Os verdadeiros monumentos deste mundo são as almas dos homens. Santo Ampélio foi, muito presumivelmente, um modelo no discernir, contemplar e admirar as almas.
Temos para comentar uma ficha sobre a biografia de Santo Ampélio, o Ferreiro1.
Santo eremita e ferreiro
A vida de Santo Ampélio, apelidado “o Ferreiro”, é toda ela lendária, dando-o como originário do Egito, ferreiro de profissão.
Almejando vida mais perfeita, sempre em busca de Deus, foi procurar os solitários que viviam na Tebaida e a eles prestou serviços os mais variados, inclusive os da própria profissão.
Como Ampélio se aperfeiçoasse rapidamente, caminhando com segurança na vereda que leva ao Céu, o demônio, agastado, resolveu agir para perdê-lo. Transmudou-se numa jovem impudica e foi haver-se com o Santo Confessor, que o venceu facilmente. Quando a mulher, aproximando-se, procurava seduzi-lo, o ferreiro, com um ferro em brasa nas mãos, avançou para ela para queimá-la e a espantou para sempre, com a ajuda de Deus.
Já velho, deixou a Tebaida e foi para as imediações de Gênova, onde levou vida de santificação e contemplação, ali falecendo no dia 5 de outubro, cerca do ano 410.
Santo Ampélio é o padroeiro dos ferreiros.
Ferreiro ambulante na Tebaida
Afirmar que a vida dele é toda lendária é um modo de dizer. Se ele foi canonizado pela Igreja, tem-se a certeza de que ele existiu e, de fato, foi santo. Muitas vezes, aquelas primeiras canonizações não eram feitas regularmente. Havia uma inspiração do Espírito Santo, a qual fazia com que a voz do povo considerasse alguém como santo. E então, era de fato proclamado santo. Mas, aí estava engajada a autoridade da Igreja também, embora sem o processo regular de canonização que se faz hoje em dia.
Os dados biográficos deste Santo são muito pobres e, portanto, pobres também têm que ser, por força, os comentários que a respeito dele eu possa fazer. Entretanto, podemos imaginar mais ou menos o que seria a vida de Santo Ampélio como ferreiro ambulante, na Tebaida do século V.
Nesse século precisamente, a instituição eremítica estava ganhando o seu verdadeiro feitio. Porque durante os séculos anteriores, III e IV, sobretudo, nos Impérios Romanos do Ocidente e do Oriente se perseguiam muito os católicos. A vida deles era em extremo difícil e muitos deles fugiam para o deserto a fim de não serem presos ou torturados. Ali passavam, às vezes, uma vida longa, até noventa anos ou mais, na tranquilidade absoluta do deserto, rezando a Deus e pedindo pela Igreja Católica de tal maneira perseguida.
Grandes provações para almas muito amadas
Nesta Terra, Deus não permite que a vida de ninguém seja sem provações grandes. E, sobretudo, são provações até heroicas, daquelas pessoas que Deus ama mais e destina a prestarem um serviço mais especial à Igreja.
Não devemos imaginar que o único martírio que esses eremitas, indo para a Tebaida, sofriam eram o do isolamento e do silêncio, o que constituía de fato um martírio. Imaginemos no homem que tem o instinto de sociabilidade e, portanto, a tendência de se comunicar, o que pode representar de sofrimento passar sem ver absolutamente ninguém durante quarenta, cinquenta anos, a não ser um ou outro raro visitante que ia, de vez em quando, e que ninguém sabia bem quem era. Porque, se às vezes podia ser uma alma necessitada que ouvia falar daquele eremita e, então, empreendia uma viagem arriscada para lhe pedir orações, muitas vezes era algum bandido ou criminoso político que estava fugindo da polícia ou das autoridades, algum lunático, algum maníaco, às vezes até um possesso do demônio que estava correndo por aquelas zonas.
É preciso acrescentar algo que é curioso e real. Os lugares muito ermos, isolados, se não são muito abençoados, às vezes são especialmente infestados pelo demônio. Por exemplo, certos baixios ou grutas muito profundas, certos lugares horríveis aonde nunca vai ninguém, pântanos, locais malcheirosos, são lugares onde, com facilidade, os demônios procuram como permanência habitual e de onde eles saem para fazer infestações. E esses eremitas se situavam onde conseguiam. Às vezes eram lugares lindos, às vezes feios ou até comuns. Eles estavam ali, sofrendo todos os inconvenientes do isolamento, inclusive certa presença preternatural.
O homem, feito para a luta, sofre provações interiores
Mas isso não é nada. O homem é de tal maneira feito para a reflexão, para a luta e para a dor, que quando ele foge disso e se põe no deserto, dentro de sua alma nascem os problemas, nasce a luta e nasce a dor. E acaba, então, padecendo as provações interiores que são, muitas vezes, mais terríveis que as provações exteriores.
O que é uma provação interior? Um eremita vai para o êremo; nos primeiros tempos, sente uma alegria, uma consolação, as graças de Deus inundam sua alma; aos poucos, aquilo vai se afastando e perde toda a unção primeira. Ele começa a se sentir isolado, triste, deprimido, abatido, com problemas, com questões e com mal-estar. De repente, começa a tentação a zumbir dentro de sua alma. E com a tentação, às vezes começam também as infestações diabólicas.
