A inocência é o estado de alma por onde a pessoa, com retidão de espírito, procura com enlevo todas as arquetipias e por causa disso não peca. O sofrimento é um complemento necessário da inocência, que a faz passar, muitas vezes, pelo incompreensível. Essa é a hora do puro ato de amor.
O homem, mesmo se fosse concebido sem pecado original, vivendo nesta Terra – não digo no Paraíso –, passa por uma incompatibilidade entre as condições desta vida e sua dupla natureza espiritual e material.
Limpidez das arquetipias e sanidade criteriológica
O exemplo característico é Nosso Senhor Jesus Cristo em sua Paixão, o qual passou por um sofrimento medonho. O Redentor tinha uma natureza ordenada, mas houve uma incompatibilidade entre essa natureza e a perspectiva posta diante d’Ele.
Esse choque obrigou-O a exercer uma disciplina que já possuía. Então, parece que tudo aquilo que estava em ordem, chocando -se com um obstáculo tremendo, se tornou ainda mais denso para a manutenção dessa ordem.
Transpostas para Nossa Senhora, essas considerações também se aplicam. Concebida sem pecado original, n’Ela havia uma santificação contínua.
É fora de dúvida que havia na Santíssima Virgem uma ordenação perfeita. Por exemplo, seu instinto materno deveria ter uma perfeição insondável. Mas, colocado diante da ideia da imolação daquele Filho, seria uma imperfeição se não tivesse uma espécie de choque enorme. E, ao aceitá-la, a graça n’Ela cresceu.
Fica-me no espírito a ideia de que se a Mãe de Deus tivesse vivido sem passar por esse sofrimento não teria crescido na inocência.
O conceito de inocência precisa ser requintado. Ele, de fato, progrediu um pouco no nosso vocabulário. Hoje compreendemos ser a inocência o estado de alma por onde a pessoa, com toda a retidão de espírito natural e a de batizado – uma criteriologia sadia –, procura com enlevo todas as arquetipias e por causa disso não peca.
Nossa Senhora era inocente em todos os sentidos, mas eminentemente nesse. Limpidez de todas as arquetipias, sanidade criteriológica fabulosa, sem nenhuma tendência para o mal causada pelo pecado original. Por exemplo, quando Ela perdeu o Menino Jesus, ou no momento da Paixão de Nosso Senhor, todos os instintos da natureza humana n’Ela se moveram com ordenação. Seria uma desordem se assim não fosse. Ela teve que comprimir seus sentimentos para manter essa ordem.
O sofrimento acrisola a inocência
Qual a necessidade do sofrimento para a inocência e, portanto, para outras virtudes?
As cogitações ascéticas comuns são esplêndidas, mas não põem em evidência o elemento mais recôndito que estou procurando expor.
Se Nossa Senhora tivesse transposto a vida sem sofrimentos, sobretudo o da Paixão, o sofrimento auge, poder-se-ia sustentar que ao menos uma pessoa adulta passou sua existência, por assim dizer, em brancas nuvens. Se isso tivesse acontecido, por falta de acrisolamento sua inocência não se estenderia até onde é natural dentro da alma humana e Ela acabaria não sendo inteiramente inocente.
Sem sofrimento a inocência não se acrisola. Não se acrisolando, a pessoa deixa de adquirir uma perfeição. O que significa isso na vida comum de um adulto?
Imaginemos Roland acabando de ser armado cavaleiro. Logo depois disso os sarracenos se retiram, uma grande paz invade o Império de Carlos Magno e ele vai cuidar de agricultura.
É preciso reconhecer que Roland não morreria tão grande guerreiro se não tivesse havido a guerra. Poderia até ser mais heroico aceitar a profissão de agricultor, mas o Roland da Cavalaria ele não seria.
Imaginemos a morte do Roland agricultor. Ele recebe a notícia de que o inimigo avança, então se levanta do leito, diz: “Afinal eu vou!”, mas morre supondo estar furando o abdome de um sarraceno e os Anjos o assistem. Isso é muito bonito, entretanto não é o guerreiro.
Assim também é a inocência. Se não chega a efetivar-se, fica como o guerreiro que se tornou agricultor. E em Nossa Senhora sou propenso a achar que era necessária a dor para completar a inocência, não a fim de tirar-Lhe algo de nocivo, mas para acrescentar-Lhe algo que se poderia comparar ao veleitário se não fosse o sofrimento.
Tenho a impressão de que isso instala muito bem o sofrimento dentro da perspectiva humana, porque visto assim ele fica mais aceitável do que não se pondo esse matiz.
Caráter restituidor do sofrimento
Uma consideração, até prévia ao acima afirmado, diz respeito ao caráter restituidor do sofrimento, segundo o qual quem recebeu tanto, absolutamente falando, deve querer fazer um holocausto.
