viernes, noviembre 8, 2024

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O tecido social perfeito

A família autenticamente católica, como ela existiu largamente na Idade Média, e a rede de relações individuais vivificadas pela observância dos Dez Mandamentos geram o tecido social perfeito.

O equilíbrio da autoridade do Estado consiste na continuidade do edifício dos corpos intermediários.

O rei e os corpos intermediários

Há um determinado momento em que o rei já não é o corpo intermediário, pois a intermediação acabou. Então se diria que o rei se torna extrínseco.

Contudo, ainda que o monarca pareça extrínseco, ele não o é por causa dos corpos intermediários mais altos, que são já meio umectados pela neblina dourada da realeza. De maneira que os maiores senhores feudais ou os maiores corpos intermediários, quando chegam à plenitude de si mesmos, tocam na realeza e ficam meio dourados de realeza. E é por meio deles que o rei se mantém em contato com o restante do corpo social.

Eles, por serem muito próximos ao monarca, participam de sua função legislativa e judiciária, à maneira de conselheiros ou de outros modos, mas a função do rei não se exerce extrinsecamente.

Os missi dominici1 de Carlos Magno eram um pouco extrínsecos, mas se compreende, porque a instituição feudal não estava toda constituída.

O caráter extrínseco do rei precisa ser excepcional. Não que deva ser exercido bissextamente, mas numas linhas de ação muito demarcadas e não muito numerosas.

Esse procedimento não é absolutista.

O vínculo familiar, numa família normal, é criado por uma série de tendências instintivas que são orgânicas por excelência…

Reprodução
“Prece antes da colheita” (por Félix de Vigne) – Museu de Belas Artes, Ghent, Bélgica

Para se compreender bem este assunto, é preciso levar em consideração que um certo absolutismo é inerente à realeza porque, como ela tem o dever de corrigir os corpos intermediários, precisa ter o poder de, em determinados momentos, agir ex auctoritate propria2. Porém, sempre com a intenção, não de quebrar o corpo intermediário, mas de corrigi-lo, de colocá-lo na posição exata, para poder depois fazê-lo funcionar.

Seria mais ou menos como um médico ao tratar de uma perna quebrada: encana a perna do paciente que, por algum tempo, fica sob esta “tirania”. Entretanto, não é para a vida inteira, mas com vistas a que, depois de consertada, ele possa andar por si. Esta é a tarefa do rei.

O vínculo familiar

Por outro lado, a cellula mater do tecido social orgânico é a família. Ela tem, propriamente, a plenitude da organicidade, e é por causa da irradiação do calor, do alento dela que certa organicidade se comunica a todo o resto da sociedade. Aliás, essa organicidade da família e o conjunto do trato de umas pessoas com as outras, de acordo com os Mandamentos da Lei de Deus, ou seja, a caridade recíproca, são os elementos que constituem a organicidade da sociedade.

Ao me referir à família, evidentemente não suponho a família deteriorada como ela é hoje, mas a família ideal, a qual não é uma quimera, pois existiu largamente na Idade Média; com os defeitos inerentes ao ser humano, mas em linhas gerais ela existiu. De maneira que não é uma utopia, mas também não foi um Céu na Terra. É preciso ver as coisas com o equilíbrio que elas devem ter.

O vínculo familiar, numa família normal, é criado por uma série de tendências instintivas que são orgânicas por excelência, pois derivam até do próprio organismo humano, pelo qual existem afinidades entre pais, filhos e irmãos, que derivam de terem temperamento, modos de ser análogos, etc., que decorrem em boa parte de circunstâncias mais ou menos biológicas, étnicas, hereditárias. Mas que formam as semelhanças muito preciosas por duas razões: primeiro, porque são intimíssimas; em segundo lugar, porque diferenciam muito aquela unidade familiar das outras. De maneira que cada família é um pequeno mundo distinto de outra família. Exagerando um pouco, diríamos que cada família tem uma cultura e uma civilização própria.

Quando criança, visitando as casas de famílias que não eram aparentadas com a minha, eu tinha a impressão de fazer uma viagem a outro mundo, porque notava em alguns pontos dessemelhanças, minúsculas para o olhar do homem adulto, mas que são grandes para o olhar de uma criança. Ela não compreende, mas relaciona instintivamente com outras singularidades que nota naquela família. E a criança percebe implicitamente que tais características provêm de uma raiz psicológica comum, que é de um jeito na família dela, e de outro jeito em cada uma das demais famílias. Por onde, em todo o casario de uma cidade, cada residência corresponde a uma família e tem um todo próprio, de maneira tal que até na culinária isso se faz notar.

