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III – Uma devoção para o Reino de Maria

Assim como a obra-prima da fidelidade de Maria foi conceber na mente a fisionomia do Messias antes da Encarnação, algo análogo se passará com a Igreja em relação à devoção a Nossa Senhora. O Sagrado Coração de Jesus e o Imaculado Coração de Maria são o ponto central em torno do qual gira a História.

Ainda em menino, como eu era acostumado a raciocinar, vinha-me a ideia de que a essas formas transatas de piedade faltava uma certa seiva que tiveram outrora, mas que a hora delas na História tinha passado. Soara um gongo a partir do qual ou era a Revolução Francesa ou a irrupção de Hollywood no mundo inteiro.

Graças que a devoção ao Sagrado Coração de Jesus trazia consigo

Entretanto, remontando através dos restos da devoção ao Sagrado Coração de Jesus que eu conheci mais límpidos, mais direitos, ao frequentar a Igreja do Coração de Jesus, no meu tempo de menino, quando ela difundia, irradiava algo dessa graça; e tomando, sobretudo, essa devoção como era praticada por minha mãe e como ela a levou até o fim de sua vida, eu sentia, no palpitar de sua alma, uma espécie de foco contínuo do que havia de melhor do pulsar da devoção ao Sagrado Coração de Jesus que eu conheci, em outras ocasiões, quando pulsava bem.

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Plinio por volta do ano de 1922

Quantas vezes eu, olhando para ela, dizia de mim para comigo: “Se mamãe não tivesse recebido o olhar d’Ele, ela não teria esse olhar para mim.” A devoção que eu tenho ao Sagrado Coração de Jesus é vista através dos olhos dela.

E, considerando aquela imagem do Coração de Jesus que está no quarto dela, mas, a bem dizer, vista de dentro dos olhos de mamãe e, menos do que isso, em alguma medida, a imagem do Coração de Jesus que está na sala de visitas de meu apartamento, tomando tudo isso em sucessão, aparece um estilo de graça a qual eu tenho a impressão que havia, em grau intenso e excelente, no Paray-le-Monial do tempo de Santa Margarida Maria, e que durante muito tempo foi assim. Esse estilo de graça deve ter estado na raiz do movimento contrarrevolucionário do século XIX, mas foi sendo gradualmente minguado e deteriorado, antes de per der a vitalidade, uma espécie de constrição pré-mortal.

Nessa constrição, durante algum tempo as graças que passaram ainda eram de nível individual, quando o horizonte era muito maior. E no nível individual, excelsas. Quando a graça bate, é uma forma de bondade, de comiseração que invade e o Sagrado Coração de Jesus toma conta.

Mas eu sou levado a supor, com esses dados, que o verdadeiro horizonte dessa devoção seja ainda muito mais amplo e que esse horizonte individual que conhecemos seja uma parte apenas daquele que essa devoção trazia consigo. O que explica mais as graças extraordinárias ligadas a essa devoção.

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Imagem do Sagrado Coração de Jesus pertencente a Dona Lucilia

Verdadeiro ponto em torno do qual tudo gira

Quais seriam a envergadura e o horizonte total da devoção ao Sagrado Coração de Jesus?

Quem se abrisse a essa devoção – estou falando agora em escala individual –, introduziria na alma uma espécie de respiração de um ar sobrenatural impregnado de muita misericórdia, de muita clemência. Mas uma misericórdia e uma clemência impregnadas, por sua vez, de uma grandeza, de uma elevação de vistas, que eu não chamo de senso metafísico só porque o senso metafísico é muito pouco para designar isso. É um senso do sobrenatural.

Essa realidade superior, a alma encontra quando é tocada pela graça a propósito de Nosso Senhor Jesus Cristo, de Nossa Senhora e de toda a ordem celeste, por onde ela contempla almas de uma categoria, de uma beleza, de uma maravilha tais, que ela fica compreendendo que este é o verdadeiro ponto em torno do qual tudo gira. E que, tirado desse ponto, tudo gira errado, e que a vida é compreender e desejar isto, ou seja, mais especificamente, o Sagrado Coração de Jesus e o Imaculado Coração de Maria.

