Estando em Roma em junho de 1950, Dr. Plinio tinha como uma das finalidades de sua viagem fazer uma visita a Monsenhor Giovanni Batista Montini, Substituto da Secretaria de Estado — o futuro Papa Paulo VI. Solicitada a audiência, foi imediatamente concedida. Mons. Montini recebeu o visitante com muita amabilidade. Após tratarem delicado assunto atinente ao apostolado dos leigos no Brasil, a conversa se estendeu sobre generalidades. Dr. Plinio relata.
Por acaso falei elogiosamente do Ministério das Relações Exteriores do Brasil. Ele exclamou com simpatia: “Ah, o Itamaraty! Que instituição magnífica!” Partiu para um longo comentário elogioso da diplomacia brasileira, e nossa conversa se estendeu nessa direção.
Em certo momento, ouvi soar um reloginho de mesa. Com toda a evidência, Mons. Montini estava me concedendo um tempo extra de audiência, mas já passava da hora de sair para o almoço. Disse-lhe então:
— Monsenhor, estou abusando de seu tempo.
Ele prontamente se levantou, cumprimentamo-nos, e ele me levou até a porta. Voltei- me para ele e ainda disse:
— Monsenhor, queria lhe pedir um obséquio.
— Oh, professor, peça o que quiser!
— Daqui a alguns dias vai ser canonizado São Vicente Strambi. Queria pedir a Vossa Excelência que me obtivesse um convite de um bom lugar para eu ver a…
— Mas um convite só? O senhor não está com amigos em Roma?
— Estou com quatro amigos.
— Mando-lhe cinco convites. Em que hotel o senhor está?
— No Ambacciatori. Posso lhe deixar por esccrito…
— Não é necessário. É um hotel muito conhecido. Mando levarem lá.
Na tribuna do Corpo Diplomático
Realmente dois ou três dias depois aparece um estafeta do Vaticano com cinco convites para o melhor lugar da Igreja de São Pedro, que é a tribuna do Corpo Diplomático. Mas, dos quatro que estavam comigo, três tinham outro compromisso. Fomos, então, apenas dois.
Chegamos na hora certa, entramos pela porta dos embaixadores, e ali nos indicaram um local.
Os lugares reservados para os diplomatas são muito numerosos, porque, pela tradição vaticana, todos eles deviam comparecer às cerimônias de canonização, mesmo os embaixadores de países pagãos. E com isso ficava repleto. Mas a posição em que ficamos era muito boa.
Antes de o Papa entrar, eu observava aquilo tudo com muito interesse. Por exemplo, os camareiros de capa e espada, com trajes do tempo do rei Filipe II da Espanha, inclusive a característica gola branca engomada, uma vara na mão, andando de um lado para outro e executando pequenas missões. De repente vi um deles atravessar um longo espaço e tive a impressão de que me focalizava com os olhos. Pensei: “Não deve ser comigo; nunca vi esse homem na minha vida”. Porém, aproximando-se mais, ele fez uma inclinação em minha direção… “Não tem engano, é comigo mesmo”, e lhe respondi fazendo uma vênia, à espera do que estava por vir. Ele finalmente chegou perto e me comunicou:
— Monsenhor Montini manda dizer que há dois lugares de diplomatas que não foram preenchidos, bem mais abaixo, e onde o senhor pode ver de perto a passagem do Papa, e assistir à Missa. E manda oferecer-lhes ficarem ali, se desejarem.
Era um local dos mais honoríficos, daqueles que ficam perto do Papa. Aceitei, agradeci e ele nos conduziu até lá.
O rei negro
Era uma multidão que enchia a Basílica, numa atitude de respeito e veneração, com o silêncio que é possível obter de milhares de pessoas. Quer dizer, todos falavam baixo, num burburinho, decerto ruidoso, mas comedido, diferente do fala-fala comum.
Isto em meio a algumas manifestações de bom humor. Por exemplo, antes de o Papa chegar, começam a entrar as notabilidades. Entre elas aparece de repente, precedido por alguns alabardeiros, um rei negro do interior da África. No sentido ocidental, não era propriamente um rei, mas um grande chefe de tribo, um régulo. Colocar na tribuna do corpo diplomático a um homem que, definidamente, não era chefe de Estado, teria sido falta de tato. De outro lado, ele não era um mero particular. Solução: no transepto da Basílica, quer dizer, no lugar onde os braços do edifício se cruzam, estava armada uma poltrona mais saliente, tendo em torno cadeiras menores, sobre um tapete.
E o minúsculo monarca entrou com trajes de rei Gaspar da noite de Natal, com uma coroa de madeira, pintada de dourado. O público seleto que ocupava a igreja viu aquilo com boa-vontade e simpatia, e saudando-o com sorrisos de benevolência e uma salva de palmas. Ele, meio mítico, meio mitológico, atravessou com serenidade o longo corredor, e se instalou com dignidade no lugar reservado para ele.
O cortejo do Papa
Em certo momento, os sinos de São Pedro começam a tocar majestosamente. E um tressaillement, um frêmito, perpassa todo o público, porque era o sinal de que o Papa — era Pio XII —, no interior dos apartamentos dele, sentou-se na sedia gestatoria (o trono portátil no qual o Sumo Pontífice era carregado por dignitários da corte), e tivera início o cortejo em direção à Basílica de São Pedro.