Um menino vai almoçar na casa de outra família…

Consideremos duas casas absolutamente de mesmo nível social, de famílias que se estimam e têm relações entre si. Um menino pertencente à família “a” vai almoçar pela primeira vez na residência da família “b”. Pode até acontecer — não é necessariamente assim — que lhe digam:

Fae (CC 3.0)

— Vejo que você está com apetite, mas se reserve um pouco porque o melhor ainda não veio: um peru preparado pela dona da casa pessoalmente, e que é uma maravilha!

O menino pensa logo num peru idêntico ao que come em casa. Quando chega o prato, é completamente diferente. Ao provar para ver se é uma maravilha, ele não acha que seja, porque não é igual ao peru da casa dele.

Donde decorre uma espécie de rejeição daquela família: “Que gente esquisita, olhe como eles entendem que um peru é bem feito! Que coisa estranha! Peru não é assim, prepara-se de outro jeito…”

Vamos supor que, brincando com terra, a criança suje a mão e tenha de lavá-la. Junto ao lavatório está um sabonete inteiramente diferente do utilizado na casa dela. Pode até ser um sabonete muito superior, por exemplo, o inglês marca “Pears”, em forma de uma bola preta. Entretanto, a criança está habituada a um sabonete brasileiro cor-de-rosa ou azul clarinho, e pensa: “Puxa, vou lavar a mão com esta bola preta! Que gente esquisita! O peru, o sabonete deles são diferentes… Durante o almoço, esteve lá um primo deles tido como engraçado, que contou piadas das quais eu não achei graça. Deus me livre de voltar para a casa dessa família!”

…e depois conta suas impressões apenas a seus irmãos

A criança volta para sua casa, e sua mãe pergunta:

— Como foi em casa de Fulano?

O menino olha para a mãe e percebe instintivamente que ela não vai dar a menor importância aos traços diferenciais que ele notou; então, não lhe conta suas impressões, e diz de um modo muito vago:

— Foi muito bem…

Como quem dissesse: “Não me pergunte por que não quero contar.”

A criança vai formando um depósito de impressões próprias que ela só vai transmitir às pessoas de sua idade. Quando os irmãos estiverem sozinhos entre si, ela diz:

— Vocês não imaginam como é a casa daquele! É assim, tem tal coisa…

— Mas isso não tem nada — responde um irmão mais velho.

Os irmãos mais velhos dão o parecer que se aproxima um pouco da opinião dos pais, portanto têm mais abertura. Os irmãos mais moços pelo contrário, são “fundamentalistas”, e um destes afirma:

— Que horror! Quando houver aniversário lá, eu não vou! Deus me livre de me meter naquilo!

Passam-se os meses e comemora-se mais um aniversário na residência da família “b”. A mãe da família “a” diz a seus filhos:

— Hoje vocês vão todos para lá.

Resposta de um dos mais novos:

— Mamãe eu não posso, porque hoje tenho que preparar as lições.

— Prepare à noite, quando voltar para casa.

O outro diz:

— Não posso porque estou indisposto.

— Diga-me o que você sente, pois lhe dou um remédio e desaparece a indisposição.

E só a muito custo a senhora consegue convencer os filhos de irem a residência daquela família.

Mas, de repente, a mãe muda de opinião e todos vão para a casa de um parente deles que ainda não conheciam, a qual lhes parece estar em um estágio intermediário entre a casa com o peru esquisito e a residência deles.

Semelhanças e dessemelhanças

Chega também certa hora na vida em que a criança entra em crise com a própria família e começa a julgá-la sem graça, tem vergonha dos pais, acha que a família do outro é prodigiosa, e às vezes toma amizades fulgurantes por alguém da outra família, e fica quase como um apóstata da própria família metido na casa dos outros.

Essas semelhanças e dessemelhanças provocam atitudes instintivas, nascidas de apetências e inapetências oriundas do profundo do ser.

Estou descrevendo o fenômeno apenas por alto, porque ele é muito mais profundo; entram em cena muitas outras pessoas, como os professores e até mesmo o padre da paróquia.

