São Gabriel Arcanjo foi o embaixador escolhido para a Anunciação por causa de virtudes inerentes à sua essência. Eis o pensamento desenvolvido por Dr. Plinio nos presentes comentários.
No mês de março a Igreja celebra a Anunciação de Nossa Senhora e Encarnação do Verbo, um dos maiores mistérios da fé católica. Muito se tem falado de belos e profundos aspectos desta festa, como, por exemplo, o maravilhoso significado da união da Segunda Pessoa da Santíssima Trindade com a natureza humana, em ordem à Redenção do mundo, ou a grandeza e a humildade de Maria, aceitando a sublime vocação de ser a Mãe do Criador. Menos ressaltada é a atitude do Arcanjo São Gabriel neste acontecimento de primordial importância para a humanidade.
Creio, portanto, não ser sem interesse voltarmos um pouco nossa atenção para a figura e o papel do angélico portador da mensagem de Deus para a modesta Virgem de Nazaré.
Pelo teor da missão se percebe a magnitude do príncipe celeste
Podemos ter uma certa idéia de quem é São Gabriel se considerarmos o valor da missão de que foi incumbido pelo Altíssimo.
Com efeito, sendo os Anjos constituídos de uma natureza muito mais elevada que a nossa, as tarefas a que são prepostos têm relação direta com suas características e perfeições próprias, motivo pelo qual as funções angélicas não são assumidas por eles tão arbitrariamente como se faz entre os homens. Quer dizer, no nosso caso, ninguém será, por exemplo, datilógrafo ou embaixador por natureza: na hora do aperto, um embaixador se avia como datilógrafo, e um datilógrafo, por relevantes interesses pessoais, acaba sendo bom embaixador. No caso dos Anjos, pelo contrário, cada um está destinado a desempenhar uma função específica, de acordo com sua própria essência. Não se tratará, necessariamente, de tarefas tão extraordinárias como a da Anunciação, mas das ordinárias dos Anjos no Céu em face de Deus.
Na aplicação desse princípio, houve uma decisiva razão de conveniência para se conferir a missão de anunciar a Encarnação do Verbo a São Gabriel: era ele o Arcanjo que, por sua essência, estava à altura dessa dignidade. E, portanto, medindo o valor da incumbência dada a ele, podemos deduzir algo de sua glória, virtudes e esplendor.
Que dizer dessa missão?
Antes de tudo, é elevadíssima. É a missão-chave na História da humanidade. Esse Anjo foi enviado a Nossa Senhora para revelar-Lhe a chegada da plenitude dos tempos, o fim do reino do demônio, o esmagamento do domínio do mal, a remissão do gênero humano, a abertura das portas do Céu. O Anjo incumbido de pedir a Nossa Senhora seu consentimento para isso, e de anunciar o mistério da Maternidade Virginal, esse Anjo portou a mais elevada mensagem que se possa ter transmitido em toda a História.
Segundo o ensinamento dos teólogos, os astros são movidos por Anjos. Procuremos imaginar a grandeza de um Anjo que mova, por exemplo, toda a Via Láctea. Que valor, que força, brilho e categoria de espírito deve ter um Anjo desses! Agora, o que é mover uma poeira de estrelas como a Via Láctea, em comparação com o tocar a alma de Nossa Senhora, com o agir sobre o coração imaculado d’Ela, transmitindo-Lhe essa mensagem única e obtendo sua adesão?
Não há comparação possível. Daí se compreende a excelsitude da missão e do missionário.
Por outro lado, gradua-se a importância do mensageiro não só pela natureza da mensagem, mas também pela importância respectiva de quem a mandou e de quem a recebe. Um rei que tem uma comunicação muito importante para alguém de categoria superior, a envia por meio de um fidalgo da sua corte. Mas, se a mensagem for de menor alcance e o destinatário, uma pessoa comum, ele a mandará através de um empregado qualquer.
Ora, a Santíssima Virgem era a Rainha do Céu e da Terra, a obra-prima de Deus, destinada a ser Mãe do Verbo. Logo, somente um Anjo da mais alta dignidade poderia ser escolhido para levar a Ela as palavras divinas. Mais uma vez, vemos por aí a estupenda grandeza do celeste mensageiro.
Senso hierárquico e exaltação da virgindade
A partir desse sublime acontecimento, poderíamos deduzir também duas perfeições do espírito de São Gabriel, a meu ver muito salientes nos quadros de Fra Angélico que retrataram a cena da Anunciação.
Em primeiro lugar, um notável senso de hierarquia.
Quando São Gabriel se dirigiu a Nossa Senhora, Ela ainda não era a Mãe de Deus. Passou a sê-lo no momento em que aceitou a comunicação e, em conseqüência, a milagrosa e fecunda intervenção do Espírito Santo. Como, por natureza, os Anjos são superiores aos homens, até o instante em que a Virgem pronunciou o “fiat”, São Gabriel estava se dirigindo a alguém que lhe era inferior, embora A estivesse convidando para ser sua Rainha.
