sábado, noviembre 23, 2024

Populares da semana

Relacionados

A contemplação terrena, prenúncio da visão beatífica

Asociedade deve ser organizada de modo a satisfazer as necessidades espirituais do homem, mais importantes que as materiais. Continuamos a publicação desta valiosa tese defendida por Dr. Plinio em 1960, num artigo inédito, a respeito das relações entre Igreja e sociedade temporal. No número anterior, nós o vimos indagar-se quais as características da sociedade angélica. Com que objetivo? Tomá-la como ponto de referência para estudar a organização social humana. Nas páginas seguintes, ele prossegue sua demonstração.

As noções relativas à sociabilidade e à vida social dos Anjos são aplicáveis à alma humana, enquanto esta também é, em si mesma, inteiramente espiritual. Porém, incorreríamos em graves erros se, fazendo a transposição dessas noções do reino angélico para a sociedade terrena, não tomássemos em consideração que a alma humana foi criada para viver ligada a um corpo carnal, destinado a fazer com ela uma só pessoa, e que toda a natureza da alma humana se ordena a tal consórcio com a matéria, só nesse consórcio encontrando seu modo de ser e de agir normal.

Tão íntima é essa união que, no período em que nossa alma viver dissociada do corpo à espera da ressurreição, encontrar-se-á num estado de anomalia. Para a alma justa, a ressurreição dos corpos será o complemento natural de sua felicidade. Quando a alma reassumir o corpo, não o fará como quem volta a um cárcere, mas como quem adquire jubilosamente a plenitude de si mesma.

Nossa natureza está orientada para a eternidade

A atividade social do homem é do conjunto espírito e matéria, pois o homem é um só, embora composto de dois elementos. Isto não impede um estudo sobre a influência da alma na vida social, sobre as características espirituais desta vida, apesar de seu caráter terreno. Uma vista de relance sobre o estado da alma separada do corpo nos capacitará melhor a compreender a parte propriamente espiritual da vida social do homem.

Lembremos antes de tudo que “non habemus hic manentem civitatem” (não temos morada permanente nesta terra). Fomos criados para o mesmo fim que os Anjos; como eles, fomos elevados à ordem sobrenatural; e, naquela eternidade diante da qual a vida terrena é um mero instante, deveremos participar da sociedade espiritual dos Anjos, contemplando, amando, louvando e servindo a Deus. Tal é a afinidade entre a natureza e operações de nossa alma e as dos espíritos angélicos.

Nosso corpo participará, é certo, dessas operações, mas no estado de corpo glorioso, isto é, de tal maneira (partícipe) da espiritualidade da alma e da graça de Deus, que seu modo de ser e de operar será como que sublimado para além do nível próprio à mera natureza humana, e fixado na imortalidade. Feitas essas reservas, vemos que a alma humana é tão sociável que realizará seu destino eterno numa vida social que terá objeto puramente espiritual.

Esta consideração nos pode ajudar a compreender melhor a vida social das almas na existência terrena, e como esta vida social autêntica tem por objeto valores inteiramente espirituais.

Se o nosso fim próprio é conhecer, amar, louvar e servir a Deus, nossa natureza, máxime enquanto elevada à ordem sobrenatural, deve tender inteiramente para este fim. Ou seja, todas as nossas atividades mentais e físicas devem dirigir-se para o conhecimento da verdade e prática do bem. Tanto quanto no Céu, esta finalidade é real na vida terrena, pois nossa natureza se orienta toda para o que será na eternidade. Suas tendências fundamentais já são o que eternamente serão.

E como a vida terrena não pode ser contrária à nossa natureza, segue-se que ela já é de algum modo, na sua substância, no que tem de mais interno, essencial e íntimo, no plano natural como no sobrenatural, a mesma vida de contemplação, amor, louvor e serviço de Deus que teremos no Céu.

