“A construção da Torre de Babel”, pintura de Tobias Verhaecht

Uma comunidade de nações cristãs regidas pelas leis do Evangelho não é um sonho irrealizável. Um dos grandes esforços da vida de Dr. Plinio foi tentar abrir os olhos de seus contemporâneos para esta verdade. Num artigo para o “Legionário”, em 1945, ele retoma este tema que lhe era muito caro.

Ela existiu, ela ainda existe, ela pode deixar de existir. Formaram-na os séculos de Fé ardente. Ela foi fundada sobre a pedra de ângulo que é Cristo, e lentamente, passo a passo, ano a ano, os mártires, os confessores, os pontífices, as virgens e os doutores foram erguendo suas muralhas. Muralhas santas, feitas de pedras, pedras vivas, trazidas pelo Sangue de Cristo, da morte ao regime da graça. A argamassa que as une foi composta com as lágrimas, o suor e o sangue de centenas de gerações de santos. O lineamento geral da obra foi (decalcado) em dias e noites, semanas e séculos de árduo trabalho, do imenso livro da criação visível e das páginas divinas da Revelação. Aos poucos se levantou o edifício grandioso, o Reino de Deus entre os homens, a civilização genuína nascida do Sangue de Cristo, a grande “Civitas” ocidental e cristã que, na amplitude de suas linhas a um tempo nobres e maternais, altaneiras e plácidas, fortes e acolhedoras, tinha algo de um templo, de uma fortaleza, de uma escola, de um lar e de uma casa de caridade.

Não se pense que essa edificação era obra meramente humana. Ela não existiria sem a graça, e por sua vez servia à própria expansão da graça. A Igreja Católica é uma chama que luz em qualquer atmosfera. A Igreja recebe sua luminosidade intrínseca, não dos homens, mas do próprio Sol de Justiça que é Jesus Cristo. No entanto, é preciso não esquecer que o brilho dessa chama divina pode irradiar-se mais, ou menos, conforme a capacidade do ar em que arde. A civilização cristã é a atmosfera serena e diáfana, que permite a irradiação omnímoda da chama evangélica. As civilizações pagãs, pelo contrário, saturam de vapores a atmosfera social e toldam habitualmente, com as nuvens espessas dos preconceitos e das paixões, a plena visibilidade, a universal irradiação do esplendor d’Aquele que foi posto como “lumen ad revelationem gentium”.

No fim da Idade Média, essa estrutura se trincou. Aos poucos, agravou-se a crise, e hoje ela está em franca liquidação. Pobre e grande civilização cristã, no caos de hoje apenas emerge um ou outro de seus gloriosos capitéis, as derradeiras ogivas que a sanha dos bárbaros ainda não abateu. Amamos estes santos e nobres destroços com o amor ardente e as saudades abrasadoras com que os antigos judeus olhavam para as ruínas do Templo destruído e abandonado. Sim, amamos as ruínas, e se destas nada restasse, amaríamos ainda sua poeira.

E para nós, que estamos entre os escombros dessa grande cidadela em ruínas, o problema não é de saber se se poupará ainda este ou aquele resto de coluna ou de muralha. É a grande batalha que, de um momento para outro, se começará quiçá a travar, a batalha última e decisiva há tanto tempo prenunciada pelos De Maistre e pelos Veuillot. A grande questão é, pois, saber se, sim ou não, a obra há de ser refeita; se os últimos destroços da “civitas christiana” serão abatidos para dar lugar à Torre de Babel, ou se os obreiros da confusão serão expulsos do mundo […], se os vendilhões, os aventureiros, os apóstatas e os demolidores de toda espécie serão escorraçados do recinto sacral do mundo cristão, para que os filhos da luz ergam novamente a grande Cidade que é o Reino de Deus entre os homens.

San Gemignano, na Itália, faz lembrar a “Civitas Christiana”, formada por séculos de fé ardente

Há em gérmen uma terrível e gravíssima opção ideológica, que nos espreita nessa tormentosa encruzilhada de caminhos políticos. Discutam uns a quem pertencerá o mando, e outros de que maneira se organizarão as finanças; quanto a nós, detemo-nos no marco divisor das rotas, procurando conhecer os fantasmas confusos que nos aguardam ao longo dos caminhos… de todos os caminhos.

Os problemas presentes contêm em seu âmago as mais radicais conseqüências para o futuro, um futuro por sua vez tão grave que nele a humanidade quase inteira pode abandonar ou reconquistar a rota da eternidade. É esta a situação a que chegamos. Não lhe diminuamos o alcance, reduzindo-a ou resumindo-a como se todos os interesses da Igreja se cifrassem apenas a alguns poucos retoques no edifício social.

(Transcrito do “Legionário”, de 4/3/1945. Título nosso)