N os primeiros meses de 1941, Dª Lucilia mudou-se mais uma vez de casa. A nova moradia, na Rua Sergipe, 401, no bairro de Higienópolis, tinha a vantagem de estar situada na mesma rua em que morava sua filha, Dª Rosée, facilitando a esta fazer-lhe companhia durante as ausências de Dr. Plinio.
Pouco após a mudança, Dª Lucilia teve de despedir uma empregada. Não demorou a aparecer à sua porta, oferecendo seus serviços, uma mulher alta, de cabelos louros, olhos azuis, falando português com certa dificuldade e com voz um pouco estridente para ouvidos brasileiros. Chamava-se Olga e era natural da Letônia, um dos países bálticos que, no início da Segunda Guerra Mundial, caíram sob o domínio da Rússia comunista.
Como é normal, Dª Lucilia lhe fez algumas perguntas, para verificar se convinha ou não admiti-la. Depois das primeiras respostas, percebeu que a pobre Olga, além de possuir várias qualidades, havia passado por não pequenas tragédias na vida, e compadeceu-se dela, resolvendo contratá-la. Diante da bondade de Dª Lucilia, Olga não hesitou em lhe pedir permissão para levar com ela sua filha única, de 7 anos. Dª Lucilia seria incapaz de exigir que uma filha ficasse separada de sua mãe, pelo que acedeu de boa vontade.
Por causa dos infortúnios que se tinham abatido sobre a infeliz Olga, Dª Lucilia tratava-a com carinho e aos poucos foi conhecendo sua longa espiral de sofrimentos, sobre os quais aplicava sempre o lenitivo de um bom conselho. Agradecida, Olga acabou nutrindo respeitosa afeição por tão excelente senhora, a quem serviu dedicadamente por mais de 20 anos.
Evocativas recordações
Temos visto como Dª Lucilia guardava ciosamente em seus arquivos caseiros diversas cartas de seus filhos. Por que motivo não chegaram todas até nós? Escolhia apenas algumas? Não sabemos. Talvez reservasse as mais carinhosas ou as que mais saudades evocassem, ou quiçá tenha emprestado algumas a outros familiares e elas se extraviaram. Curiosamente encontram-se por vezes, entre seus papéis, simples bilhetes, na aparência sem maior significado, mas ilustrativos da enlevada benquerença que lhe devotava Dr. Plinio.
Em meio às graves reflexões de um retiro espiritual, por exemplo, escreve-lhe ele estas breves palavras:
Mãezinha querida,
Graças a Deus, o retiro vai correndo bem, com excelente pregador, ótima comida e um panorama maravilhoso.
Lamento muito que a Sra. não tenha ido a Prata.
Espero estar aí 2ª cedo, para matar as saudades, que não são poucas.
Com mil beijos para a Senhora e um abraço para Papai, pede-lhe a bênção o filho muito afetuoso e respeitoso.
Plinio
Já este segundo bilhete foi enviado por Dª Lucilia a seu filho, novamente em retiro. Realizava-se este no Seminário do Verbo Divino, em Santo Amaro (São Paulo):
Filho querido,
Manda-me dizer pelo portador, se precisas de mais açúcar, ou de mais alguma cousa. Envio-te junto um pão, e pretendo mandar-te amanhã um bolo, mas, para isso, desejo saber se estes bons e excelentes padres não se ressentirão, percebendo que estás recebendo gulodices de fora. Quanto ao açúcar, é justo que o faças, devido à escassez do mesmo.
Queres neste caso que te envie uma latinha com açúcar em pó?
Saudosa, envia-te muitos beijos e abraços, tua mãe extremosa,
Lucilia.
No verão de 1941 Dr. Plinio foi ao Rio de Janeiro, onde aproveitou o ensejo para descansar um pouco. Prometeu como sempre a sua mãe escrever-lhe, contando com pormenores a viagem. Dessa estada na Cidade Maravilhosa são as linhas que seguem:
Rio, 2-II-41
Mãezinha de meu coração,
Com muitíssimas saudades suas, venho cumprir minha promessa, enviando-lhe minha primeira carta.
O calor está muito forte, mas o passeio ainda apresenta vantagem. Já jantei no Brahma, já fui a Niterói e ao Jardim Botânico, onde apanhei para a Senhora estas plantinhas chamadas “saca-rolhas” e fiquei conhecendo a vitória régia.
Estive com o Pe. Franca, que me fez muita festa, com o D. Aquino Corrêa¹, Pe. Felix². O Sr. Cardeal e Sr. Núncio estão em Petrópolis.
Conto visitar hoje S. Francisco e S. Bento.
Como vai a Sra? E Rosée? E a Katucha? Muitos beijos a ela.
Mil e mil beijos para a Sra., do filho que muito e muito a quer do fundo do coração e lhe pede respeitosamente a bênção.
Plinio
Nos cuidados da própria saúde, preocupação com os filhos
O precário estado de saúde de Dª Lucilia causava constante apreensão a seus filhos, e os levava a não pouparem esforços nem recursos a fim de aliviá-la — o quanto estava ao alcance deles — da penosa enfermidade de fígado que a acometia. Por tal motivo nunca deixaram de lhe proporcionar longas permanências em Águas da Prata, que resultavam em sensíveis melhoras para ela.