Se alguém dissesse a respeito de um indivíduo: “Foi exigido dele um sacrifício que ele não quis fazer e acabou fugindo, mas Deus o agarrou por ter chegado a hora de seu holocausto.” Isso não estaria bem. A justiça, amada pelo beneficiado, cria nele uma sede de imolação.
Por exemplo, se alguém me faz uma grande gentileza eu procuro dar-lhe depois um presente, o qual não é um suborno. Ainda que o benfeitor seja um inútil, um inválido que nunca mais me daria nada, se tenho a alma bem formada devo querer tirar algo daquilo que é meu e lhe conceder, porque ele tirou algo de si para dar a mim.
Eu seria levado a dizer ser esse sofrimento ontológica e moralmente necessário, pois sem ele não se realiza em plenitude a perfeição do ser racional, o qual fica meio ladrão se não restituir.
Essa consideração confere uma lógica ao sofrimento e nos faz sentir melhor como ele é necessário. Assim, ele vai tomando outro aspecto: ele é aceito de modo voluntário e desejado como elemento da vida.
Quanto maior a inocência, maior o sofrimento
Para compreendermos bem a questão da inocência, é indispensável considerar que há uma proporção entre ela e o sofrimento. De maneira que quanto maior é a inocência tanto maior deve ser o sofrimento.
A alma inocente é mais sensível do que a não inocente, porém ela adquire, para além da sensibilidade, uma resistência que não é uma insensibilidade, mas uma couraça. Ela se arma de uma resistência na zona nobremente pura da alma, formando um complemento lindo com a delicadeza muito suave existente por trás daquela parte dura. É o contrário, por exemplo, do botequineiro cantando tangos sentimentais, mas que na hora de cobrar uma dívida se torna um brucutu de uma dureza medonha, fazendo horrores ao revés disso que falamos.
O inocente tem delicadezas, porém com firmezas insuspeitáveis diante de determinadas situações. Dessa forma, aquilo que está em potência na inocência se transforma em ato. A inocência não poderia adquirir esse complemento, que é uma espécie de dureza heroica, se não fosse de encontro à prova. De onde se vê que o sofrimento é um complemento necessário da inocência e precisa ser proporcional ao grau da inocência.
O apostolado da inocência deve ser também o apostolado do sofrimento. Precisamos entender o que ele é.
Seriedade é a inocência quando ama a Cruz
Para Nossa Senhora dar toda a medida de Si mesma, de certa forma conveio que perdesse o Filho. Ela, por ser de uma inocência insondá vel, deu tudo, passando por esse sofrimento insondável.
Donde o discípulo, o escravo de Nossa Senhora, ser amigo da Cruz, quer dizer, é uma reversão da qual não adianta escapar. E digo mais, se quisermos tomar a sério o conceito de seriedade, devemos afirmar: seriedade é a inocência quando ama a Cruz. Fora disso não existe seriedade. Sustento isso de pés juntos.
Tenho a impressão de que nada é mais duro do que não ser assim, e se a Santíssima não tivesse passado por todas as dores, teria um sofrimento de virtualidades sobrando, fervendo n’Ela e quiçá apodrecendo dentro d’Ela, pior do que aquilo que Ela sofreu. Ou seja, posta a inocência, era preciso sair do outro lado.
Há algo que atrai na linha da inocência e faz com que, independentemente do aspecto punitivo do sofrimento, ele seja amado. Por exemplo, é muito bonito alguém ir para a Cruzada para ser penitente, mas é mais belo que vá por inocência. Eu gostaria de repisar neste ponto: a inocência sem sofrimento é uma inocência à qual falta seriedade. A seriedade é o nobremente córneo que a inocência adquire quando se choca com o sofrimento. Seria mais ou menos como um vapor de água indo de encontro a uma parede e se condensando, tomando consistência e nobreza. Do contrário, fica meio residual, germinativo e acaba não sendo nada.
O sofrimento ordenador
Reporto-me a uma conversa que tive com um membro de nosso Movimento, o qual estava muito provado e em quem eu queria incutir uma certa resignação.
Embora não fosse uma pessoa muito inteligente, ele me disse algo que me deixou pasmo: “O senhor está falando de sofrimento. Mas ele tem dois sentidos diferentes, porque um é como o senhor o entende, outro é aquele que eu padeço. O meu é de quem sofre no mundo. O senhor faz um elogio do sofrimento que não cabe àquele que estou padecendo. O senhor afirmou que o sofrimento habitável, o meu é inabitável; o sofrimento forma, o meu deforma; o sofrimento articula, o meu desarticula. São dois sofrimentos diferentes. O senhor deveria falar do sofrimento que eu tenho.”