As descrições que fiz do Sagrado Coração de Jesus dão inteira e linearmente isso. Ele é superior a qualquer consideração, por um lado. Por outro lado, na sua superioridade, Ele habita em nós mais do que nós mesmos, está no fundo de cada um de nós. Ao mesmo tempo em que está no alto de um Céu inatingível por nós, Ele habita no fundo de nós e tem a possibilidade de tomar contato conosco de maneira a vibrarem cordas de nossas almas que não sabíamos existirem. Assim é Ele.

Reconciliação augusta entre a inteligência e a vontade

Nesse estado de alma se estabelece um equilíbrio pelo qual se dá uma espécie de reconciliação augusta entre a inteligência e a vontade, por onde a inteligência só apresenta à vontade coisas que a vontade reta possa querer, e à vontade só apetecem coisas que a inteligência possa justificar. A vontade fica consumida nisso; essa graça do Coração de Jesus entra na vontade humana quase à maneira de uma espada dentro da bainha.

Não é uma superação do pecado original, mas uma contenção muito grande das desordens dele em virtude de um auxílio sobrenatural. Não que o efeito no homem seja menor, caso a natureza humana seja entregue a si mesma, mas é um auxílio que, ab extrinseco, produz esse efeito no homem que se abra a essa graça e uma sensibilidade amiga do ordenado, do lógico, do verdadeiro, que apetece uma forma de beleza augusta, tranquila, serena, forte, ordenada, correspondendo a um padrão de homem contrário ao do Humanismo. Portanto, está presente ali a Contra-Revolução A, é inegável.

Alguns ultramontanos1 do século XIX foram humanistas de tendências e, às vezes, de cultura. Uma espécie de Voltaire2 com água benta, fazendo sarcasmos, graças, por vezes de muito bom quilate, mas que não tinham aquele ar augusto, sereno, nobre da devoção ao Sagrado Coração de Jesus. Ora, o modelo para o homem é Nosso Senhor Jesus Cristo, não o Humanismo.

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Interior do Santuário do Sagrado Coração de Jesus em São Paulo

Mas desejo ressaltar a prodigiosa proposta da Contra-Revolução A feita por essa devoção, devido a uma ação ordenadora no fundo da alma humana, na junção entre o espírito e a alma de que fala São Paulo (cf. Hb 4, 12), a partir da qual se regenerasse o homem.

Um horizonte muito maior ligado ao segredo de Fátima

Isso corresponderia à envergadura das graças que sentimos pulsar na devoção ao Sagrado Coração de Jesus e, portanto, vê-se como é provável que a amplitude do horizonte fosse muito maior do que aquilo que se conhecia nos ambientes católicos de então.

Tenho uma certa suspeita de que, lidas as revelações a Santa Margarida Alacoque – supostamente íntegras –, com o que se passou desde essas aparições de Paray-le-Monial até os dias de hoje, se perceberia um horizonte dessa devoção de algum modo relacionado com a crise da Igreja. Portanto, com o tema tratado no Segredo de Fátima. Não quero afirmar que a devoção trouxesse um prenúncio de que Nossa Senhora apareceria em Fátima, mas a temática presumível do segredo se encontraria lá, embora na atmosfera própria dessa devoção.

O efeito do olhar de Nosso Senhor Jesus Cristo

Para minha sensibilidade, o ambiente da Igreja do Sagrado Coração de Jesus traz esse estado de espírito mencionado acima. Sem dúvida, existem na Europa milhares de igrejas de um valor artístico muito maior do que a do Sagrado Coração de Jesus dos Campos Elíseos. Contudo, há uma coisa qualquer nessa igreja que, estando lá, tenho a impressão de que os olhos d’Ele estão pousando em mim naquele momento. Eu me delicio em ver-me visto e envolvido pela serenidade afetiva, doce, cheia de sabedoria, mas ao mesmo tempo pelo império d’Ele e pelo terror da rejeição d’Ele. O pior que pode haver é ser rejeitado por Ele.

Ali, todos os mistérios da devoção ao Sagrado Coração de Jesus e ao Imaculado Coração de Maria vêm à tona. Quanto nós gostaríamos de nos ver fisicamente olhados por Ele! Eu tenho a impressão de que “asperges me hyssopo et mundabor, lavabis me et super nivem dealbabor(Sl 50,9). O olhar d’Ele me lavaria, eu ficaria mais alvo do que a neve.