A pior de todas é a tentação contra a Fé. Ele é convidado pelo demônio a pôr em dúvida a própria Religião Católica. Os demônios aparecem aos eremitas e fingem festins de Roma, de Alexandria, de outros lugares em que eles estão, têm alucinações. Tudo acontece.
No século V, o número de eremitas era muito grande, mas já não era determinado mais pelo medo das perseguições – que acabaram com Constantino e com a invasão de Roma pelos bárbaros –, mas pelo temor de se perderem nas grandes cidades e pela vontade de oferecerem a Deus o holocausto da sua solidão. E houve tantos e tantos desses homens nessa época, que se chegou a dizer que o deserto estava formigando de eremitas.
Em todas as épocas da Civilização Cristã houve eremitas em grande quantidade. A nossa época é a infeliz época sem verdadeiros eremitas.
Um bairro outrora povoado de eremitas
Eu costumo ir com frequência, à tarde, na Igreja da Luz2, fazendo minhas orações no percurso. E nunca deixo de me lembrar, quando passo por lá, que, nas histórias da cidade de São Paulo, conta-se que o bairro da Luz era povoado por eremitas, os quais moravam ali, nas voltas e contornos do rio Tietê, particularmente poético pela névoa que existia naquele tempo, em certas épocas do ano, sobretudo no Tietê, naquela zona mais úmida. Havia também uma quantidade enorme de garças que voavam de um lado para outro e que encantavam Frei Galvão quando ele passava por lá.
Esses eremitas tão numerosos eram servidos, às vezes, por ambulantes, que iam visitá-los e levavam coisas, que faziam caridade para eles.
Grande “guia de turismo” dos esplendores espirituais do deserto
Santo Ampélio era ferreiro. Podemos imaginar que vida curiosa e que forma única de turismo, o turismo das almas. Ferreiro de profissão, vai gratuitamente de ponto em ponto para visitar tal eremita; tem um que fez tal milagre, mais adiante tem outro que se destaca por tal outra virtude; mais adiante tem uma eremita célebre, porque é mãe de um imperador. E assim vai conhecendo alma por alma, vai revisitando os itinerários conhecidos e prestando serviços de bater ferro ou fazer alguma peça de que eles precisam para facilitar sua vida material. É provável que ele fizesse tudo aquilo sem falar, quiçá recebendo apenas do eremita algum conselho – se o pedisse – para sua própria vida espiritual.
Dessa forma acabou sendo um verdadeiro Guide Bleu3– o grande guia de turismo da Europa – dos esplendores espirituais do deserto: “Se quer conhecer alguém que tem o dom da profecia, vire por ali e desça lá, naquela gruta há um velho; se quer conhecer alguém que é heroico nas penitências, suba até o alto daquele morro, lá tem um jovem que se flagela de um modo admirável. Mais adiante tem um que se levanta a tal medida assim do solo, quando chega ao meio-dia, para saudar Nossa Senhora! E, mais adiante, quando chegar a noite, vai ver dormir na paz, enquanto uivam as feras lá fora, o grande eremita tal, cujo sono é edificante e traz paz a todo mundo que o contempla.”
Com certeza Santo Ampélio, com seus dons de ferreiro, foi um visitador, um “turista” da santidade, pelos desertos. E ele era movido pelo encanto, pelo entusiasmo que lhe causava o contato com almas tão extraordinárias.
Conhecer, discernir e admirar as almas
Se essa hipótese – perfeitamente plausível – é verdadeira, então nós sabemos qual é a virtude que podemos imitar de um santo tão desconhecido no geral de sua biografia. Peçamos que ele nos comunique uma dupla graça: termos o desejo de conhecer as almas, termos discernimento para perceber como elas são, acompanhados da graça de admirar em cada alma aquilo que é reto, segundo Deus, aquilo que ela seria se fosse inteiramente fiel e o grau de fidelidade que dentro dela existe e que a faz um reflexo especial de Deus.
Saber também discernir nas almas o que é ruim e, na consideração do que é ruim, a contrario sensu, ficar amando o que é bom.
Eu lhes garanto que uma pessoa que passasse sua vida apenas estudando e conhecendo as almas levaria uma vida muito mais entretida do que se fizesse qualquer outra coisa; com certeza seria mais interessante do que tomar um avião e ir para Delhi, de lá para Xangai, dali para não sei que ponto da América do Sul, do Norte ou da Suécia, entrando em aeroportos, hospedando-se em hotéis, vendo monumentos e ficando com a alma vazia. Os verdadeiros monumentos deste mundo são as almas dos homens. E não há nada mais belo, mais interessante, mais atraente, do que conhecermos as almas.
Gosto em conhecer as almas
Eu confesso que o pouquinho que a experiência do contato com as almas me tem dado, faz com que, nas poucas viagens que fiz, o que me interessa mais é conhecê-las, inclusive as almas dos homens sem alma. Até essas são interessantes de conhecer.