Intelectus apertatus discurrit1. Ele estava apertado e, para se desapertar, soube encontrar a fórmula conveniente. Então deveríamos descrever essas diferenças para não parecer que estamos fazendo a apologia do sofrimento do precito.
Creio ser necessário fazer uma descrição psicológica, porque sem ela o assunto não fica esclarecido.
Sendo o sofrimento restituidor e ordenador, o indivíduo que não sofresse nada padeceria mais do que aquele que sofre.
Imaginemos uma senhora que tenha de fato uma verdadeira vocação para o casamento; ela se casa e quer ter filhos. Para uma senhora o ter filhos é um sofrimento. Porém, o marido morre logo e ela passa a ter uma vida de viúva solitária, muito mais tranquila e despreocupada do que se tivesse filhos, netos e bisnetos. Num canto da sua alma ela sofre mais do que se tivesse tido todos os padecimentos da maternidade, dos netos e bisnetos. Ela teria a inutilidade da vida bem arranjadinha, com tudo direitinho, mas corroída por dentro porque não sofreu aquilo que deveria ter sofrido.
O sofrimento insuportável do homem que não padeceu aquilo que deveria é podridão, remorso, inutilidade. Isso nos faz compreender que, absolutamente falando, na vida sofre menos quem padece o que precisa sofrer. Do sofrimento não se escapa. Quem escapa do sofrimento legítimo cai nas garras de um maior e ilegítimo, não aparente.
Fonte da verdadeira paz
Duas conclusões devem ser tiradas. Primeira: a vida sem sofrimento não é possível. Segunda: fugir do sofrimento é multiplicá-lo, pois a pessoa fermenta dentro de si energias que precisariam ter sido consumidas e não o foram.
Se queremos formar bem as pessoas para o so frimento, devemos saber descrever, sem efervescência, a sensação de podridão e de remorso, portanto o tédio do sujeito que não padeceu aquilo que deveria ter sofrido.
Contudo, precisamos evitar a seguinte ideia que não tem a sabedoria da Igreja: quanto mais desgraçado, mais feliz. Conforme o espírito da Igreja, posto um princípio que poderia dar numa voragem, entra depois uma verdade segunda que proporciona àquele princípio um equilíbrio fantástico.
O indivíduo chamado a sofrer menos deve ter um verdadeiro entusiasmo por quem foi levado a sofrer mais. Não pode ter horror de sua presença, mas precisa se aproximar dele como de uma vítima sagrada.
Considero a fuga do sofredor, que caracteriza a civilização hollywoodiana, como uma covardia pavorosa. O inocente deve procurar discernir nos fatos os sofrimentos, reconhecer qual é o seu, de acordo e proporcionado à sua vocação, e aceitá-lo. Às vezes ele é enorme.
Quando sofre nessa pista, a pessoa tem na fina ponta da alma a noção de que está restituindo e se ordenando; a sua inocência vai tomando aquele lado por onde se completa e produz uma tranquilidade que é a paz.
A nota característica desse sofrimento é ser ordenado. A pessoa sabe porque está sofrendo e compreende que ele tem uma finalidade, uma razão de ser, e sente um alívio interno de tudo quanto ela padeceria se não sofresse. Quer dizer, ele acaba sendo uma fonte de felicidade, por mais terrível que seja. Donde se compreende aquela frase de Isaías, estupenda: “Eis na paz a minha amargura amaríssima” (Is 38, 17).
“Se isso tinha que acontecer, apesar de ser terrível, carrego o peso, mas sei que está dando em tais bens de espírito. E, na ordem absoluta das coisas, produzindo tais efeitos estou em paz dentro daquilo que sucedeu, e encontro uma espécie de bem-estar de alma no próprio mal-estar.”
Não se deve imaginar a pessoa com sofrimentos externos e com a alma inundada de consolações, porque não se trata disso. É a alma devastada por eles, mas na qual entra uma espécie de bem-estar, uma sensação cor de ametista na qual ela diz: “Nesse meu luto há luz e eu moro dentro dele estavelmente; deve ser assim e ando para a frente.” Isto é resignação.
Passar pelo incompreensível e insuportável
Há um nível fácil de sofrimento no qual o sujeito sofre, mas inundado de consolações interiores, onde quase não há padecimento. Existe um grau mais elevado em que ele sofre na aridez, mas com resignação. E há o sofrimento estapafúrdio, no qual se passa algo que pareceria não dever acontecer ou não do modo como se dá. Esse último é o sofrimento inteiramente restituidor e ordenador. O indivíduo compreende que, para restituir e ordenar a inocência até o fim, é preciso passar pelo incompreensível e insuportável.
Essa é a hora do puro ato de amor. Sem um socorro, visível ou invisível, a pessoa não aguenta. Quando é invisível, o socorro é mais elevado.
