Após termos conhecido o ambiente social no qual Dr. Plinio começou a exercer seu apostolado, penetremos no quotidiano de sua atuação no Movimento Católico e no relacionamento que mantinha com os membros das diversas associações religiosas.
Em anterior ocasião, evoquei o ambiente sobrenatural que pairava nos edifícios sagrados, influenciando de forma profunda as almas.
Harmonia entre as congregações religiosas
Esta ação da graça tinha como resultado que entre todos os fiéis, participantes da vida interna da Igreja — não só quando se encontravam no templo, mas nas sedes das associações religiosas, ou mesmo na rua e se tratavam enquanto membros dessas entidades — havia concórdia, harmonia e respeito extraordinários. Demonstrava-se, na verdade, uma gentileza e uma generosidade das quais hoje não se tem idéia.
Formamos um grupo muito bem visto, com influência que logo se estendeu pelo Brasil inteiro
Por exemplo, se eu, congregado mariano, estivesse andando de bonde e alguém de outra associação se sentasse ao meu lado — digamos, um vicentino —, embora não me conhecesse, ele logo iniciava uma conversa amigável. Apesar de serem instituições diversas, ambas promoviam a grandeza da Igreja e a conversão das almas, as duas favoreciam o bem: a Irmandade São Vicente de Paulo angariando esmola para os pobres, a Congregação mariana propagando a devoção a Nossa Senhora.
A mesma amabilidade se verificava quando um congregado mariano entrava em qualquer paróquia e, reconhecido como tal pelo seu distintivo na lapela, era convidado a se dirigir à sacristia. Se precisasse falar com o padre, era levado até a casa deste, onde o recebiam com uma cortesia toda familiar. Pouco importava se não soubessem a que paróquia ele pertencia. Era congregado mariano!
A par dessa harmonia, uma completa ausência de politicagem e rivalidade. Na hora de eleger os diretores das associações religiosas, não se fazia conchavo, agia-se despretensiosa e naturalmente. Por causa de tudo isso, havia imensa facilidade para se ajudar essa gente na prática do bem. Podia-se freqüentar qualquer desses ambientes religiosos e neles tratar dos temas mais requintados e tonitruantes da doutrina católica, que todos ficavam contentes, todos demonstravam grande abertura de alma para o nosso apostolado.
O grupo do exemplo
Comecei então a formar na Congregação Mariana de Santa Cecília um grupo — antes mesmo de pertencermos ao “Legionário” — que era expressão disto e trabalhava a favor dos assuntos da fé, para que andassem mais depressa. Esse grupo era muito bem visto e recebido em toda parte, exercendo uma imensa influência que ultrapassava os limites de São Paulo, e pouco a pouco se estendia pelo Brasil inteiro. Era considerado o grupo do bom exemplo.
Em tudo isso havia um excelente senso de hierarquia e do dever. Por exemplo, nosso grupo se reunia no terceiro andar de um prédio, já demolido, situado na Rua Imaculada Conceição, e constituíamos o núcleo dos rapazes das famílias mais tradicionais na Congregação Mariana. Contudo, nos dávamos bastante bem com os outros membros dessa entidade. Em certas horas íamos conversar na sala de visitas, no andar superior do prédio, e convidávamos sempre algum deles para participar do nosso convívio. Tudo feito na maior concórdia possível.
Com todo o seu prestígio, o “Legionário” se tornou a alma do movimento católico em São Paulo
Projeção do “Legionário” no panorama nacional
Nessa atmosfera de ardente ortodoxia, o “Legionário”, do qual eu era diretor, atingiu rapidamente o zênite, tornando-se não o maior jornal católico do Brasil, mas a folha religiosa que os outros liam para temperar os periódicos por eles elaborados. Ou seja, aquele que ditava a moda para os demais jornais, era o nosso. A tal ponto que qualquer estrangeiro católico distinto, de passagem por São Paulo, não deixava de fazer uma visita ao “Legionário”.
Então, pregadores famosos, expoentes do catolicismo em seus respectivos países — como o Almirante Yamamoto, vencedor das guerras entre o Japão e a Rússia — e outros personagens do gênero vinham conhecer o “Legionário”, estabelecido no andar térreo daquele edifício da Rua Imaculada Conceição.
Com esse prestígio, poder-se-ia dizer, sem exagero, que o nosso jornal era a alma do movimento católico em São Paulo, o qual, por sua vez, era a alma das associações religiosas difundidas em todo o Brasil. Essa pujança teve início, exatamente, com a formação e o desenvolvimento desse grupo constituído por nós no seio da Congregação Mariana de Santa Cecília.
