Quiçá o artigo reproduzido nestas páginas, escrito para o “Legionário” por Dr. Plinio, revele para alguns de nossos leitores uma face inesperada desse líder católico. Contudo, suas palavras aí refletem sua opinião constante a respeito da dignidade de todo ser humano, do papel do sofrimento e da verdadeira felicidade.
Um romance famoso de Victor Hugo, e uma fita cinematográfica que causou sensação, divulgaram no povo o conhecimento do que foi o famoso “Pátio dos Milagres”, antro tenebroso da Paris medieval, no qual se encontravam em promiscuidade todos os estropiados, todos os doentes, todos os vagabundos e todos os mandriões da capital francesa. Na imaginação popular, a “Cour des Miracles” se perpetuou até hoje como um cenáculo de horrores, onde, à luz de grandes fogueiras, o visitante podia vislumbrar todas as misérias físicas e morais de que o homem é passível neste vale de lágrimas.
Muitos leitores, provavelmente, se surpreenderão se eu lhes afirmar que não é preciso ler Hugo nem assistir às façanhas de François Villon, para conhecer um novo “Pátio dos Milagres”. A poucos quilômetros de São Paulo há um lugar que, com muito mais razão do que o [célebre] antro francês, mereceria aquela alcunha famosa. Realmente, nele, o horror dos padecimentos físicos não é menor do que no [renomado] “pátio” francês, mas, ao contrário deste, no nosso “pátio” há milagres autênticos que aconselho todos os meus leitores a irem examinar.
* * *
De manhã, muito cedo, saí em demanda ao “Pátio dos Milagres” de São Paulo. Acompanhavam-me dois médicos e um colega do LEGIONÁRIO. Devoramos precipitadamente alguns quilômetros de estrada de rodagem, e, ao virar de uma curva deparei bruscamente (com) umas casinholas alegres, bem alinhadas dentro de uma grande horta. Francamente, estranhei: era então esse o antro de horrores que eu me propunha conhecer?
O automóvel continuou mais um pouco na estrada e entrou por um portão largamente aberto. Os primeiros habitantes do “pátio” foram aparecendo. Minha impressão foi sofrendo grandes transformações, e dentro de pouco tempo me persuadi de que os horrores que pressentira antes da excursão seriam muito piores do que eu imaginara. Bastava, para isto, lançar um olhar em torno de mim.
Como de direito, fomos antes à capela do “pátio” — porque nosso “pátio” tem uma capela. Depois de uma rápida oração ao Senhor Sacramentado, começou a visita. Primeiramente, um barracão no qual uma dezena de velhos, bem velhos, bem reumáticos, friorentamente agasalhados em capotes surrados, e recostados em poltronas velhas, esperavam o aparecimento do sol para aquecer os membros gastos e imprestáveis. Entre os velhos, um moço também estava recostado. Seu olhar fixo e inexpressivo, e o meneio frenético do seu corpo, denotavam que se tratava de um doente mental. Meu cicerone — um velho amigo a quem conheço desde os bancos do Colégio São Luís — atirou àquela gente um jovial “bom dia”. O contraste entre ele, o meu companheiro do LEGIONÁRIO e os velhos era chocante. Ele e meu colega, fortes, saudáveis, moços, risonhos. Aquela pobre gente, gasta, doente, velha e abatida. Entretanto, com surpresa para mim, nos lábios de todos floresceu um sorriso afetuoso, e um “bom dia” cheio de simpatia correspondeu à saudação de meu amigo.
Neste ínterim, aproxima-se dele, caminhando desembaraçadamente sobre dois tocos de pernas que não iam senão até os joelhos, um pobre rapaz que agitava, ao mesmo tempo, dois rudimentos de braços que não chegavam nem sequer até o cotovelo. Francamente, senti um calafrio, e o calafrio se intensificou quando meu “cicerone”, depois de me explicar que se tratava de um aleijado de nascença, convidou-o a dar provas de sua agilidade. A agilidade, realmente, era pasmosa. Com dois tocos de braço — parece mentira! — o pobre consegue tirar um cigarro de uma carteira que alguém lhe estende e, sem o auxílio de ninguém, colocar o cigarro na boca, tirar um fósforo de uma caixa, acendê-lo e fumar gostosamente, com largas e satisfeitas baforadas.
Pensei que a exibição contrariasse o aleijado. Pelo contrário, ele estava contentíssimo com seu êxito. Depois, caminhou para meu “cicerone”, e abraçou suas pernas — o coitado não alcançava mais alto — com um semi-abraço acompanhado de um sorriso largo e afetuoso.
Mais longe estava o pavilhão dos velhos. Algumas velhas, de tão velhas, já não se lembravam mais. Outras tinham perdido inteiramente o conhecimento de si. Ao sol, um grupo mais “conservado” palestrava. Dominava o grupo uma negra que usava um chapéu moderno e extravagante, presente, sem dúvida, de alguma “grã-fina” generosa. Aproximei-me curioso: o que diziam elas? A negra contava piadas! E todo o grupo ria gostosamente, despreocupadamente, placidamente, como se a vida lhes corresse em mar de rosas.