O homem é por natureza contemplativo

Se é nisto que consiste o essencial de nossa vida terrena, cumpre lembrar, entretanto, que o modo pelo qual realizamos aqui essas operações diverge profundamente do modo pelo qual as realizaremos no Céu. Teremos na eternidade a visão beatífica sem véus nem obstáculos. Nosso amor terá atingido uma definitiva plenitude. Nosso louvor e nosso serviço serão sem jaça nem desfalecimento.

Na vida terrena, pelo contrário, estamos em condição de prova. Temos dons naturais e sobrenaturais a preservar e a desenvolver. Nossas ações — ainda as melhores — e, pois, também nosso louvor e nosso serviço, estão eivados de imperfeições. Nosso modo normal de ser nos sujeita muito mais à matéria, do que quando nossos corpos tiverem sido transfigurados pela glória. Tudo isso, não obstante, é bem verdade que o homem, mesmo o mais dissipado, contempla ativamente. Para nos darmos conta disso, bastará que esclareçamos o que é concretamente, na vida nesta terra, e no plano natural, uma contemplação¹.

O que faz um homem quando se detém para ver passar um desfile militar ou uma procissão religiosa, para considerar um edifício ou um panorama, para observar uma cena particularmente grave ou pitoresca da vida cotidiana, para assistir a uma peça de teatro? Contempla, isto é, fixa a atenção sobre determinado objeto, toma conhecimento do que nele há de verdadeiro ou de falso, de bom ou de mau, atraente ou repulsivo, de agradável ou odioso. Aquiesce, repousa, aceita, consente, como que assimila em sua alma a verdade e o bem. Experimenta uma dissonância, rejeita, opera como que uma purgação em si mesmo do que a coisa lhe possa ter comunicado de falso ou de mau.

Sendo naturalmente contemplativo, o homem deve utilizar dessa sua capacidade para o louvor e o serviço de Deus, numa preparação para a sua existência na bem-aventurança eterna (na página anterior, “Nossa Senhora cercada de Anjos”, outro afresco de Fra Angélico)

Tendo diante dos olhos um ser relativo e contingente², que tem em si o reflexo do Ser absoluto, o homem, pelos canais dos sentidos, considera aquele algo que existe absolutamente em Deus; como que se apropria desse bem, no próprio ato em que o considera; configura-se a esse bem; em suma, faz um ato caracteristicamente contemplativo, embora marcado pelas condições inerentes a esta vida terrena.

Muitos homens, infelizmente, ao realizar esses atos de contemplação, não se elevam de nenhum modo até Deus, mas se detêm na fruição egoística e circunscrita do ser relativo que têm diante de si. Muitas vezes seu conhecimento é vicioso, e dão acolhida ao erro e não à verdade. Essa contemplação os leva a assimilar o mal e o não o bem. É que, evidentemente, assim como há contemplações boas, há contemplações más. São os triunfos do mundo, da carne e do demônio. Não obstante, a ação que realizam é essencialmente contemplativa, embora possa ser meramente natural, e é uma afirmação de que há no homem uma capacidade natural muito profunda de contemplação.

Esta contemplação, quando reta, traz necessariamente como conseqüência o louvor, ou sua antítese que é a blasfêmia, pois na terra como no Céu, como ainda no inferno, o homem é, como dissemos, exclamativo, isto é, propenso a comunicar o que lhe vai na alma. E tal contemplação leva ao serviço, pois o homem naturalmente serve àquilo que ama, à Cidade de Deus ou à Cidade do Demônio, à verdade ou ao erro, ao bem ou ao mal.

É por esta forma que a alma humana realiza desde já, nesta terra, para a sua salvação ou para a sua condenação, as grandes operações que é levada a realizar por toda a eternidade. Claro está que esta contemplação, na medida em que é feita à luz da Fé, é animada pela graça.

Necessidade de contemplar as coisas criadas

Do que ficou dito, resulta evidente a necessidade que tem a alma humana de entrar em contato com objetos externos sobre os quais possa exercer sua atividade. A carência hipotética de tais objetos atrofiaria suas potências.