De outro lado, a mensagem trazida por ele significava uma tal predileção de Deus por Nossa Senhora que A situava acima do paralelo com qualquer Anjo, por mais elevada que fosse a categoria deste, incluindo São Gabriel. Donde o singular senso de hierarquia que o vemos manifestar, e que Fra Angélico expressa de modo inexcedível nos seus afrescos: é o Anjo imbuído de um respeito profundo e de uma entranhada veneração por Nossa Senhora, como quem toma a superioridade de sua própria natureza e a põe abaixo, por causa dessa grandeza da missão de Maria. Por sua vez, Nossa Senhora responde ao Anjo também inclinada e com toda a deferência, porque Ela recebia a mensagem de Deus e porque, como criatura humana, era inferior ao Anjo.
O episódio tem o perfume de um mundo de respeito mútuo, de superioridades recíprocas, nas quais Nossa Senhora acaba sendo incomparavelmente maior do que o Anjo, indicando bem o senso de hierarquia incluído nesse ato.
E, cumpre frisá-lo, senso de hierarquia e de disciplina oposto ao non serviam (não servirei) de Satanás. Muitos teólogos afirmam que o demônio se revoltou contra Deus porque não quis reconhecer o Verbo encarnado como objeto de sua adoração, e menos ainda aceitar uma mera criatura humana como sua rainha. Parece ter sido este o ponto que exacerbou ao extremo o seu orgulho e polarizou de forma irrefreável o movimento de insubordinação que grassava no seu espírito em relação à vontade divina.
São Gabriel fez o contrário. Cheio de adoração e amor a Deus, foi portador dessa mensagem que colocava, sob certo ponto de vista, o reino angélico abaixo do reino humano. Colocado diante de sua nova Rainha, tão inferior a ele por natureza, dobrou-se como o mais respeitoso e venerador dos súditos e cortesãos.
A esse alto senso de hierarquia podemos acrescentar outro aspecto: uma como que castidade celestial.
Ao se dirigir à Virgem das Virgens para anunciar que Ela será Mãe sem deixar de ser virgem, São Gabriel faz uma esplendorosa exaltação da virgindade, além de revelar uma espécie de obra-prima de pureza realizada por Deus: diante desse fato tão imenso da Encarnação, Nosso Senhor resolveu violar todas as regras da natureza para salvar a virgindade perfeita de Nossa Senhora, e conferiu uma nova glória ao gênero humano, fazendo d’Ela a Esposa do Divino Espírito Santo e Mãe de um Filho gerado milagrosamente, sem concurso de homem.
São Gabriel estava, assim, incumbido de trazer à Terra a mensagem que é uma das maiores glorificações da castidade já conhecidas na História. Não será difícil compreender, portanto, a ligação toda especial com a virtude da pureza que esse Arcanjo deveria ter.
Senso de hierarquia, de disciplina, humildade, vinculação com a pureza e a virgindade, virtudes do embaixador divino, contrárias ao orgulho e à “sensualidade” do demônio, inimigo irreconciliável de Deus e de Nossa Senhora. A velha serpente foi pisada e esmagada de modo avassalador nesse sublime mistério da fé cristã. E se um Fra Angélico acrescentasse na sua pintura o detalhe da cabeça do demônio sob os pés de São Gabriel, retrataria um fato profundamente real.
Pedir a humildade, a pureza e o amor a Nossa Senhora
Dessas breves considerações podemos inferir que motivos não nos faltam para pedirmos a São Gabriel que interceda por nós junto a Nossa Senhora e ao Sagrado Coração de Jesus, a fim de alcançarmos essas duas graças tão indispensáveis para nossa perfeição espiritual: primeiro, a de termos genuíno senso de hierarquia, humildade sincera, intenso amor à superioridade (ainda que aqueles que sejam mais do que nós em certos aspectos, sejam menores por vários outros); em segundo lugar, a graça de possuirmos o gosto ilibado da pureza, da castidade, enquanto princípio, valor moral, e não apenas como predicado físico. Humildade e pureza que, sem dúvida, são dois dos traços distintivos da santidade específica de São Gabriel.
Sabe-se que os Santos e os Anjos são chamados a favorecer os católicos, obtendo-lhes o fortalecimento nas virtudes peculiares com que eles mais glorificam a Deus. São Francisco nos alcança o espírito de pobreza; Santo Inácio, a lógica soberana, inflexível e incomparável dos Exercícios Espirituais; São Bento, o gosto da liturgia e da contemplação. E assim por diante, o que os Anjos e os Santos mais têm, mais eles dão.
Se São Gabriel espelha as mencionadas virtudes em tão alto grau, ele foi posto por Deus para obtê-las em favor dos mais necessitados. Não deixemos, portanto, de recorrer a esse extraordinário intercessor que nos foi dado pela Providência, rogando-lhe conceder-nos a mesma veneração, o mesmo entranhado respeito e amor que ele manifestou por sua Rainha e Senhora, Maria Santíssima, Mãe do Verbo Encarnado.