Impressiona-me o que sucedeu com a Chiquinha do Rio Negro2, filha do Barão do Rio Negro, dono do lindo Palácio, em Petrópolis, onde os presidentes da República passavam férias. Pelas fotografias dela nota-se que era bonita, de um tipo de beleza escultural. Ela deixou tudo, viajou para Roma e fundou uma Ordem religiosa. Foi atingida por uma doença chamada mal de Basedow que hoje se cura, mas no tempo dela era incurável; isso lhe causava muita angústia.
Houve problemas internos nessa Ordem religiosa. Reunindo um Capítulo, as freiras a expulsaram da Ordem. Em seguida, ela se dirigiu à sua cela e ficou sentada na cama diante da qual havia uma parede pintada de branco. Olhou-a e viu ali a Sagrada Face; ela apanhou um lápis e desenhou-a naquele local da parede.
Quando as coisas se concertaram, ela voltou para a Ordem. Regressou a Petrópolis e ali fundou uma Casa de adoração perpétua do Santíssimo Sacramento. Pelo que me consta, retiraram o desenho da Sagrada Face de sua cela em Roma e o levaram para lá.
No momento em que lhe apareceu a Sagrada Face estava terminado o pior da prova, como acontecera com Nossa Senhora ao encontrar o Menino Jesus no Templo. Esse é um fato que conhecemos. Que outros terá havido?
Resignação passiva e ativa
A prece de Nosso Senhor “Se possível afaste-se de Mim este cálice, mas faça-se a vossa vontade e não a minha” (cf. Lc 22, 42) indica haver limites os quais parecem ter sido excedidos. “Estou moído e não dou mais nada; entretanto, se essa é a vossa vontade, minha inocência quer chegar ao limite de si mesma.” O ósculo do auge da inocência com o auge da cruz se deu. Então aí estão realizadas a restituição e a ordenação perfeitas.
O tema é tão austero e pungente que se fica em dúvida de tratar dele. Mas há uma certa hora tremenda na qual isso nos acontece. Ordenar e conduzir nossa existência em função desse momento à espera do Céu é viver.
Compreende-se, assim, a necessidade de rezar, porque sem o auxílio da graça ninguém aguenta uma coisa dessas.
Se a pessoa vir em Nosso Senhor o Inocente por excelência que sofreu mais do que ela, o Arquétipo que abriu passo à sua frente, encontrará forças para fazer sua via sacra. E, vivendo de resignação em resignação, sua alma chega a essa posição diante do estapafúrdio.
Chamo “resignação” algo que começa desde pequeno em dois movimentos de alma: a resignação passiva e a ativa. A resignação passiva é a da criança dócil a quem se impõe qualquer coisa e ela aceita de bom grado. A resignação ativa, muito mais difícil, é a da criança que entra na luta sem vontade, mas aguenta a batalha e a toca para frente, estavelmente. “Eu resolvi e esta minha deliberação é duríssima, mas habitável, não vou me desarticular. Aqui dentro estou bem.” Em certo momento da vida, chega o sofrimento que a pessoa julga inabitável, porém entra nele e sai do outro lado. Por exemplo, a Madre Francisca do Rio Negro e outros casos desse gênero. Entretanto, é preciso ser assim e sem pena de si. Porque se houver pena de si, começam todas as misérias.
Quando a pessoa recusa os sofrimentos da primeira etapa, os acompanhados de consolações, o processo se deteriora e a Providência pode, por punição, não mandar grandes padecimentos; a pessoa passa a vida inteira se balançando nas angústias de uma superficialidade com gozo, que está cheia de tormentos.
Outra coisa muito bonita é a seguinte: confiamos que um determinado tipo de sofrimento não virá para nós, e, muitas vezes, é esse que nos colhe. A pessoa tem a sensação de que algo de insuportável salta sobre ela, mas pensa que se confiar não virá. Isso exige um prodígio de equilíbrio porque há um certo momento no qual ela prefere jogar-se dentro do sofrimento a confiar que ele não virá. Exemplo, a confiança de São João Evangelista entrando no tanque de óleo fervente.
Podemos imaginar – não há nenhum fundamento na Revelação para afirmar ou negar que se tenha dado como vou dizer – que São João estivesse com pânico daquele caldeirão de azeite como de uma pantera, e que fosse inumano entrar ali. Mesmo achando isso, ele entrou, não se queimou e saiu ileso do outro lado. Considero que nisto houve, na fina ponta de sua alma, algo que é mais do que ter passado pelo azeite. A confiança é um martírio próprio.
(Extraído de conferência de 30/10/1974)
1) Adaptação do latim: O intelecto apertado discorre.
2) Madre Francisca de Jesus (*1877 – †1932), Fundadora da Companhia da Virgem.