Assim como o corpo humano se pode alimentar a pão e água, mas adoecerá se passar longo tempo só com esses alimentos, assim também a alma humana não se pode alimentar na mera consideração de um objeto, ou de um número muito pequeno de objetos. Suas operações em tal caso ultrapassariam, é claro, as fronteiras do simples existir, mas levariam a alma a um operar tão defeituoso que daí se lhe seguiria um desequilíbrio. É o caso de certos operários, forçados por sua profissão a permanecer horas inteiras com a atenção voltada sobre um mesmo fato simples, pobre, quase asfixiante: um sinal luminoso, por exemplo, cujo acender ou apagar mais ou menos irregular se trata de registrar de minuto em minuto sobre uma folha de papel durante dez ou doze horas de trabalho cotidiano. Certas constituições mentais excepcionalmente bem-dotadas poderiam quiçá refazer-se deste trabalho por uma dispersão da atenção em horas de lazer. Outras, porém, sucumbiriam por uma como que anemia espiritual.

Nossa alma foi feita para a consideração do universo, de todo o conjunto de seres sobre os quais nossos sentidos tendem normalmente a se aplicar. Desses seres, o que ocupa o lugar central na cena, o que domina os outros, o que de certo modo compendia a todos em si é o próprio homem.

O Paraíso Terrestre, apesar de todas as suas delícias, era inadequado ao homem antes da criação da mulher: “não era bom” que ele estivesse sozinho. A alma humana, naturalmente criada para considerar o universo, é por isso mesmo propensa com a maior veemência, pelo impulso mais profundo e mais obstinado de todo o seu ser, à contemplação daquilo que o universo tem de mais elevado: os outros homens³.

Quer dizer, nas condições da vida terrena, as funções de conhecer, amar, louvar e servir a Deus no espelho da criação devem ter naturalmente, como objeto mais constante, mais rico, mais vivo, mais direto, aqueles cujas almas são imagens de Deus.

E aqui temos, do ponto de vista da alma — o mais importante dos pontos de vista atinentes ao homem —, a necessidade da vida social.

Servir de exemplo: obrigação de cada homem

Conhecendo melhor o próximo, que é a semelhança de Deus, conhecemos melhor a nós mesmos, e ao próprio Deus. Assimilando em nós as virtudes do próximo, enriquecemos nossa alma com algo que lhe é de todo conatural, e que reflete a Deus.

É certo que podemos ter alguma idéia do amor considerando a proteção que a galinha dá a seus pintainhos, e com isto podemos crescer em virtude. Mas muito mais rica será nossa idéia, muito mais decisivo o estímulo, se considerarmos uma mãe protegendo seu filho. Isto, quer para formarmos uma idéia do amor humano, quer principalmente do amor divino.

A contemplação não é apenas conhecimento, mas amor. Uma das afirmações mais quentes e mais irresistíveis de nossa sociabilidade está nesta necessidade de amar e de ser amado, que é inseparável da natureza de cada homem. Nosso amor se volta para as coisas do reino mineral, do reino vegetal, do reino animal, com alguma adequação. Podemos amar um belo cristal que encontramos à flor da terra durante um passeio; mais adequadamente amamos uma planta, uma rosa, por exemplo; a palavra amor se torna rica de um sentido maior quando ela tem por objeto um animal, por exemplo o cão, companheiro fiel nos bons e nos maus dias; mas ele só é propriamente amor quando tem por objeto um ser de nossa espécie. Este último amor, mais, incomparavelmente mais do que os outros que acabamos de enumerar, dá-nos uma idéia do amor que devemos Àquele que é Ser absoluto, o Ser por excelência, o Ser que contém em Si substancialmente todas as perfeições.

A contemplação não é mero conhecimento nem mero amor: ela é também assimilação. Pois o próprio do amor é produzir uma assimilação. Por isso nota-se no homem, como um dos traços mais essenciais de sua natureza, uma profunda influenciabilidade por outros homens, mas especialmente por aqueles a quem admira.

