D. Afonso Henriques, formado pela graça antes de receber a coroa, vê Nosso Senhor Jesus Cristo que lhe promete a misericórdia sobre Portugal durante muitas gerações e lhe prediz grandes searas em terras muito remotas.
Tenho aqui uma matéria muito bonita. A ficha é tirada da Crônica de D. Afonso Henriques1.
Nascimento de Portugal
Introdução. Foi na Batalha de Ourique que nasceu o reino português. Enfrentando os infiéis maometanos, os portugueses achavam-se em grande inferioridade numérica. Muitos cronistas idôneos referem-se a cem ismaelitas para cada lusitano. Nessa situação crítica, Nosso Senhor veio em auxílio do povo católico e ordenou que D. Afonso Henriques ficasse rei daquele povo.
Portugal nasceu de uma batalha e, na coroação, no término dela, o Reino de Portugal foi fundado.
O português do texto é meio arcaico.
Bastantíssima era a tradição de que, ou melhor, do aparecimento de Cristo, Nosso Salvador, feita a D. Afonso Henriques, confirmando-se com os escritos de nossos autores e de muitos estrangeiros gravíssimos, para se ter certo o favor que Nosso Senhor quis fazer à nação portuguesa.
Gravíssimos, quer dizer, pessoas dignas de todo crédito, muito graves, muito sérias.
Mas, para maior confirmação, ordenou o mesmo senhor – D. Afonso Henriques, primeiro Rei de Portugal –, parece que com particular providência, nos ficasse outra memória ilustríssima dessa verdade. E é uma escritura autêntica do ano de 1152, em que o mesmo Rei D. Afonso, jura sobre os Santos Evangelhos, como viu, com seus próprios olhos, o Salvador do mundo, na forma que temos contado.
Ou seja, o próprio rei mandou fazer uma escritura, declarando o milagre ocorrido com ele. O documen to se conserva e é a fonte da narração que vem a seguir.
Achou-se no ano de 1506, no Cartório do Real Mosteiro de Alcobaça, este documento.
Em 1506, esse documento já era velho e foi encontrado nos papéis velhos do Mosteiro de Alcobaça.
E foi instrumento…
Quem o redigiu.
…o D. Frei Bernardo de Brito, Cronista-mor de Portugal, a quem o reino deve, com a glória adquirida por seus escritos, a glória e a graça de tão ditoso achado. É um pergaminho de letra antiga, já gastada, com selo de El-Rei D. Afonso, e outros quatro, de cera vermelha, pendente com fio de seda da mesma cor, confirmado por pessoas de autoridade em que se funda o maior crédito humano que pode haver em escritura.
Deve ser um lindo documento, um pergaminho gasto pelo tempo, com o lacre do rei e com quatro outros lacres vermelhos, com fios de seda pendentes dos lacres. Se nós tivéssemos isso, mandávamos colocar numa moldura para glorificar bem um documento tão insigne.
Cena bela e de gravidade histórica
O D. Frei Lourenço do Espírito Santo, Abade então daquela Casa Geral da Ordem de Cister…
São os monges cistercienses, fundados por São Roberto de Molesme.
…neste Reino, pessoa de grandes letras e muita prudência, julgou ser vontade de Deus divulgar-se por todos essa memória. E, assim, indo a Lisboa, levou o pergaminho e mostrou-o aos senhores do governo. E depois, fazendo jornada à Corte de Madrid, o apresentou ao católico rei D. Felipe II. E o viram também muitos grandes de sua Corte, e de todos foi venerado e estimado como merecia um documento de tanto preço, do qual o teor é o seguinte:…
Não sei se conseguem tomar o sabor dessa redação tão antiga e dos personagens que passam pelo documento, quase por um vídeo. É o gravíssimo, o Frei Lourenço, Abade de Cister2; depois, os senhores do governo com quem ele fala. Afinal, ele vai a pé, provavelmente, atravessando a Serra da Estrela até Madrid. Naquele tempo, o Rei de Portugal era Felipe II, Rei de Espanha, que tinha herdado – noventa e nove por cento por direito e um por cento à força – o Reino de Portugal.
De maneira que, era preciso apresentar-lhe esse documento. Então, o D. Frei Lourenço chega ao Escorial, onde se encontra o rei Felipe II, vestido de preto, com uma gola branca, sentado na cadeira. Ele faz ao rei uma grande reverência e Felipe II o olha com fisionomia solene. Frei Lourenço mostra o pergaminho ao rei, que o venera, porque conta um milagre de seu antecessor, rei de Portugal. É uma cena bonita, com gravidade histórica, tão diferente de uma reportagem de jornal de nossos dias…
O juramento do primeiro rei de Portugal
“Eu, Afonso, Rei de Portugal…”
Que nobreza! Não precisa sobrenome, está tudo dito.