É um universo todo feito de organicidade que vai se formando, constituído de dessemelhanças que, quando entram em ordem, são dotadas de originalidades próprias, fecundas, ordenadas, interessantes, criativas. Mas também com semelhanças ultraunitivas, ultracriadoras de afinidade, que podem fazer com que um conjunto de famílias provenientes de um clã originário constitua todo um mundo, e que seja uma força dentro de uma sociedade.

A organicidade encontra-se, de baixo para cima, antes de tudo nesses impulsos meio hereditários, meio genéticos, meio étnicos; mas, depois, está nos fenômenos de alma e na luta da graça contra o demônio dentro da pessoa. Aí se forma um quadro complexíssimo e riquíssimo.

O mundo de relações baseadas nesses dados constitui o tecido social.

Analogado primário de todas as outras relações

Que relação tem isso com o resto não familiar da sociedade?

Reprodução
“Um menino chega da escola chorando” (por August Heyn)

Quando um indivíduo vive intensamente a vida de família, ele compreende de um modo profundo e instintivo que, ou transladamos para as outras relações o caráter da vida de família, ou todas as outras relações são falsas.

Tende-se, então, a estender a vida de família a todos os outros sentimentos benévolos, como se pode ter em relação às outras pes­soas. E quando se é amigo, tende-se a transformá-lo num parente, pelo lado favorito, afetivo. Quando se é colega — por exemplo, dois médicos que trabalham juntos por terem especialidades complementares —, tende-se a transformar essa colaboração numa amizade, e esta num relacionamento fraterno. E quando se tem um mestre, fica-se propenso a tratá-lo como a um pai; e quando se é mestre, tende-se a transformar o discípulo em filho também. A relação familiar é uma espécie de analogado primário de todas as outras relações.

Isso coloca a amizade em situação de muita importância na vida das pessoas, porque ter autênticos amigos é ter amigos de vida e de morte; o que só é possível quando existe, de fato, verdadeiro afeto. E não possui essa autêntica afeição quem não tem originariamente na família uma fonte de afeto muito grande.

Daí vem o fato de certas associações outrora se chamarem “fraternidades”. E na linguagem interna seus membros chamavam uns aos outros de irmãos. Por exemplo, Irmandade do Santíssimo Sacramento. É uma tradição da penetração do ambiente de família em todos os outros ambientes.

Donde decorre que as associações profissionais assim organizadas não têm a frieza do sindicato, constituído mais em função de interesses do que da amizade. O pobre miserável que vive apenas atrás do seu interesse financeiro não compreende que ele perdeu um dos maiores interesses da vida: o afeto.

O antigo direito saxônico da Alemanha, no tempo em que os alemães eram bárbaros, estabelecia como lei a obrigação de cada saxão ter em relação a outro de sua raça determinadas disposições interiores. O que é uma coisa impossível de se impor como lei, pois não se pode obrigar alguém a uma disposição interior. Mas vê-se que eles observavam uns nos outros se o procedimento exterior correspondia ao cumprimento dessa prescrição. E quando não correspondia, vinha o castigo.

Então, a primeira lei de todas era: amor ao próximo, demonstrado pela lealdade. Quando houvesse qualquer forma de deslealdade, era um crime punido de determinada maneira prescrita na lei.

Naturalmente há um tanto de barbárie e sabedoria associadas nisso, mas corresponde ao fundo religioso da ideia que tenho do tecido social.

Exemplos de lealdade

O tecido social se alimenta ou se constitui de determinada rede de relações individuais nas quais o elemento vivificante, como o sangue para o organismo, é a observância dos Dez Mandamentos e da Doutrina Católica. Isso gera o tecido social perfeito.

No que diz respeito à lealdade, por exemplo, ainda no tempo do meu avô, no Brasil, havia casos em que ficava deprimente dois homens fazerem negócios entre si por escrito, porque provava que um não confiava no outro.

Um homem, digamos, comprava a prazo uma fazenda. O proprietário recebia uma parcela do pagamento, mas ficava obrigado a tratar da fazenda enquanto ainda estivesse nas mãos dele.

Como eram feitas as tratativas?

Cada um arrancava um fio da própria barba e dava para o outro. Mais nada.

Como a barba era um símbolo da respeitabilidade do homem, chegar para um homem e dizer: “Olhe, aqui está o fio de sua barba como prova!” era criar uma situação na qual o outro não seria tão felão que, diante da própria barba, não tivesse pudor. E a barba servia, assim, de garantia.

