Há quem afirme não reconhecer Jesus Cristo como Deus, mas mesmo assim admirá-Lo, tecendo loas a Ele por suas grandes qualidades humanas. Não será este um belo motivo para que essas pessoas possam se proclamar cristãs? Num artigo de 1938 — quando tal atitude estava na moda —, Dr. Plinio responde a esta questão.
Nosso século é muito menos diferente do século passado do que geralmente se imagina. [Por exemplo, a respeito de] Religião.
Renan e toda a sua escola intoxicaram o século XIX com o veneno sutil de um pseudo-entusiasmo pela figura maravilhosa do Filho do Homem. Repudiaram n’Ele a Divindade proclamada, no entanto, pelos traços inconfundíveis de sua Personalidade moral não menos do que pelos milagres historicamente demonstráveis e cientificamente insofismáveis, que espalhou à profusão Aquele que, pela Judéia, “pertransivit benefaciendo”, passou fazendo o bem.
Mas, a despeito dessa negação, se esforçaram por celebrar com louvores ditirâmbicos a grandeza moral de Jesus, rebaixado de Homem-Deus e Redentor a um filósofo mais ou menos poético, que teria um lugar de destaque ao lado de Sócrates, Platão, Buda e Zoroastro, na lista dos maiores homens que a humanidade produziu.
Deste acervo de erros, cuja simples descrição é penosa para a pena de um jornalista católico, um ponto, entre outros, é muito de se reter: sendo Nosso Senhor Jesus Cristo um simples homem, todas as virtudes que praticou e todas as verdades que revelou são meramente humanas. Quer isto dizer que o homem, pelo simples esforço de sua razão e de sua vontade, pode elevar-se às culminações morais de Nosso Senhor, ou ao menos, subir livremente um trecho de encosta maior ou menor, na grande escalada intelectual e moral que o Evangelho aponta.
Deste modo meramente humano de considerar a grandeza divina do Salvador e os proveitos temporais de seu ensinamento, uma coisa, como vimos, fica de fora: é o seu aspecto capital, de cunho nitidamente religioso e sobrenatural.
Esta posição teve corolários políticos muito nítidos, já no século passado. O burguês que apreciava na Igreja exclusivamente seu aspecto de freio das ambições desregradas das massas; o marido ateu que tolerava a piedade católica no lar, pois que essa piedade gerava boas esposas e bons filhos; o educador sem Fé que achava prática a moral de Cristo nos adolescentes (e só neles, note-se) para libertá-los da jogatina e da embriaguês. Toda esta gente, em última análise, repudiando o sobrenatural e, portanto, o Cristianismo, queria fruir só os frutos temporais que este produz em quantidade. No fundo, tudo isto é mentalidade à Renan, e só.
No entanto, do século XIX para nossos dias, “muita água correu para o mar”. Os problemas se fizeram cada vez mais agudos, as revoluções mais intensas, e as crises mais profundas.
Por isto, e porque a impiedade perdeu terreno, manifestamente, no espírito das massas, ninguém mais hoje — ou ao menos muito pouca gente — se diz anticristã com todas as letras.
Isto não obstante, a velha fobia liberal à disciplina da Igreja não morreu. E, no vocabulário de muitos estadistas, moralistas e sociólogos modernos, fez fortuna a palavra “cristão”, empregada para designar uma solidariedade (é o termo) com o Evangelho, que não implicaria nenhum ato de Fé, ou no máximo uma vaga crença, uma vaga sobrenaturalidade que se dá como auréola ao Salvador.
O “cristianismo” de uma importante facção, o hitlerismo, não é senão isto. E “isto”, em última análise, não é senão o livre-exame do protestantismo. […]
Que frutos esperar de tal “cristianismo”?
Não nos parece conveniente discutir. Um fato apenas: onde, fora da Igreja Católica, se encontra o tipo de “homem cristão” na plenitude que os Santos da Igreja atingiram? Onde o Francisco de Assis? Qual o Führer cristão que considerou as chagas dos leprosos como São Luís e Santa Isabel? Qual o benfeitor cujo coração arde com o amor compassivo dos pobres de um Vicente de Paulo?
É em vão. Por mais que se diga, se repita ou se proclame o contrário, só à luz e ao calor do sobrenatural divino da Igreja pode medrar a flor preciosa do autêntico espírito cristão. Para ser cristão, só há um caminho: a Igreja Católica…
(Excerto do “Legionário”, nº 306, 24-7-38. O título é nosso)