“…filho do conde Henrique e neto do grande rei D. Afonso…”
Era rei de uma das Espanhas.
“…diante de vós, Bispo de Braga, e Bispo de Coimbra, e Teotónio e todos os mais vassalos de meu reino…”
Quem seria esse Teotónio3, mencionado por ele assim? Deveria ser um guerreiro, vestido de armadura, com uma espada em forma de cruz, presente ao ato.
“…juro em esta cruz de metal e neste Livro dos Santos Evangelhos em que ponho minhas mãos, que eu, miserável pecador, vi com esses olhos indignos a Nosso Senhor Jesus Cristo, estendido na Cruz, no modo seguinte.”
E o rei começa a narrar, tendo jurado sobre os Santos Evangelhos. Note-se a solenidade, a fé dele! O rei compreende a gravidade do juramento que está fazendo. E, depois, a humildade com que ele diz: “eu, miserável pecador, vi com esses olhos indignos a Nosso Senhor Jesus Cristo.” Quanta reverência para com Nosso Senhor Jesus Cristo, que os olhos dele viram! Os olhos ficaram, por assim dizer, sagrados, porque viram a Cristo.
Ao cabo da meditação, uma prece confiante
Então, começa a primeira parte da narração:
“Eu estava com meu exército nas terras de Alentejo, nos campos de Ourique…”
O texto tem até uma cadência. Parece que tudo isso toma um aspecto fabuloso, antigo, feérico: “nas terras de Alentejo, nos campos de Ourique…” Uma coisa extraordinária!
“…para dar batalha a Ismael…”
Ismael era um dos reis.
“…e outros quatro reis mouros, que tinham consigo infinitos, milhares de homens.
“E minha gente, temerosa de sua multidão, estava atribulada e triste sobremaneira. E entanto que diziam alguns, publicamente, ser temeridade acometer tal jornada. E eu enfadado do que ouvia, comecei a cuidar comigo o que faria.”
Quase um verso de Camões! O rei, perturbado, pois os guerreiros dele estavam com medo diante da mourama imensa que estava lá para atacar.
Passamos, agora, à seguinte parte. Ele faz uma meditação, a fim de cuidar o que ia fazer. Como era um rei católico, ele faz uma meditação. E, ao cabo desta, uma oração confiante.
“E como estivesse na minha tenda um livro em que estava escrito o Testamento Velho e o de Jesus Cristo, abri-o e li nele a vitória de Gedeão e disse entre mim mesmo: ‘Mui bem sabeis Vós, Senhor Jesus Cristo, que por amor vosso tomei sobre mim essa guerra contra vossos adversários. Em vossa mão está dar a mim e aos meus fortaleza para vencer esses blasfemadores do vosso Nome.’”
Vejam a consciência reta de D. Afonso: ele estava de tal maneira combatendo pela Causa Católica, que nessa hora de perigo, disse: “Meu Deus, Vós sabeis que é por Vós que eu combato. Agora, dai-me força para eu levar adiante a minha guerra.” Ele fez uma meditação e terminou com uma prece confiante.
Uma mensagem celeste
Outro ponto: ele fala, Deus ouve.
“Ditas essas palavras, adormeci sobre o livro e comecei a sonhar que via um homem velho vir para onde eu estava, e que me dizia: ‘Afonso, tem confiança, porque vencerás e destruirás esses reis infiéis, e desfarás sua potência e o Senhor se te mostrará.’”
Vem um emissário:
“Estando eu nessa visão, chegou João Fernandes de Souza, meu camareiro, dizendo-me: ‘Acordai, Senhor meu, porque está aqui um homem velho, que vos quer falar.’ ‘Entre, lhe respondi, se é católico.’”
Uma beleza! Imaginem a cena: uma tenda medieval, um exército pequeno; mais adiante se veem todos os exércitos dos cinco reis mouros; todo mundo acabrunhado diante da dificuldade; o rei dormindo, extenuado, junto a uma mesa onde estão o Novo e o Antigo Testamento. Ele sonha. Do lado de fora, com forte sotaque português, o camareiro o chama, e ele responde: “Entre, se é católico.” Que lindo! Se não é católico, fora!
Há, então, um sonho, um emissário, uma mensagem.
“E tanto que entrou, conheci ser aquele que no sonho vira, o qual me disse: ‘Senhor, tende bom coração, vencereis e não sereis vencido.’”
Naquele tempo “tende bom coração” não queria dizer “tende pena”, mas “tende coração firme.” Isso é ter bom coração.
“‘Sois amado do Senhor, porque, sem dúvida, pôs sobre vós e sobre vossa geração, depois de vossos dias, os olhos de sua misericórdia até a décima sexta descendência, na qual se diminuirá a sucessão, mas nela assim diminuída, Ele tornará a pôr os olhos e verá.’”