Diante do olhar d’Ele eu diria: “Anima Christi, santifica me!” Eu estaria tendo o que eu desejo, o ideal de minha vida! Aquele olhar meio interrogativo, ligeiramente reprobatório, enormemente amoroso, envolvente e, para dizer mais, encomiástico, no seguinte sentido: não há barreiras, venha!

Vem-me à memória aquela canção de Francisco Guerrero3, que termina com esta frase: “si, pues, morís por mí, miradme al menos.” A poesia se refere a uma alma pecadora que está aos pés da Cruz, onde Nosso Senhor agoniza. E essa alma tem em mente os pecados que cometeu e pede perdão. Mas parece sentir que seus pedidos não são atendidos, porque ela insiste: “Perdoai, perdoai, perdoai!” Então ela tem es ta apóstrofe final: “Mas, afinal, se Vós morreis por mim na Cruz, pelo menos, antes de morrer, olhai-me.”

Luis C.R. Abreu
Sagrado Coração de Jesus – Convento da Luz, São Paulo

Mas aqui vem a ideia de que os dois olhares se encontrando, ela está resgatada, pois esse olhar contém o perdão que ela deseja. Assim, o pecador, conseguindo cruzar o olhar com Nosso Senhor, sente que Ele lhe diz: “Meu filho, como és diferente de Mim! Entretanto, que imensidade de afinidades há entre Mim e ti! Vem, Eu te perdoo!”

Profundidade de um olhar, de uma fisionomia

Certa ocasião, entrando numa livraria católica, vi um livro de Antero de Figueiredo4 – escritor português com quem me correspondi, porque ele me escreveu uma carta muito bonita, felicitando-me pela publicação do Em Defesa da Ação Católica – intitulado: O último olhar de Jesus. Eu ainda não conhecia o autor, mas comprei o livro, embora sempre estivesse curto de dinheiro.

Pensei o seguinte: “Isso é tema! O último olhar de Jesus que, com certeza não foi, como imaginou Francisco Guerrero, para um pecador, mas para Nossa Senhora. Compreender, nessa última troca de olhares, com que profundidade Se amaram e como, naquele derradeiro momento, se coroava a vida de contínua e crescente afinidade! Um homem que escreve sobre isso tem esse estado de espírito, esse mirante dentro da alma.”

A meu ver, se nós recebermos essa graça dizendo a Ele, por meio d’Ela: “Miradme al menos! Fazei com que, em certo momento, meu olhar encontre o vosso e eu, por assim dizer, ressuscite”, então se compreende como será o Reino de Maria, com os homens dotados desse espírito e vendo tudo, até uma galinha, como Nosso Senhor via.

É a partir disso que se estabelece a boa amizade segundo Deus: amar o próximo como a si mesmo por amor de Deus; e nasce um relacionamento humano que eu creio que, com tanta plenitude, talvez não tenha sido frequente na própria Idade Média.

Suponho que se a Idade Média tivesse continuado, o Sagrado Coração de Jesus teria revelado essa devoção de qualquer forma. A grande maravilha d’Ele foi perdoar as rupturas da Idade Média e, apesar disso, chamar para essa devoção.

Obra-prima da fidelidade de Nossa Senhora

Nota-se essa maravilha neste fenômeno: as imagens antigas de Nosso Senhor, do tempo das catacumbas, não representam de modo adequado a fisionomia d’Ele. Aos poucos, a Igreja foi elaborando essa fisionomia e quando aparece o Santo Sudário, vê-se que corresponde à elaboração da Igreja. Durante séculos ela teve uma espécie de intuição, de tal maneira que quando se vê o Santo Sudário, se exclama: “É esse!” O mesmo que foi intuído e elaborado pelo sensus fidelium ao longo dos tempos.

Se eu adoto em relação a Nossa Senhora o mesmo processo de análise da piedade como ela é, inclusive em mim, eu noto um fato curioso que me levanta também uma hipótese certamente muito bonita. Não sei até que ponto os fatos a confirmarão. É a seguinte:

Depois de elaborada pela Igreja a face do Sagrado Coração de Jesus, a Igreja faz o mesmo que Nossa Senhora, que compôs a fisionomia do Messias antes de se dar n’Ela a Encarnação do Verbo. Quando Ela acabou de construir a fisionomia, o Anjo baixou e A convidou para ser a Mãe do Messias.

