sábado, septiembre 21, 2024

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Sofrimentos e incompreensões no ocaso da vida

Dona Lucilia sorveu com serena docilidade os sofrimentos inerentes aos últimos anos de sua peregrinação terrena. Em seu crescente afeto por sua mãe, Dr. Plinio procurou aliviar-lhe tanto quanto possível o peso da cruz, sobretudo quando as vicissitudes da idade a relegaram a um forçoso isolamento.

As situações aflitivas e irremediáveis que por vezes a vida apresenta, à maneira de becos sem saída, Dona Lucilia as entendia na seguinte perspectiva: estamos num exílio e nele a vida é dura. Portanto, deve-se sofrer, alguns mais que os outros.

Ela sabia estar chamada a sofrer mais. Percebi que ela relacionava isso com o Sagrado Coração de Jesus, na ideia de que unida a Ele por uma devoção especial, estar também especialmente unida às dores d’Ele, o que era razoável, vere dignum et iustum est, æquum et salutare1. Da parte dela, convinha aceitar o quinhão de dores e carregá-lo até o fim da vida. Era nessa perspectiva que ela tomava tudo o que lhe acontecia.

Ocaso irremediável, conaturalidade com a dor

Mamãe passou por circunstâncias de que só se podia ter ideia estando dentro delas.

Por exemplo, era comum as pessoas da família dela começarem a perder a audição muito cedo e com isso ficarem segregadas do convívio. Alguns até conseguiam, pelo movimento dos lábios, captar alguma coisa e entrar um pouquinho na conversa, mas nunca com a vitalidade de quem ouve bem.

E aconteceu que, a partir de uma certa idade, talvez uns setenta anos ou mais, eu não me lembro bem, ela começou a perder a audição, não aos poucos, mas de repente, quase perpendicularmente, passando a ter uma dificuldade enorme em tratar com as pessoas. Embora muito comunicativa, para não estragar a conversa, ela mantinha-se quieta enquanto todos conversavam ao seu redor.

Ela ficava sem ter com quem conversar, a não ser comigo, pois eu conviveria com ela em qualquer caso. Entretanto, ela percebia que, apesar de eu ter voz forte, eu fazia um esforço enorme para manter uma conversa e isto ela não queria.

Fotos: Arquivo Revista
Dr. Plinio com sua irmã, em 13/12/1988

Ademais, a vista dela foi enfraquecendo, o que a fez perder a possibilidade de ler. Ela estava com uma catarata muito avançada, foi ao oculista, mas eu mesmo tive receio de que ela fizesse uma cirurgia, devido a algum efeito cardíaco ou algo do gênero. A operação de catarata naquele tempo era muito demorada, não era como hoje, quase um curativo.

Nessa posição, eu via a tristeza encobrindo-a como um manto fúnebre e tendente a fazê-la uma espécie de morta-viva. No entanto, tudo ela tomava com normalidade, com tristeza é verdade, mas na tranquilidade e doçura que lhe eram características, o que representava sua conaturalidade com a dor.

Era um quadro que significou para ela um ocaso medonho e sem remédio, durando talvez uns dois anos até o sol renascer.

Inesperada solução por um filial sacrifício

Sabendo de uns aparelhos de audição norte-americanos muito bons, os quais poderiam solucionar o caso dela, resolvi telefonar para a firma a fim de mandarem um perito.

Lembro-me que estávamos no fim do almoço quando o especialista chegou. Eu o fiz entrar, ele pôs a caixa com o material e fez uma exposição. Explicava alto para ela acompanhar e ali mesmo fez a aplicação, introduzindo um aparelho em cada ouvido. Imediatamente ela começou a escutar muito bem, entrando logo na conversa.

Eu vi aquilo e pensei: “Eu farei qualquer sacrifício, mas comprarei isso para ela.” Perguntei o valor e o homem deu-me um preço louco para aquele tempo, há uns cinquenta ou sessenta anos: 400 contos!

As minhas condições não me permitiam dar-lhe essa quantia. Mas, confiando, fechei o negócio com o funcionário e ali mesmo passei o cheque.

À noite, no jantar, ela estava conversando com toda normalidade.

No início, a atitude dela foi até de desconfiança. Porque quando eu era pequeno ela esteve na Europa e comprou um como quê aparelho, provavelmente de alto custo, o qual era como um leque de senhora, todo de tartaruga; colocando a ponta dele entre os dentes, parece que se ouvia um pouco de vibração a mais. Diziam que a casca da tartaruga possuía como condutores de som, uma propriedade especial ou algo assim.

O fato é que ela trouxe esse objeto para o Brasil. Mas, naquelas circunstâncias, com o problema auditivo avançado, já não lhe adiantava. Ele ficou na gaveta um tempo indefinido e depois nunca o utilizou.