Reprodução
“Prece em tempo de seca” (por Félix de Vigne) – Museu de Belas Artes, Ghent, Bélgica

Suponho que os antigos bispos de São Paulo compravam e vendiam sem dar documento. Porque Dom Duarte, o mais antigo arcebispo que eu conheci, tinha o seguinte hábito:

A cúria de São Paulo possuía muitos imóveis, e ora comprava ora vendia algum. Por exigência dos bancos, Dom Duarte precisava assinar documentos, mas fazia-o colocando apenas uma cruzinha e “D.” sobre a estampilha. Ele dizia que era contra a honra do arcebispo colocar o nome inteiro. E ele ainda escrevia isto porque os bancos tinham exigido, mas antes ele não escrevia nada, bastava sua palavra de arcebispo.

Tomem almas persuadidas da sabedoria e da santidade dos Mandamentos, e que se modelaram inteiramente assim, se conhecem e se entrelaçam perfeitamente: elas formam um tecido social perfeito. Como ponto de partida estava a família, mas a verdadeira vida é a vida sobrenatural da graça. De maneira que nem se podia pensar numa coisa dessas numa sociedade entre pagãos, só entre católicos.

Pode haver sociedade orgânica de maus?

Surge a pergunta: Seria possível uma sociedade orgânica de maus?

Durante algum tempo sim, mas seria efêmera.

É um universo todo feito de organicidade que vai se formando, constituído de dessemelhanças que, quando entram em ordem, são dotadas de originalidades fecundas, ordenadas…

Arvasbao (CC 3.0)
Santo Henrique batiza os finlandeses

Quer dizer, quando existe a tradição de, sentindo da mesma maneira, criar a amizade, os primeiros bandidos que aparecem se tornam amigos também por este jeito. E embora inimigos daqueles que eles querem prejudicar porque almejam pegar-lhes o dinheiro, eles têm hábitos de boa conduta em outros pontos.

Um exemplo disso foi François Villon, poeta francês do século XV. Ele frequentava o chamado “Pátio dos Milagres”, que era o seguinte: os vagabundos que não queriam trabalhar se faziam de aleijados. Então fingiam ter perna de pau, e outras deficiências físicas para obterem esmolas. Chegando a noite, todos eles iam para uma mesma praça, e ali jogavam de lado as pernas de pau e as outras coisas, e andavam normalmente como se tivessem sido miraculados, mas não havia milagre nenhum, era a impostura que cessava. Chamavam “Pátio dos Milagres” por caçoada, evidentemente.

François Villon era frequentador do “Pátio dos Milagres” e bandido: fingia-se de aleijado, depois roubava, pulava nas casas, matava, etc. Um dia, a polícia conseguiu deitar a mão nele e a Justiça o executou.

Ora, ele compôs uma das mais belas poesias que há para Nossa Senhora: uma famosa balada em louvor da Santíssima Virgem. Uma verdadeira beleza!

São restos do tecido social ainda não totalmente podre.

E entre pagãos?

Levanta-se, agora, outra questão: seria possível uma sociedade orgânica entre pagãos?

Seria preciso distinguir. Uma sociedade autêntica e duravelmente orgânica, eu duvido. Uma sociedade mais ou menos orgânica, talvez chegassem a constituir.

O regime feudal de certos povos orientais, por exemplo, era feroz, não como o feudalismo católico, nem de longe. Mas podia ter o esqueleto de uma sociedade feudal.

O que me parece fundamental na questão é reconhecer que isso duraria pouco, porque acabaria dando no assalto de um contra outro.

Alguém poderia objetar: “Mas Dr. Plinio, o senhor parece sustentar a tese de alguns hereges que afirmam não ser o homem capaz senão de fazer o mal. Ora, existem determinadas virtudes naturais que o homem pode praticar sem o auxílio da graça, e o senhor parece negar isso dizendo que fora da Igreja não existe nenhum bem.”

Estamos falando de coisas diferentes. Pode haver um homem excepcional que, sem ter ciência desse tema, pratique certo bem. Contudo, praticar o bem integral sem conhecer a Doutrina Católica e sem a graça de Deus, não é possível.

(Extraído de conferência de 4/2/1992)

1) Do latim: enviados do senhor. Inspetores instituídos por Carlos Magno.

2) Do latim: por sua própria autoridade.

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