Pouco depois começam a se ouvir de longe as trombetas de prata de Michelangelo, precedem o cortejo papal e anunciam que o Santo Padre vem chegando. Dali a pouco abrem-se as portas de bronze da Igreja de São Pedro e começa a entrar o cortejo pontifício. Era lindíssimo, e também longuíssimo! Porque, pelo protocolo da Igreja, os menos categorizados vêm na frente. Portanto, uma série de eclesiásticos de menor colocação; depois os mais elevados; em seguida, os superiores gerais das Ordens religiosas.
Por exemplo, os três superiores dos três ramos dos franciscanos, depois os beneditinos, cada um na ordem da fundação. Também o famoso “papa negro”, quer dizer, o Geral dos jesuítas, cujo cognome vinha do fato de ter muito poder naquele tempo, e por vestir batina preta. Sua entrada na Basílica chamava a atenção de todo mundo: “Olha lá o papa negro…”
Depois vinham os bispos, os arcebispos, os cardeais. Alguns desses prelados eram dos ritos orientais, com trajes muito variados. Lembro-me, por exemplo, de um simpático bispo com pele cor de azeitona, paradoxalmente vestido com um véu de um cor-de-rosa muito delicado e bordado com pedras verdes. Devia ser de algum lugar da África, do rito copta. Com uma cruzinha na mão, caminhava dando bênçãos para o povo. As pessoas se ajoelhavam e recebiam reverentemente.
Mas a expectativa do povo vai aumentando, à medida que se aproxima o som das trombetas, e o frêmito atinge o ápice quando o Papa, afinal, penetra na igreja pela porta central. Um delírio, uma aclamação, uma emoção fantástica.
Longa e imensa procissão atravessa de ponta a ponta o corredor da Basílica de São Pedro, levando o Papa até o trono preparado para ele ao fundo do templo. Homem alto, esguio, com mãos muito compridas e alvas, parecendo de marfim, Pio XII porta a tiara pontifícia. É conduzido até o lugar dele, desce da sedia gestatoria e senta-se no trono. Atrás dele são abanados discretamente os “flabeli”, grandes e ricos leques que realçam o esplendor da presença papal.
Começa então a Missa, mas o Papa permanece em seu trono.
As reações do Embaixador do Egito
Logo que eu chegara ao lugar que me fora oferecido, bem diante do lugar onde o Papa passava, prestei atenção em quem estava a meu lado. Vi um maometano alto, grande, espadaúdo, com um fez vermelho preso na cabeça com pompom preto, e o resto, traje ocidental. Era o embaixador do Egito. Fiquei curioso de ver como ele ia reagir.
A Missa se desenrolou normalmente, com muita pompa. No momento da consagração, o Papa levantou-se e foi até o altar. Quando ele passou perto de nós, à medida que caminhava, todos os convidados de honra faziam um cumprimento profundo.
Notei que o embaixador do Egito não tirou o fez da cabeça, mas inclinou-se profundamente diante do Santo Padre.
Os católicos se puseram de joelhos, e os não-católicos se mantiveram de pé, mas todos numa atitude de respeito.
No momento de consagrar, o Papa tirou a tiara, pôs a mitra, tirou-a também, e ficou com a cabeça descoberta. Quando começou a Consagração do pão, ouviram-se tocar as trombetas de prata, que estavam numa espécie de tribuna circular junto à cúpula de São Pedro. A impressão que se tinha era de Anjos tocando no Céu.
Uma emoção intensa se apoderou do público. Sou pouco emotivo, de modo que estava profundamente compenetrado, mas muito calmo. O bastante para deitar um olhar para o embaixador do Egito a fim de observar como estava sendo sua reação, quer dizer, como uma cena daquelas repercutia na mentalidade de um maometano. Ele mantinha-se inclinado, e lágrimas abundantes lhe corriam pela face… Quando terminou a consagração, ele disfarçou e colocou-se na posição normal. Essa graça que lhe tocou o coração, que fruto terá na hora de sua morte? No diz do Juízo saberemos.
Depois, silêncio enorme na Igreja, porque o Santíssimo estava presente. O Papa volta para o trono, a missa continua, depois o Sumo Pontífice comunga. Por fim, dá a bênção para o povo. Explosão de novo de alegria, tocam as fanfarras, daí a pouco ele se levanta e sai.
“Pro Missa bene cantata!”
Antes da saída do Pontífice havia um último ato, extremamente interessante, fazendo parte de um rito arcaico que data dos primeiros tempos de Roma, logo depois de a Igreja abandonar as catacumbas.
No cortejo de entrada eu notei a presença de dois dignitários eclesiásticos: um levava uma gaiola, feita de algo parecido com bambu, com três pombinhos vivos; o outro trazia um saquinho de pano muito comum, pendurado na fita que os padres usam na cintura.
No final da cerimônia, os dois se aproximaram do Papa, fizeram uma reverência e foram lhe oferecer o pagamento dos cônegos da Igreja de São Pedro, pela Missa que ele tinha celebrado. Uma coisa que se conservava há séculos, sem outro interesse senão o da formalidade.
E cantavam: Pro missa bene cantata! Reverência. Depois: Pro missa bene cantata! Após uma terceira reverência apresentavam o pagamento. Eram os três pombinhos para o almoço do Papa, e o saquinho cheio de moedas de ouro. Um ritual que a Igreja realizava a fim de recordar sua perenidade.
Tudo terminado, um novo santo, São Vicente Strambi, reluzia para sempre no firmamento católico.
Meu amigo e eu tomamos o automóvel e fomos para o nosso hotel, com o coração e a cabeça transbordando de impressões.