Docilidade nas mínimas coisas

Ela usou o aparelho de audição até o fim da vida. No entanto, a partir de um certo momento, ela começou a tirá-lo para tentar ouvir sem ele, o que era uma contradição. Talvez ela apresentasse uma esperança de, tendo ouvido tão bem com o aparelho, tirando-o era como se ligasse o “motor” e ela passasse a ouvir.

Eu fui irredutível e muito afetuosamente disse a ela:

— Meu bem, não tem propósito. A senhora tem o aparelho, coloque-o, use-o.

Ela dizia:

— Você acha preciso?

— Como não é preciso?

Então, com muita docilidade, com a doçura que ela possuía nas mínimas coisas, ela punha o aparelho e continuava a conversar.

Velando e revelando, na medida do necessário

No que diz respeito à minha luta, como ela a tomava e no que isso consistia um sofrimento para ela?

Mamãe sempre tinha muito cuidado – quer comigo, quer com minha irmã –, em não dizer uma palavra que favorecesse a vaidade e a autocontemplação. De maneira que ela, a meu respeito, não falava na da. Eu percebia que alguma coisa de minha missão ela vislumbrava, mas não sei bem o quê e não sei até que ponto ela a compreendia ou não.

Fotos: Arquivo Revista
Dr. Plinio, visitando a sepultura de Dona Lucilia em maio de 1993

A realidade do tempo dela era bem diversa daquilo que constituiu o palco de toda a minha luta dentro da Igreja. Tudo mudou em torno dela sem que ela mudasse em nada. Entrava também a mão da Providência velando-lhe algo e eu mesmo velei o quanto pude, a fim de não a preocupar.

Alguns personagens, por exemplo, ela os tinha em verdadeira conta de santos. Ela saía pouco de casa, não tinha muito contato com as pessoas. Eu, em muito, lhe abri os olhos, mostrando-lhe as coisas como eram, dando-lhe uma visão mais objetiva da realidade e assim oferecendo mais meios de ela amar a Deus.

Às vezes meu pai sussurrava-me dizendo: “É, só mesmo você dizendo… se fosse outra pessoa – a outra pessoa era ele –, saía um esparrame…”

Mas eu dizia irredutivelmente algumas verdades a ela. Quando a pessoa atinge certa idade e forma uma visão definitiva das coisas, é mais prudente procurar não mexer. Porque, à força de tentar reformar os princípios, de repente uma martelada cai em cima de um brilhante, e é preciso tomar cuidado. Mas não era o caso de mamãe.

Incompreensões que mitigaram sofrimentos

Ela não chegava bem a relacionar toda a luta travada por mim com a repercussão negativa que esta teve sobre minha situação. Para ela, um filho de uma paulista de quatrocentos anos não ficava dependente de cotação de clero e de meios católicos. Era um paulista de quatrocentos anos, está acabado.

O que poderia representar aos olhos dela o declínio de minha influência como líder católico e que papel isso tinha em minha vida? Eu não sei.

Ela era do tempo em que São Paulo quase não tinha bons professores e por causa disso os que escolhiam tal profissão eram bem pagos. E ela, por fraqueza de mãe, imaginava que eu era muito bom professor, e pensava, portanto, que eu ganhava bem.

O pai dela recebia muito na advocacia e ela imaginava que eu ganhava também. Ela via que, aos poucos, eu ia progredindo economicamente e ficava com a ideia de que eu guardava dinheiro como fazia o pai dela e não me perguntava nada. Ela julgava que eu levava uma vida muito mais sossegada do que podia parecer à primeira vista.

Minha irmã era uma pessoa quase de minha idade e, portanto, atualizada, e percebia as coisas muito melhor. E eu vi como as duas tomavam o que me acontecia de modo diferente.

Por ocasião do “Em Defesa”, se deu a ruptura de boa parte do clero comigo. Nestas circunstâncias, eu tive de explicar a Dona Lucilia o que estava se passando. Ela depois não tocou mais no assunto, a não ser numa ocasião, para contar que, enquanto eu estava no escritório trabalhando, minha irmã havia aparecido em casa para vê-la e, em conversa, ela narrou para minha irmã os mesmos fatos que eu lhe tinha contado. Naturalmente ela espumou de indignação: “O Plinio, por idealismo, fica com quem ele pensa ter razão e assim não progride.”

Mamãe contou-me isso tranquila, porque julgava que minha irmã era inteligente e podia dizer-me algo útil. Mas, enfim, ela não percebia o teor da luta, o que em parte lhe mitigava aquilo que poderia ser causa de novos sofrimentos e dores…

(Extraído de conferência de 27/5/1993)

1) Do latim: é justo e necessário, nosso dever e salvação.

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