Ao tomar conhecimento desse comentário, pensei: “Estava à altura d’Ela, sim, imaginá-Lo.” Para mim era normal que a Mãe d’Ele O tivesse imaginado antes de tê-Lo concebido e que só Ela pudesse ter feito isso. E é compreensível que, logo depois, tenha vindo o Anjo e coroado essa obra-prima de fidelidade à graça existente no espírito d’Ela. Quem imaginou é digna de gerar. Sempre que penso nisso eu me entusiasmo.

A figura completa de Nossa Senhora a ser modelada no Reino de Maria

Há uma coisa muito curiosa nas imagens de Nossa Senhora que são dois modos diferentes de olhá-las. Um é o juízo que se faz da imagem, correspondente àquele ente feminino representado ali, considerado com a psicologia que teria se não fosse a Mãe de Deus. Outro é considerado com a psicologia que teria se fosse a Mãe de Deus. E sempre, na segunda hipótese, aparece por detrás algo que é o mesmo em todas as imagens, por mais que elas sejam diferentes entre si, mas que não tem muita relação com o rosto da imagem.

Seria como se a Igreja também estivesse compondo o retrato d’Ela através dos séculos, mas da seguinte maneira: por enquanto, Ela faz sentir um imponderável em todas as imagens d’Ela. Nisso está o começo da modelagem, mas, de fato, o rosto ainda não está composto.

Tomem, por exemplo, a imagem de Nossa Senhora do Carmo que está na Sede do Reino de Maria. Todos sabem como venero essa imagem. Entretanto, nós vemos nela uma como que “trans-imagem”. Há uma graça que recebemos de conceber Nossa Senhora como Ela é, distinta da figura física de uma senhora portuguesa representada naquela imagem.

Divulgação
Cristo ensina a seus discípulos – Catacumba de Santa Domitila, Roma

Comparem Nossa Senhora de Montserrat com Nossa Senhora de Genazzano: a diferença é enorme! E assim poderíamos tomar imagens do rito oriental, aqueles ícones etc.

As duas imagens que, a meu ver, levam mais longe a manifestação desse imponderável de Nossa Senhora são Nossa Senhora do Bom Sucesso – que leva bem longe – e Nossa Senhora das Graças.

Nossa Senhora de Genazzano leva um certo olhar de Nossa Senhora mais longe, talvez, do que essas duas, mas não o geral da personalidade d’Ela, que me parece entrever muito especialmente nessas outras duas. Porém, compreendo que, conforme a devoção individual, um ou outro veja de modo diferente. Mas todas realmente caminham, de algum modo, para uma semelhança com o Santo Sudário. O mistério, o pulchrum está nisso.

Eu me pergunto se não há uma elaboração pela Igreja da figura de Nossa Senhora a estar concluída para o Reino de Maria, de maneira a ser a imagem mestra do Reino de Maria, como, que eu saiba, nenhuma existe, e que teria uma semelhança impressionante, se bem que não seja cópia e, portanto, com variantes quase de espantar, em relação a Nosso Senhor Jesus Cristo.

A fórmula não seria tomar a Sagrada Face e imaginá-la em ponto feminino, mas conceber Nossa Senhora abaixo d’Ele e sumamente parecida com Ele, de uma semelhança física que seria apenas uma imagem da semelhança espiritual.

Assim nós teríamos uma ideia melhor do ambiente próprio a essas duas devoções tão distintas, mas tão afins, a ponto de São João Eudes referir-se ao Coração de Jesus e Maria. A nós foi dada a tarefa de fazer uma síntese e encontrar o Sagrado Coração de Jesus no Coração Imaculado de Maria.

A amplitude do Sagrado Coração de Jesus visto por meio de Maria

Com efeito, enquanto a devoção ao Sagrado Coração de Jesus foi objeto de um itinerário longo e muitas vezes doloroso, na devoção a Nossa Senhora como São Luís Grignion a deixou, com a amplitude característica dele, e depois nas sucessivas revelações d’Ela, nós vemos um outro horizonte, que não é o que está presente na devoção ao Sagrado Coração de Jesus. É um horizonte especial, no qual entra a doçura e a misericórdia, mas também a combatividade d’Ela.

A meu ver, é preciso fazer uma soma, tomando Nossa Senhora da Salve Regina, do Memorare – eu formularia assim: Nossa Senhora de São Bernardo – e somá-la-ia com Nossa Senhora Profética de São Luís Grignion, precursora da Chouannerie, da luta contra a Revolução Francesa e de tudo mais.