Porém, na sinceridade de seu desprendimento, mais preocupada com os outros do que consigo mesma, Dª Lucilia não queria pesar no orçamento deles. Receava fazerem excessivos gastos com ela e, como se pode comprovar por uma afetuosa resposta de Dr. Plinio, chegou a externar isso numa de suas cartas, infelizmente perdida:
Santos, 27 de março [de 1942]
Mãezinha,
Recebi sua ultima carta, da qual lhe devo dizer francamente que, se uma parte me agradou muito, a outra não me desagradou menos.
Agradou-me muito, é claro, saber que a Sra. está, graças a Deus, passando melhor.
“Jantei no Brahma, já fui a Niterói e ao Jardim Botânico, onde apanhei para a Senhora estas plantinhas chamadas saca-rolhas e fiquei conhecendo a vitória régia…”
(ao lado, vista do Jardim Botânico, no Rio de Janeiro)
No entanto, a forma pela qual a Sra. se refere ao interesse que Rosée e eu tomamos por sua saúde, me desagradou categoricamente. Em tudo, meu bem querido, é preciso ser lógico. Em primeiro lugar, o que Rosée e eu estamos fazendo não passa de trivialidades, certamente feitas com grande afeto, mas que nem por isto deixam de estar na órbita das trivialidades. O que de mais natural do que ela levar a Sra. para a casa, e lá lhe dispensar todo o carinho? Pois não é sua filha? O que é ser filha? De minha parte, o que de mais vulgar do que empregar algum dinheiro para o bem-estar de minha Mãe? Se o dinheiro que, com o auxílio de Nossa Senhora, tenho podido ganhar, não se empregasse com suma satisfação neste assunto, mereceria eu o castigo de que ele me fugisse inteiramente das mãos, pois que, gastando-o assim, outra coisa não faço senão dar cumprimento a uma obrigação grave, cuja observância de minha parte é destes “minimuns” que se exigem de qualquer pessoa de sentimentos vulgarmente bem formados.
Por outro lado, ainda que o sacrifício fosse de monta, sendo feito para a Sra., estaria idealmente bem, e não poderia estar melhor. Se eu precisasse da Sra. um sacrifício pesado, pedi-lo-ia e aceitá-lo-ia com tão absoluta naturalidade, com tal certeza da inteira dedicação com que a Sra. o prestaria, que nem me ocorreria fazer lamentações sobre o caso. Não sei por que a Sra. ha de imaginar que a recíproca não deve ser a mesma……
Assim, meu bem, nada de lamúrias, de lamentações, de agradecimentos. Agradeça simplesmente a Deus e a Nossa Senhora que tenhamos com que fazer face às necessidades, e lhes peça que continue a ser sempre assim. Quanto ao mais, o assunto está definitivamente encerrado, ouviu meu bem?
A seguir, a carta nos coloca uma vez mais ante a perspectiva da Segunda Guerra Mundial, na qual o Brasil acabara de se envolver. De fato, após ter mantido, junto com o bloco maciçamente católico de nações latino-americanas, uma tal ou qual neutralidade, nosso País entrou na guerra quando a opinião pública de modo definido se decidiu contra o nazismo. Solidário com os Estados Unidos, que acabavam de sofrer o ataque de Pearl Harbour (7 de dezembro de 1941), o Brasil rompeu relações diplomáticas com os países do Eixo.
A propósito dos novos panoramas, Dr. Plinio comentava na mesma carta:
[Imagino que contaram] à Sra. o excelente passeio que fizemos ao forte Munduba. Estava muito impressionante a sensação de, em pleno território nacional, nos encontrarmos em uma autêntica “maginot” escavada dentro da própria rocha, e conversar-se sobre descida possível de paraquedistas, a eventual chegada de esquadras estrangeiras, a ação da quinta coluna em Santos, etc., etc. É um novo capítulo que se abre, uma nova era em que se entra, na História nacional. Em outros termos, começamos a ser “gente”, a correr riscos, a tratar de coisas sérias, e a impuberdade política em que nossa situação geográfica e nossa debilidade nos colocavam, parece ter cessado de vez. Assim se abre o capítulo: como se encerrará? Qual será o mapa do mundo, quando isto tudo amainar? É o que só Deus sabe.
Devo chegar terça-feira, não sei bem a que horas, mas certamente depois do almoço. Aí mataremos, se Deus quiser, as saudades que estão até rendendo juros, de tão grandes.
Papai já deve ter chegado. Mande-lhe um apertado abraço. Para a Sra., meu bem querido, muitos e muitos beijos e abraços do filho saudosíssimo, que lhe pede respeitosamente a bênção.
Plinio
Na solidão de seu quarto, Dª Lucilia deve ter lido e relido inúmeras vezes essas linhas, consolada por lhe haver dado Deus um filho tão dedicado e generoso…
(Transcrito, com adaptações, da obra “Dona Lucilia”, de João S. Clá Dias)
1) Foi Bispo de Cuiabá e governador do Mato Grosso.
2) Pe. Félix Pereira de Almeida. Antigo colega de Dr. Plinio no colégio São Luís.