Lembro-me que uma vez viajei do Rio para Paris ao lado de um holandês, que vinha da Indonésia e ia descer em Londres; ele “não” tinha alma. Eu o olhei de soslaio e pensei: “Mas que horrível! Isso é uma longilínea posta de carne, ele não tem alma, não tem nada! O que é esse homem? Deve ser interessante conversar com ele para conhecer a alma de um homem sem alma.”
Fiz, então, um comentário com ele a respeito de qualquer coisa, sobre a rapidez do avião. E conversamos em alguns trechos da viagem. Eu fiquei vendo o vazio de um homem completamente sem alma que se sentia bem no corpo – porque era evidente que ele tinha uma invejável saúde e fazia disso sua alegria – mas ficava sempre comprimindo uma alma que persistia em voltar e dizer-lhe que não estava satisfeita. De maneira que havia nele, ao lado de muita saúde, horas de tanta tristeza, de tanta amargura e de tanto vazio, que disso fiz para mim um tema de meditação e – eu lhes garanto – entretenimento.
Quando eu converso com uma pessoa, com duas, às vezes com duzentas, eu me entretenho ao olhar para as almas e muitas vezes me alegro. Sempre aprendo alguma coisa e sempre saio com melhor capacidade de conhecer minha alma, conhecendo as almas dos outros.
Aqui está um convite para começarem a ser amatores animarum, da categoria de gente que ama as almas, que gosta de conhecê-las.
A mais alta relação entre duas almas perfeitíssimas
Haveria algo na vida de Nosso Senhor que seria um exemplo adequado para isso? Toda a vida d’Ele é isso. Tudo quanto Ele fazia era feito em função de um conhecimento perfeito das almas com que tratava. E tudo ajustado às condições e às necessidades delas.
Ele estava continuamente com a mente posta no Padre Eterno e nas almas com que tratava, olhando-as e considerando-as logo no primeiro olhar, como, por exemplo com aquele moço rico. Diz o Evangelho que Nosso Senhor o olhou e o amou (Mc 10, 21). Quer dizer, viu a alma dele e o amou por causa de sua fidelidade. E assim por diante, quantas outras ocasiões em que Nosso Senhor, quando tratava com os fariseus, era a alma que Ele via e conhecia até o fundo. E por isso Ele, com sua sabedoria, sua santidade infinita, remexia até o fundo os acontecimentos dos povos com que Ele tomava contato.
Podemos imaginar qual era a alegria de Nosso Senhor quando olhava para Nossa Senhora e via a alma perfeitíssima d’Ela. É uma alegria de que nós não podemos ter ideia. Entretanto, podemos ter uma ideia indireta, ao ver a imagem de Nossa Senhora de Fátima Peregrina na Sede de seu Reino; quando reflete algo da alma d’Ela, de tal maneira nos encanta, de tal maneira atrai multidões, e nós, como ficamos encantados vendo aquela expressão de alma!
Se víssemos Nossa Senhora pessoalmente, qual seria nossa impressão, nossa sensação? É simplesmente incalculável!
Isso, mas num grau levado a que auge, Nosso Senhor tinha quando olhava para Nossa Senhora. Ela também tinha quando olhava para Ele. E, na troca de olhares, quando se encontravam e quando Ele dizia: “Minha Mãe!”, e Ela dizia: “Meu Filho!”, o que entrava ali de comércio de almas! É a relação mais nobre, mais alta, mais perfeita que houve em toda a História. Foi essencialmente uma relação de almas.
Amar as almas desinteressadamente
Então, procuremos ser dos que gostam de pensar nas almas; procuremos conhecê-las e interessarmo-nos por elas.
Existe algum obstáculo para isso? Sim! É quando estamos tratando com os outros e não pensamos nas almas deles, mas em nós mesmos. Aí ficamos incapazes de conhecê-los.
Quando uma pessoa está estudando os outros, não para ver como são, mas para ver que efeito está produzindo neles; se a estão considerando prestigiosa, fina, inteligente, enfim, a cavalgata das vaidades, e então fala preocupada só em saber qual é essa repercussão, dando a essa preocupação, ainda que seja uma pequena importância, a pessoa desce um véu, começa a olhar para si e não olha para o outro, não conhece ninguém.
É preciso amar as almas desinteressadamente, querer conhecê-las como reflexo de Deus. Acabar com o “eu, eu, eu”, com a ideia fixa de si mesmo. Contemplar esse maravilhoso mundo das almas, do qual Santo Ampélio, o Ferreiro foi, muito presumivelmente, um modelo. É o ensinamento, o tema da meditação de hoje.
(Extraído de conferência de 14/5/1976)
1) ROHRBACHER, René François. Vida dos Santos. São Paulo: Editora das Américas, 1959. Vol. VIII. p. 358-359.
2) Adjacente ao Mosteiro da Imaculada Conceição da Luz, conhecido simplesmente como Mosteiro da Luz, de monjas concepcionistas, localizado na Av. Tiradentes, centro de São Paulo.
3) Série de guias de viagens publicados em francês, desde 1918.