Nessa perspectiva, Nossa Senhora deveria ser vista como Medianeira. Ela não é o fundo do horizonte e, por mais que seja parecida com Nosso Senhor, é Ela quem convida para, através d’Ela, ver a Ele. Ela pede, para ser devoto a Ela, que se olhe um determinado horizonte, enquanto Nosso Senhor aparecendo diz: “Eu sou o horizonte.” Ele não encaminha para nenhum horizonte, enquanto Ela encaminha. Ele é o horizonte e, portanto, o ponto terminal do culto. O hori zonte é o infinito onde nenhum olhar alcança, pois transcende tudo e vai até onde não podemos imaginar. Mas Ela é o “telescópio” para ajudar a ver mais fundo, para levar mais além, tomando-nos de dentro de nossa proporção e colocando-nos à altura de olhá-Lo por meio desse telescópio que é Ela mesma.

O requinte dentro do requinte

A devoção ao Sagrado Coração de Jesus é uma graça que, como todas as graças, vem por meio d’Ela. É certo que Ele não teria aparecido se Ela não tivesse pedido e é certo que essa graça tem que trazer um aumento da devoção a Ela, senão a mediação universal desaparece.

Gabriel K.
Sagrado Coração de Jesus (coleção particular)

Então podia-se dizer que nas imagens do Coração Imaculado de Maria o ponto alto tem uma chama e o Coração é coroado de rosas e tem uma espada, um gládio. Aquela chama é a devoção a Ele que arde n’Ela e por onde Ela chama para Ele, atrai, queima n’Ele, e quem se une ao Coração d’Ela, une-se, de modo certo, de modo fácil, de modo rápido, como diz São Luís Maria Grignion, ao Sagrado Coração de Jesus.

A devoção a Ela é uma espécie de requinte, porque tem por objeto toda espécie de pecadores – o que se deixa queimar, evidentemente, também; mas distingue-se da devoção ao Sagrado Coração de Jesus neste ponto: que o miserável que não tenha se deixado queimar pelo Sagrado Coração de Jesus, tocando, não o grosso bordão dos sinos de Nosso Senhor Jesus Cristo, mas o sino leve e alegre de Nossa Senhora, ainda tem n’Ela um recurso de uma espécie de ultraextremo de misericórdia, requinte dentro do requinte e auge dentro do auge, por onde, recorrendo a Ela, até esse pecado tem perdão. E, o que Ele não perdoaria se Ela não existisse, Ele acaba, a rogos d’Ela, perdoando mais uma vez.

De maneira que há n’Ela inflexões de ternura, de misericórdia, de bondade para esse tipo de miseráveis que não é que exista n’Ela e não n’Ele, mas é algo que, existindo n’Ele, através d’Ela se explicita melhor. Nosso Senhor quis que assim fosse, como se não coubesse na dignidade suprema d’Ele, enquanto Juiz, dar esse perdão; mas Ele é um Juiz que, por debaixo do pano, manda o recado a um advogado omnipotente: “Este está condenado, mas peça, porque ainda haverá meio de movê-lo, apesar dessa recusa.”

É uma espécie de – eu quase diria de joelhos – pia fraus do Sagrado Coração de Jesus. Assim é o Imaculado Coração de Maria para as causas ultradesesperadas.

Como um raio do Coração de Jesus

Maria Santíssima põe junto a essa seriedade infinita de Nosso Senhor Jesus Cristo uma nota qualquer de louçania, que fala em perdão, em esperança, em alegria. Está n’Ele, tem fundamento n’Ele tudo isso, mas Ele é grande demais para um olhar poder abarcar. Então olha-se n’Ela.

Porque, ao cabo de algum tempo, aquela imensidade nos faz sentir tão pequenos, tão pequenos, tão pequenos, petit vérmisseaux et miserable pecheur, que se tem vontade de dizer: “Senhor, não me esmague de tanto me amar!” Mas entra Ela e dá um repouso, uma distensão; está feito tudo na perfeição.

Encontramos aí, de cheio, com uma força de expressão particular, o Imaculado Coração de Maria de São Bernardo: Ó clemente, ó pia, ó doce Virgem Maria! Aquela a quem nunca se ouviu dizer que alguém recorresse e não fosse atendido, que é nossa vida, doçura, esperança nossa.