Imitar é uma tendência própria a todos, e está longe de ser em si mesma coisa degradante ou ridícula. Pode haver imitações que têm por objeto pessoas indignas. Pode haver imitações que têm por objeto pessoas dignas, cujas particularidades espirituais alguém procure assimilar de modo excessivamente exato, e, pois, naquilo que é inconfundível em uma pessoa, e intransponível para outra. São erros que se verificam na operação de imitar, como em qualquer outra operação humana.

Mas, em si mesmo, imitar, assimilar as características, é uma função legítima, constante da mente humana, é uma satisfação das exigências mais profundas de nosso ser. Se assimilamos o que devemos, se imitamos a quem devemos, aperfeiçoamo-nos e aumentamos nossa semelhança com Deus, refletido no espelho de suas criaturas.

Em sua peregrinação rumo à Pátria Celestial, cada homem deve servir de exemplo de perfeição e santidade para seus semelhantes

(“Caminho da salvação da alma”, pintura de Andrea Bonaiuti)

Imitar, servir de exemplo, são obrigações de cada homem, operações essenciais ao aperfeiçoamento das almas, inerentes profundamente à vida social delas. São maneiras dispostas pela própria Providência e dotadas por ela de eficácia relevante, para o exercício das potências da alma, desenvolvimento do espírito, e conquista daquela perfeição que é a veste nupcial com a qual nos habilitamos para o perfeito festim do espírito, que é a perpétua contemplação de Deus.

(Continua no próximo número)

1 No sentido corrente do termo, contemplação é a “aplicação demorada e absorta da vista e do espírito” (Dicionário Aurélio). O Papa João Paulo II diz que “os conhecimentos fundamentais nascem da maravilha que nele (o homem) suscita a contemplação da criação: o ser humano enche-se de encanto ao descobrir-se incluído no mundo e relacionado com outros seres semelhantes com quem partilha o destino” (Encíclica Fides et ratio, nº 4). Em outro de seus numerosos comentários sobre a matéria, diz o Papa: “Modelo eloqüente de uma contemplação estética que se sublima na fé são, por exemplo, as obras do Beato Fra Angélico. A este respeito, é igualmente significativa a lauda extasiada que São Francisco de Assis repete duas vezes na chartula, redigida depois de ter recebido os estigmas de Cristo no Monte Alverne: ‘Vós sois beleza… Vós sois beleza!’São Boaventura comenta: ‘Contemplava nas coisas belas o Belíssimo e, seguindo o rastro impresso nas criaturas, buscava por todo lado o Dileto’.” (Carta aos Artistas, nº 6, 4/4/1999).

2 “Deus é o único Ser necessário que existe desde sempre, que não pode deixar de existir, que é eterno, porque sua essência é existir, não depende de ninguém para existir, por isso é incriado. […] A matéria se transforma continuamente, é extensa, limitada, composta e divisível, ou seja, é contingente. Todo ser limitado é contingente, porque toda limitação supõe uma carência. E é metafisicamente impossível que o contingente seja incriado — como se demonstra em Filosofia. Chamam-se seres contingentes os que podem existir ou não, existir antes ou depois, existir de uma maneira ou de outra. Tudo o que nasce e morre, tudo o que muda de tamanho, forma ou lugar, como o homem, a flor ou a terra, é contingente. E o ser contingente não tem em si mesmo a razão de sua existência, mas deve sua existência a outro” (José María Ciurana, La existencia de Dios ante la razón, 2º, I, A., Bosch, Barcelona, 1976, apud Jorge Loring, SJ, Para salvarte, texto completo em www.servicom.es/loring).

3 “Todas as criaturas possuem uma certa semelhança com Deus, muito especialmente o homem criado à imagem e semelhança de Deus. As múltiplas perfeições das criaturas (sua verdade, sua bondade, sua beleza) refletem, portanto, a perfeição infinita de Deus. Desse modo, podemos nomear Deus a partir das perfeições de suas criaturas, ‘pois da grandeza e formosura das criaturas chega-se, por analogia, a contemplar seu Autor’ (Sb 13,5)”. (Catecismo da Igreja Católica, 41).

Artigos populares