Provavelmente é uma mensagem celeste.
É uma promessa da duração de Portugal. Deus tinha amado aquele rei e o povo que ia nascer durante dezesseis gerações. Depois, Portugal entraria em declínio, mas Deus o olharia e novamente o reergueria. A mensagem era para a geração do rei, mas também para todo o povo português.
Uma prova de confiança
“‘Ele me manda dizer-vos que quando na seguinte noite ouvirdes a campainha da minha ermida, na qual vivo há sessenta e seis anos, guardado no meio dos infiéis com favor do mui Alto, saiais fora do Real sem nenhum criado, porque vos quer mostrar sua grande piedade.’”
É uma coisa linda! Esse homem era um eremita que vivia há sessenta e seis anos sozinho no meio dos infiéis, guardado maravilhosa e naturalmente para esse momento histórico. Porque vale a pena nascer para desempenhar essa missão e depois morrer.
O eremita diz: “Quando ouvirdes uma campainha, saí do Real.” Real é a zona do acampamento onde o rei está. E sem nenhuma companhia, ide para o mato, porque Deus quer vos aparecer lá. Mas veja-se a prova de confiança exigida: sem nenhuma companhia. Não pode ir com soldados nem nada. Deve confiar em Deus.
“Obedeci e, prostrado em terra com muita reverência, venerei o embaixador e quem o mandava.”
D. Afonso, nobre de alta categoria – daí a pouco seria rei – se prostrou em terra para venerar aquele embaixador. E, na pessoa do embaixador, a Nosso Senhor Jesus Cristo que o mandava.
“Sobre ti fundarei um novo reino”
“E, como posto em oração, aguardava o som, na segunda vela da noite, ouvia a campainha, e armado com espada e rodela, sai fora dos reais.”
O rei passou a noite ainda impressionado com a presença desse venerando eremita. Em certo momento, no silêncio da noite, uma campainha. O rei sai do acampamento, sem ninguém o ver. Bom português, cauteloso, não deixou de levar a espada para o que desse e viesse. E mais a rodela que deve ser, provavelmente, um escudo circular.
“E subitamente vi, à parte direita, contra o nascente, um raio resplandecente, indo-se pouco a pouco clarificando; cada hora se fazia maior. E pondo de propósito os olhos nessa parte, vi, de repente, no próprio raio, o sinal da cruz mais resplandecente que o Sol, e um grupo grande de mancebos resplandecentes, os quais, creio, seriam os Santos Anjos.
“Vendo, pois, essa visão, pondo à parte o escudo e a espada, me lancei de bruços e, desfeito em lágrimas, comecei a rogar pela consolação de seus vassalos, e disse sem nenhum temor: ‘A que fim me apareceis, Senhor? Quereis, porventura, acrescentar fé a quem já tem tanta fé?’”
Era um homem muito seguro de sua virtude para dizer isso.
“‘Melhor é, por certo, que Vos vejam os inimigos, e creiam em Vós que eu, que desde a fonte do Batismo Vos conheci por Deus verdadeiro, Filho da Virgem e do Padre Eterno, e assim Vos reconheço agora.’”
É uma oração estupenda! Não há o que comentar.
“A cruz era de maravilhosa grandeza, levantada da terra quase dez côvados. O Senhor, com um tom de voz suave, que minhas orelhas indignas ouviram, disse:…”
É a promessa da vitória e da fundação do Reino de Portugal.
“‘Não te apareci deste modo para acrescentar tua fé, mas para fortalecer teu coração neste conflito…’”
Quer dizer, fé tu tens, mas o coração não está tão firme…
“‘…e fundar os princípios de teu reinado sobre pedra firme.’”
Parece aquele diálogo de Nosso Senhor com São Pedro: “O que dizem do Filho do Homem?” Tendo São Pedro reconhecido Nosso Senhor como o Filho de Deus, recebeu a resposta: “Pois tu és pedra e sobre esta pedra edificarei a minha Igreja” (cf. Mt 16, 13-18). Aqui também, o rei se apresentou, adorou a Deus e O reconheceu. Deus disse-lhe: “Tem coragem, porque sobre ti fundarei um novo reino.”
“‘Confia, Afonso, porque não só vencerás esta batalha, mas todas as outras em que pelejares contra os inimigos de minha Cruz. Acharás tua gente alegre e esforçada para a peleja; e te pedirá que entres na batalha com o título de rei. Não ponhas dúvidas, mas tudo quanto pedirem, lhes concede facilmente.’”
