Entre a graça e a natureza só pode haver harmonia. Foi sob o influxo e as bênçãos da Igreja que o Lumen Christi penetrou nos aspectos temporais da vida e a sociedade temporal desabrochou inteiramente. A graça agiu nos povos, harmonizando-os e erguendo neles o sagrado edifício da Cristandade.
Um bom método para se tratar a respeito do pulchrum e do alcandorado da Cristandade é começar por descrever o que sentimos a respeito dela, para depois distinguirmos o que sentimos quando nos referimos à Igreja.
A Cristandade medieval europeia
A fim de exprimir bem o que sinto quando falo em Cristandade, faço referência à dupla ação que ela causa em meu espírito. A primeira refere-se a uma situação que em concreto existiu; a segunda, a algo de doutrinário implícito, que está meio embebido nas impressões daquela ordem de coisas. É um determinado lumen máximo, em estado de começo de desabrochar, diferente do período que vai desde o império pós-constantiniano até a época dos bárbaros ou do império oficialmente católico.
A Cristandade, a meu ver, nasceu com a conversão de Clóvis, com o estilo românico, alcançando seu esplendor no gótico. Cristandade propriamente em seu estado de saúde é a Idade Média. A pré-Revolução começou, por assim dizer, a matá-la; ela entrou em estado enfermiço com o fim da Idade Média e começa a morrer quando surgem as Revoluções.
Ora, Cristandade, como ela existiu, é a europeia, marcada por um determinado feitio de alma próprio aos povos que a graça levou ao auge de si mesmos. Esses povos tinham diante de si um território, incluindo as ilhas, que eram agrestes. Em função de um estado de espírito deles, embebido de catolicismo, eles foram ora selecionando, agrupando e modelando o que lhes era afim, ora perseguindo implacavelmente o que lhes era contrário, mas definindo-se mais pela oposição ao contrário.
De toda fauna que havia, prevaleceram os animais que correspondem ao gosto deles, por exemplo, a perdiz, o faisão, o rouxinol, para falar das aves.
Eles foram criando uma literatura e uma arte que tomavam essas coisas e as apresentavam como deveriam ser vistas, ou seja, conforme o gosto deles. Quem analisa, por exemplo, uma perdiz, não a pode ver senão pelo prisma do europeu, cujo olhar seletivo afasta os aspectos que não são os da perdiz de legenda estilizada.
Na Idade Média, o animal aparecia limpo, direito, como fundo de quadro da vida humana, mas nunca como um ser quase mais perfeito que o homem. É nos tempos modernos que começa a aparecer o bicho em porcelana de Sèvres ou em bordados; ele já não é uma unilateralidade sadia, mas é uma quimera. Ao lado do bom soldado figura o carneirinho encantador, com fitinha azul, que não é o carneiro da realidade, tal como o medieval o punha. Ao passar os animais para a porcelana de Sèvres já houve uma decadência.
Na heráldica é intencionalmente mostrado o símbolo do bicho e não ele em si.
À medida que o europeu foi relegando a galinha ao galinheiro, por exemplo, ele foi aprendendo a se lavar, tirando sua conaturalidade com o animal; o homem foi se elevando, realizando assim algo de parecido com o Paraíso Terrestre na Terra não paradisíaca; é o resgate do calabouço, o qual vai tomando ares de lugar onde se habita. É algo artificial, porque não é o Paraíso Terrestre, mas é legítimo.
A Igreja: harmonizadora da Europa cristã
Houve na Europa uma progressiva caça a tudo quanto era prosaico. Não foi levada até o fim, mas foi tão obstinada quanto a Reconquista contra os mouros. O fruto disso foi a modelagem de um mundo construído de acordo com a mentalidade de certos povos formados à luz da Igreja, a qual fazia, dentro da raça, o que esta fez no mundo; é uma regra de três magnífica.
A Igreja foi fazendo aparecer o “príncipe herdeiro”, o “menino de ouro” de dentro do romano sibarita decadente, ou dos godos e ostrogodos – elementos constitutivos da Idade Média – e foi enxotando deles os aspectos reprováveis. A ascensão como tipo humano do descendente do germano ou do latino constituiu uma ascensão positiva, na qual todos os aspectos reprováveis foram desaparecendo em vista de uma modelagem operada pela graça, sobrenaturalmente.