Eu me lembro de que quando pequeno julgava que aquele “salve” queria dizer “salvai-me” e achava nisso uma força maravilhosa, porque começa mesmo um brado: “Salvai-me, porque eu…” Eu sabia que salve era uma expressão latina, mas não tinha relacionado; me ficara na cabeça “salve-me, Rainha, Mãe de Misericórdia”; mas o brado tem esse calor.

Assim, vejo n’Ela um requinte daquilo que, por ser tão alto, poderia parecer não ser requintável, que é a devoção ao Sagrado Coração de Jesus.

Para me exprimir por uma comparação, Nosso Senhor seria mais como a Catedral de Notre-Dame e Nossa Senhora seria mais como a Sainte-Chapelle. A devoção ao Sagrado Coração de Jesus toda em granito e vitrais, mas a Sainte-Chapelle é toda feita de vitral. O granito quase que desaparece e é quase só vitral.

Flávio Lourenço
Imaculado Coração de Maria. Ao fundo, interior da Sainte-Chapelle, Paris

Essa é a atmosfera característica de Nossa Senhora. Usando uma linguagem imprópria, seria como um determinado raio do Coração de Jesus, por assim dizer, destacado d’Ele e feito outra pessoa distinta d’Ele para poder discutir com Ele e arrancar d’Ele o que Ele quer que se arranque. Em certo sentido, vista nesta perspectiva, Ela é a “forte contra Deus” por excelência.

Quem recusa até a graça d’Ela, contra este se faz sentir a força d’Ela. E a advogada extrema torna-Se a vingadora extrema, pela lógica do papel de advogada. A última bondade levada ao último requinte e à última ternura, uma vez recusada, Aquela que sofreu a recusa faz da última bondade recusada a pedra com que Ela condena. Parece uma antítese, mas é sumamente harmonioso, lógico. É a Mãe de Nosso Senhor que Ele manda para tentar uma última mediação; à sua Mãe, Ele confere o poder de exterminar.

Uma graça extrema recusada

Imaginem um reino no qual uma parte do território se levante contra o rei. O rei vai visitar esse feudo com bondade, misericórdia, dá graças, procura atender; tudo em vão, eles recusam e o rei volta deixando a população revoltada.

Ele então tenta mandar a mãe dele, que não é parte na briga, que ficou alheia e que é nascida naquele feudo, com um convite: “Ide, vós que sois conterrânea deles e vede se lhes falais por algumas cordas que talvez ainda se possam tocar em suas almas.”

De repente, ele recebe a mensagem de que a mãe dele não só foi recusada também, mas até agredida. Então envia tropas à mãe e diz: “Vingai vós a ofensa que recebestes!”

É tão lógico, que não seria fácil conceber outra coisa!

Então se compreende que n’Ela haja certas refulgências onde a bondade do Coração de Jesus toma aspectos maternos, mas que também reflitam a indignação d’Ele. Tanto mais que essa rainha da metáfora não avança dizendo: “Vós me recusastes e eu vos puno!”, mas sim: “Vós recusastes meu filho, até quando ele teve o extremo de me mandar a mim mesma. Por meu filho ofendido, indignada pelo ódio mostrado a ele quando vós me recusastes até a mim, conterrânea vossa, eu agora vos extermino!”

Então, nós temos Nossa Senhora, mensageira e medianeira, enquanto profetisa dos castigos anunciados em Fátima, porque é a graça extrema recusada.5

1) Partidários do ultramontanismo. Doutrina nascida na França, na primeira metade do século XIX, que defendia as prerrogativas e o poder do Papa em matéria de Fé e costumes, contra o galicanismo e fenômenos análogos em outros países. O nome significa “além das montanhas”, referindo-se aos Alpes, além dos quais está a Itália e, portanto, a Sede de Roma.

2) François-Marie Arouet (*1694 – †1778), escritor e filósofo francês.

3) Francisco Guerrero de Burgos (*1528 – †1599), foi um dos mais célebres compositores espanhóis do período renascentista.

4) *1866 – †1953.

5) Cf. Conferências de 6/6/1978, 17/10/1970, 20/9/1980, 5/10/1980, 6/11/1985, 6/2/1986, 17/3/1987, 15/9/1989, 19/2/1991, 21/1/1993, 11/12/1993.

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