Mais adiante, ainda, o pavilhão das crianças. Quase todas eram bobas. A única que me pareceu ter uso da razão era uma pobre surda-muda, e realmente meu “cicerone” confirmou que ela não apenas era sã mentalmente, mas mostrava uma inteligência surpreendente. O médico aproximou-se dela. Imediatamente, ela começou a fazer trejeitos joviais, e uma religiosa contou uma peraltagem por ela executada dias antes. Risos gerais. E passamos para outra enfermaria.
Esta era dos tuberculosos pobres. As caras estavam tranqüilas, conquanto profundamente abatidas pela moléstia, pois que o pavilhão só continha doentes em gravíssimo estado. Mesmo ali, porém, o lenitivo de uma satisfação não faltava. Uma vitrola velha tocava a “Ave Maria” de Gounod. Parecia a prece resignada e coletiva daqueles a quem, dentro em breve, tocaria a ventura de contemplar face a face a glória de Deus.
O horror dos horrores, porém, ainda não estava visto. Era o pavilhão das mulheres mais supremamente miseráveis, atiradas ali pela velhice e pelo fruto dos vícios. Tristes rebotalhos dos prazeres humanos, toda a beleza fugaz lhes fugira das faces venais. Seu exterior refletia exclusivamente a abjeção dos dias idos. Velhas, decrépitas, acabadas, arrastavam ali um fim de vida abandonado, no meio de algumas outras mulheres que pareciam ter sido escolhidas a dedo nos porões e nos cortiços paulistas, entre as mais feias e as mais pobres. Francamente, lembrei-me das megeras da Revolução Francesa. Deveriam ter sido exatamente assim. E, no entanto, quanta docilidade, quanta consolação, quanta tranqüilidade pude notar entre elas! Como era nobre este fim de vida penitente! Que coroa de luz, para aureolar o fim de uma vida de lama!
A dois passos de mim atravessou uma pobre criatura reduzida ao último grau em que jamais vi alguém. Raquítica, descorada, com traços da cara deformados, o olhar estúpido, baixa quase como uma anã, infundia horror. Senti dentro de mim um tumulto de sensibilidade horrorizada. E, quando este tumulto estava no auge, minha consciência bradou-me severamente a frase da Escritura Sagrada: “Não desprezes a tua própria carne”. Minha carne! Sim, realmente, minha carne e a de meus semelhantes não valem mais do que a daquela pobre criatura de Deus, tornada, pelo Batismo, Templo do Divino Espírito Santo. Por que, então, este horror de meu orgulho?
Entretanto, a visita estava terminada. Saímos. O automóvel seguia rapidamente de volta para a grande Capital, mergulhada na preocupação do trabalho quotidiano. E, atrás de nós ficavam os pavilhões alegres e claros do alegre e claro pátio de milagres de São Paulo, a Vila Mascote da Assistência Vicentina aos Mendigos.
* * *
Alegre e claro, o nosso “pátio” o é realmente. Enquanto viver, penso que não me esquecerei do riso plácido e tranqüilo do pobre aleijado, da alegria jovial da mudinha, das gargalhadas despreocupadas que as piadas da negra velha provocava nas demais anciãs.
Esta alegria é o grande milagre de nosso “pátio”.
É banal surpreenderem-me às vezes expressões furtivamente melancólicas em caras artificialmente alegres. Nunca, porém, eu tinha presenciado expressões tão francamente alegres em faces escavadas pela dor, vincadas pela moléstia, devastadas pelo sofrimento.
Já tenho visto muito riso aflorar em beiços pintados de grã-finas ou em lábios fanados de “clubmen”¹. Em nenhum deles, porém, eu vi jamais um aceitar tão alegre, tão inocente, tão autenticamente jovial, quanto o que iluminou a face macerada do aleijadinho da Vila Mascote.
E um contraste doloroso se impôs à apreciação de meu espírito. Em memória, recordava-me eu de rapazes que conheci e de outros que conheço, magníficos espécimes de “pedigree”, “racés”², cuidadosamente educados, robustamente desenvolvidos, magnificamente trajados. Muitos deles, eu sei disto, são autênticos infelizes. Mais de um já apelou para a morte, para se libertar (que falsa e miserável liberdade!) da cadeia dos prazeres ilusórios do mundo. Outros, provavelmente, terão o mesmo fim.
E, enquanto isto, o aleijadinho da Vila Mascote vive tranqüilo e sorri feliz, ele que não tem “pedigree”, não é “racé”, não foi nem magnificamente educado, nem robustamente desenvolvido, nem magnificamente trajado.
Qual o segredo deste milagre?
Jesus disse: “Eu sou a luz do mundo, quem me seguir não caminhará nas trevas”. O aleijadinho da Vila Mascote trilha com Jesus um caminho de humilhação e de dor. Mas Jesus, que é a luz do mundo, enche este caminho de uma luz magnífica, que se converte, em sua alma, em risos de uma alegria confortadora. Os meus pobres colegas “blasés”³ trilham um caminho de pecado e de falso prazer. Neste caminho, eles só encontraram trevas… Jesus não está com eles.
(Extraído do “Legionário”, nº 301, 19/6/38)
1 Freqüentador de clubes sociais
2 De alta linhagem
3 Entediados