Entre a graça e a natureza não há contradição, só pode haver uma harmonia. As leis que existem numa ordem são, mutatis mutandi, as mesmas leis para outra ordem, transpostas para realidades diferentes: uma natural, a outra sobrenatural. A graça age na natureza como uma mão dentro da luva. De si ela opera esse seletivo, mas opera devagar.
Por exemplo, um Santo que ensinasse a prática da pureza; olhando para o olhar dele, seus discípulos passariam a se lavar melhor sem que ele recomendasse, por afinidade e conaturalidade.
Sabe-se que Dom Orione sempre se confessava antes de estar com São Pio X. Eu não teria a menor surpresa se ele tomasse um banho completo também. Não quero dizer que necessariamente tenha sido assim, mas seria um desdobrar-se lógico da mesma consequência. A mesma razão pela qual ele queria ter a alma pura o levaria a banhar-se para estar puro.
Na Cristandade, era a graça que modelava o homem, o qual, animado por ela, modelava a natureza e fazia o seletivo. A Igreja ia fazendo uma miscigenação entre germanos, latinos, descendentes de mouros, húngaros – porque a Hungria pertenceu à Cristandade de fato, e de estatura inteira. Tal síntese constituiu a figura global do europeu em sua realidade psicológica e cultural mais importante, e até temperamental, porque a Igreja ia criando um temperamento mais importante do que as particularidades locais.
É como quem olha para um vitral e vê como toda a policromia, de certo modo, vale mais do que cada pedaço de vidro. Assim era a Europa cristã na sua totalidade. Os defeitos das várias raças não tinham cidadania, porque elas se uniam pelas qualidades, formando o europeu total.
Do ideal sacral ao heroísmo angélico
Dentro desse quadro, um aspecto importante é o do heroísmo.
No meu modo de entender, o heroísmo propriamente dito nasceu na Idade Média. Sem dúvida existiram heroísmos salientíssimos em povos anteriores. Mas, na Idade Média, pela ação da Igreja, o Lumen Christi penetrou nos aspectos temporais da vida muito mais do que no tempo do Império Romano. Na sociedade medieval foi modelada uma forma de heroísmo que não tinha tido ocasião de se realizar antes. Toda a epopeia, a beleza do heroísmo só foram inteiramente explicitadas com a ideia católica do herói a serviço de um ideal sacral.
O heroísmo a serviço de Nosso Senhor Jesus Cristo é diferente do ideal de servir o Império Romano ou de outro qualquer. O heroísmo de Alexandre Magno, por exemplo, nada tinha em comum com o de Clóvis. Ambos mataram e se expuseram à morte, mas o objetivo era diferente.
O verdadeiro heroísmo não consiste só em atacar, em matar, em morrer; ele supera tudo isso, porque quer impregnar a ação de atacar, matar e morrer de um sentido transcendente, o qual é enormemente superior ao homem e que dá às espadas e às lanças os seus verdadeiros brilhos.
Quando penso num cavaleiro medieval e o comparo a um legionário romano, este último me parece pesadão, sem alma… Quiçá possa estar enfeitado com um armamento bonito, mas nele, a principal nota é o bater dos pés; uma legião romana andando não é senão o bater dos pés. Se imagino os cruzados avançando… já não é o galopar de cavalos a nota distinta, mas é o pulsar dos corações, das mentalidades, das almas.
Isto foi a Europa medieval que representou. Por mais admiradores que sejamos da coragem, se nos oferecessem: “Aqui está a vida de Aníbal, leiam…”, folhearíamos um pouco com a ponta do dedo e a deixaríamos. Ora, se nos apresentassem a história de um cavaleiro medieval, ainda que fosse a de Ricardo Coração de Leão1, nós nos interessaríamos, porque a Igreja colocou de lado os aspectos censuráveis dele, omitindo-os na canção de gesta, para que não tivessem cidadania no próprio homem, de maneira a estarem contidos nos porões da alma quando ele atacava. O que aparece é um heroísmo angélico que nos entusiasma: é a sensação de sermos angelizados nele e termos a coragem e o aggredi2 do Anjo.