Ambiente e conversas no “Legionário”
Convém recordarmos aqui, com mais pormenores, como eram as conversas e o ambiente no “Legionário” nesses primeiros tempos de nossa atuação.
Naquela época, conforme a ordem natural das coisas, meu cabedal de leituras não era tão extenso quanto se tornou com o correr dos anos. Assim, a respeito da Revolução e da Contra-Revolução, possuía algumas idéias gerais que me serviam para analisar os assuntos mais de baixo para cima do que o inverso. Eu comentava os acontecimentos internacionais, nacionais, de caráter político, cultural, religioso, ou fatos que se davam no ambiente social ao qual pertencíamos. Minhas análises, às vezes, geravam saudáveis discussões entre nós, não raro longas. Como os meus argumentos eram sempre baseados na doutrina católica, geralmente triunfavam.
Ao mesmo tempo que censurava o mal, comecei a descrever as coisas favoráveis ao bem e apreciadas por mim
Essas discussões duravam uma, duas horas. Eu elucidava problemas históricos, elogiava os personagens dignos da minha admiração e que haviam sido vilipendiados pelos professores dos meus companheiros. Além disso, invariavelmente exaltava as perfeições da Igreja, narrava episódios da vida dos Santos cuja biografia tinha lido, etc., aproveitando as ocasiões para tirar ensinamentos e formar nossa mentalidade contra-revolucionária. Aos poucos, ao mesmo tempo que censurava o mal, comecei a descrever as figuras, os lugares, as situações favoráveis ao bem e apreciadas por mim.
Desse modo transcorriam as nossas conversas na sede do “Legionário”. Elas foram a semente das nossas reuniões atuais, com seus temas ampliados, elevados, desenvolvidos. No fundo as teses eram as mesmas, aprofundadas e consideradas sob um novo firmamento.
Na volta para casa, convívio com Dona Lucilia
Nossas reuniões se iniciavam após o jantar, e às 23 horas, infalivelmente, nos dirigíamos a uma confeitaria muito boa que havia na Rua Sebastião Pereira, chamada Elite. Como éramos fregueses assíduos — e todos bons garfos —, os garçons já estavam a postos, com tudo pronto para nos servir.
Naquele tempo não havia Missas vespertinas, somente matutinas, nas quais deviam comungar os que desejassem fazê-lo. Por essa razão, o lanche terminava à meia-noite ou, no máximo, dois ou três minutos depois, limite permitido para se observar o jejum eucarístico. Após essa hora, não se podia ingerir mais nada, nem mesmo água.
Encerrávamos a refeição, nos despedíamos e cada um retornava à sua residência.
Conversavam sobre os assuntos mais diversos, e, não raro, a prosa durava uma hora inteira…
Por volta de meia-noite e meia eu estava chegando em casa, onde Dª Lucilia me esperava em alguma sala, no seu quarto ou no meu, rezando.
Ao encontrá-la, infalivelmente a beijava, e ela a mim, em certas ocasiões várias vezes. Sentava-me perto de mamãe e começávamos a conversar sobre os assuntos mais diversos, criando oportunidade para ouvi-la contar algo do seu quotidiano de dona-de-casa.
Maravilhava-me ver sua alma reagindo face aos episódios por ela narrados: recebeu fulana à tarde, visitou sicrana, mandou a doméstica comprar certo produto novo, a faxineira limpar o tapete, enfim, pormenores da vida de uma senhora.
Quando alguma circunstância apresentava analogia com situações passadas, ela dizia:
— É como tal fato assim.
E contava alguns casos ocorridos com tios dela, mostrando os aspectos semelhantes. Embora eu não soubesse bem quem eram esses parentes, escutava com muito interesse. Naturalmente, mais por causa de Dª Lucilia do que pelo fato em si…
Depois eu a colocava ao par do que sucedera comigo. Não a respeito de tudo, mas de algumas coisas que tinha vontade de lhe participar. Quando o assunto se enveredava por comentários e idéias veementes de minha parte, mamãe se chocava, se arrepiava com as afirmações contundentes do filho, e perguntava:
— Mas, isso estará bem pensado?
— Como não, meu bem? Veja isso, aquilo, etc.
Ela prestava muita atenção e concluía:
— Se é assim, você tem razão.
Às vezes, essa prosa durava uma hora inteira, ao cabo da qual nos despedíamos afetuosamente e íamos para nossos respectivos aposentos.
Nem ela nem eu éramos tendentes a deitar cedo, ao contrário de meu pai, que não raro se levantava e dizia:
— Vocês não vão dormir? Que é isso?
— Olhe, papai, já vamos sim. — respondia eu.
Ele já sabia que demoraríamos. E a conversa continuava…