas das antigas cidades: “Não… grandes avenidas retas, porque tudo corre rápido, é prático, é funcional!” E encheram as avenidas, por maiores que fossem, com milhares de automóveis. Pois bem, basta uma pequena interrupção, um acidente, para tudo cair no caos, numa cacofonia. São buzinas que soam, pessoas que gritam desde os automóveis; não há boa educação, todos estão parados, nervosos, fazendo caretas com a face ou falando sozinhos, porque todos estão com hora marcada…
Outro exemplo é o ônibus. Quando visto de fora, ele parece aprazível: com vidros bem fechados, sem o perigo da chuva nem da poeira. Dá a impressão de que há bons assentos, de que a locomoção é boa, com rodas de borracha que deslizam pelo asfalto.
Ora, por experiência própria sabemos que todo ônibus é melancólico, monótono, desagradável. Todos os que podem compram seu próprio automóvel e fogem de dentro logo que possível.
As grandes cidades foram construídas sob pretexto de funcionalidade: é mais prático que os homens se reúnam em grandes centros do que estarem divididos em cidades e não haver necessidade de viagens de um lugar a outro. Hoje é mais cômodo ir de São Paulo a Santos ou a Jundiaí, do que ir de certas partes de São Paulo a outras. É a mentira da “superfuncionalidade”.
A Escritura tem uma passagem interessante que diz: “Mentita est iniquitas sibi” – “A iniquidade mentiu para si mesma.” Quando se quer só o funcional, fazem-se coisas terrivelmente não práticas.
Por exemplo, as estruturas socialistas: grandes administrações, uma grande direção supranacional, com direções regionais, com subdireções municipais, com a direção para quarteirões e um fiscal para cada prédio. Parece colossal. É o começo da burocracia, da indolência e do caos. Nada mais. A funcionalidade exclusiva elimina, exila o formoso e introduz a desordem.v
(Extraído de conferência 14/1/1974)