O povo e os soldados iam pedir a D. Afonso que entrasse na batalha com o título de rei, para eles terem mais alento. Por isso Deus lhe diz: “Aceita tudo quanto pedirem. E o mais que pedirem, concede facilmente.” Estava fundado o reino de um modo muito bonito, porque Deus profetizou e os guerreiros, por uma moção divina, aclamaram. Ambas as coisas que se conjugam. É uma verdadeira beleza!
O primeiro lampejo da existência do Brasil
E além da promessa da vitória e de fundação, vislumbra-se algo que talvez seja uma referência ao Brasil:
“‘Eu sou fundador e destruidor dos reinos e impérios, e quero em ti e teus descendentes, fundar para Mim um império por cujo meio seja meu nome publicado entre as nações mais estranhas.’”
Vê-se que aqui está a evangelização do Brasil. Nem se cogitava a existência dele naquele tempo. O Brasil, evidentemente, a África portuguesa e a Índia. Mas creio não ser imodesto achar que das várias partes que receberam a pregação, a mais insigne foi o Brasil.
De maneira que havia um primeiro lampejo da existência do Brasil nessa promessa que foi feita na fundação do Reino de Portugal. Não é verdade que, vendo o Brasil florescer de uma promessa assim, nos dá mais alegria e esperança por sermos brasileiros?
Um verdadeiro rei
Nosso Senhor, depois de ter previsto a fundação e a missão do reino, dá um símbolo.
“‘E para que teus descendentes reconheçam quem lhes dás o reino, comporás o escudo de tuas armas do preço com que Eu remi o gênero humano, e daquele por que fui comprado pelos judeus, e ser-Me-á reino santificado, puro na fé e amado na minha piedade.’”
São as quinas de Portugal, que representam as cinco chagas de Nosso Senhor Jesus Cristo.
Agora vem a recusa de uma vítima extraordinária.
“Eu tanto que ouvi essas coisas, prostrado em terra, O adorei, dizendo: ‘Por que méritos, Senhor, me mostrais tão grande misericórdia? Ponde, pois, vossos benignos olhos nos sucessos que me prometeis e guardai salva a gente portuguesa. E se acontecer que tenhais contra ela algum castigo aparelhado…’”
Linda expressão, “aparelhar um castigo.”
“‘…executai-o sobre mim e livrai este povo que amo como meu filho único.’”
Este homem era digno de ser rei! Ele tinha sido formado pela graça, antes de lhe ser dada a coroa. Um homem que diz “Se o povo merece o castigo, meu Deus, que caia sobre mim, porque eu o amo como amaria meu filho único”, este é um rei!
O efeito volta para sua causa
“Consentindo nisso, o Senhor me disse: ‘Não se apartará deles, nem de ti, nunca, minha misericórdia, porque por sua via tenho aparelhadas grandes searas e eles, escolhidos por meus segadores, em terras muito remotas.’”
A grande misericórdia era, portanto, de vir, um dia, fazer seara no Brasil. Nós somos filhos de Portugal, é verdade, mas somos filhos dessa misericórdia que teve Portugal por canal e por instrumento.
Creio que é o primeiro documento da História do Brasil. Numa aula de História do Brasil que se desse com alma, não se deveria começar pela nau que partiu de Portugal, mas deveria se contar a missão que se realizaria nas terras de Alentejo, nos campos de Ourique, numa determinada noite, dada por Deus Nosso Senhor a El-Rei D. Afonso Henriques… Assim deveria começar uma verdadeira história do Brasil.
“Ditas essas palavras, desapareceu e eu, cheio de confiança e suavidade, me tornei para o Real. E para que isso passasse na verdade, juro eu, D. Afonso, pelos Santos Evangelhos de Jesus Cristo, tocados por essas mãos. E, portanto, mando a meus descendentes que para sempre sucederem, que em honra da Cruz e das cinco Chagas de Jesus Cristo, tragam em seu escudo os cinco escudos partidos em cruz; em cada um deles os trinta dinheirinhos, e por timbre, a serpente de Moisés, por ser figura de Jesus Cristo. E seja este o troféu de nossa geração. E se alguém intentar o contrário, seja maldito do Senhor e atormentado no Inferno, como Judas o traidor.
“Foi feita a presente carta em Coimbra, aos 29 de outubro, era de 1152. Eu, El-Rei D. Afonso.”
Que coisa bonita. Este foi o desígnio da Providência.
(Extraído de conferência de 28/1/1974)
1) Crônica de El-Rei D. Afonso Henriques, por Duarte Galvão.
2) Do Real Mosteiro de Santa Maria de Alcobaça.
3) São Teotónio (*1082 – †1163). Religioso. Foi um dos principais aliados de D. Afonso Henriques na proclamação do Reino de Portugal e, posteriormente, seu conselheiro. Primeiro Santo português que recebeu a honra dos altares.