Contrários harmônicos no vitral da Cristandade
Então, o que é a Cristandade? É quando o esplendor da ordem humana chega ao auge da distinção e da repulsa a tudo quanto lhe é contrário, e da apuração a tudo o que lhe é legítimo, feito sob o bafejo da graça. Há uma espécie de fosforescência da graça, um difuso sobrenatural que é a sociedade humana levada ao primor de si mesma, porque toca em sua arquetipia, que é a Santa Igreja, a sociedade espiritual. É só então que a sociedade temporal adquire toda a sua beleza.
Como é essa beleza? Há algo de indescritível, mas aponto para a presença dos contrários harmônicos, como, por exemplo, a doçura e o aggredi. Em nenhuma época se levou a doçura tão longe e nunca se levou o aggredi tão a seu auge.
Ninguém levou tão longe quanto o medieval a intelectualização unida ao contato com a realidade viva, natural, como ela é, positiva. Podemos imaginar um São Tomás de Aquino parando numa hospedaria de “aldeia de marzipã”, pedindo para lhe trazerem um pão para comer. Entra um camponês analfabeto que lhe serve um pãozão; ele acha pitoresco o servidor e este, por sua vez, é tão tendente para as coisas de São Tomás, que fica bouche béant3 olhando para o Santo. São Tomás lhe dirige uma palavra, e há um ósculo de dois extremos harmônicos, eufóricos em se encontrarem. Isto havia muito na Idade Média.
Outro contrário harmônico era arte e raciocínio, razão e arte encontrando-se de modo magnífico; ou ainda, a autoridade e liberdade. Nunca se foi tão livre para o bem, nunca se foi tão perseguido para o mal. Ora, a liberdade é só para o bem, e a perseguição do mal é uma forma de liberdade.
Para tocar só nesses aspectos, os contrários harmônicos emitiam uma luz posta dentro do vitral da mistura da raça branca europeia, latino-germânica, que se entrecruzava assim de modo concreto e não nas nuvens. Todas as modalidades de tipos físicos europeus, no fundo muito próximos entre si, têm um símbolo de Deus. Desde o olhar azul de um nórdico até o olhar preto e cheio de mistério de um espanhol, de um português, de um italiano do sul. Pode-se analisar os olhos de Santa Teresa de Ávila de uma pintura e compreende-se perfeitamente bem, realçando isto magnificamente.
O pulchrum da Igreja transluzindo na Cristandade
A Igreja foi feita para os homens. Ora, estes realizam a plenitude de seu pulchrum em conjuntos, ou seja, em sociedades e nações; assim, a Igreja ou confere o seu pulchrum aos costumes e às culturas das sociedades e nações, ou ela vive como um fantasma, privado do seu próprio corpo.
Então, qual a relação entre o pulchrum da Cristandade e o da Igreja? É a relação da virtude existente na alma enquanto transluzindo no corpo. A Igreja, fazendo penetrar a graça no campo temporal, produz nele uma forma de beleza, um esplendor de graça, que a simples beleza eclesiástica de si não manifesta.
É uma mesma escola de beleza. Se tomamos, por exemplo, de um lado a procissão do Império Austro-Húngaro, Corpus Christi, Tosão de Ouro; de outro lado, um desfile militar embebido do espírito católico, eu tenho duas manifestações do mesmo espírito.
Se compararmos todas as cristandades que possam no mundo existir, veremos as mil refulgências da natureza afins com mil refulgências da graça, e assim veremos mais nítidos aspectos da Igreja que antes não apareciam.
Porque o temporal, animado pelo espírito da Igreja, não exprime apenas o espírito dela; mas, enquanto símbolo de Deus, manifesta o pulchrum próprio à natureza, mais próximo à matéria e mais longe do espírito; não a matéria considerada inimiga do espírito, mas enquanto irmã menor dele.
(Extraído de conferência de 14/4/1978)
1) Rei da Inglaterra (*1157 – †1199).
2) Do latim: ataque.
3) Do francês: de boca aberta.