Na fria e poluída noite paulistana, o pobre homem empurrava com dificuldade, ladeira acima, a carrocinha. Sobre esta se equilibrava uma verdadeira torre de caixotes usados, que ele laboriosamente recolhera durante o dia pelas ruas. Apesar da sua muito humilde condição e do trabalho duro, seu rosto denotava um contentamento que partia do fundo da alma. De repente, as rodas da carrocinha são engolidas por um inesperado buraco no asfalto, e eis que a torre de caixotes treme toda, ameaçando desabar. Num gesto muito rápido e elegante, o condutor as ampara, mantendo intato seu “castelo”.

Essa cena foi presenciada com atenção por uma das pessoas mais indicadas para captar não só todo o seu pitoresco, mas, sobretudo, todo o valor de alma que ela podia expressar: era Dr. Plinio, o qual passava vagarosamente por ali no seu automóvel a caminho do auditório em que faria uma conferência para seus discípulos. Grande observador das psicologias e das situações humanas, ele utilizaria o episódio para discorrer sobre a alegria e a dignidade na pobreza e no infortúnio, mais valiosas do que qualquer riqueza. Dr. Plinio chegou a afirmar ter visto no gesto do pobre catador de caixotes um reflexo de tão belas qualidades de espírito, que, se as circunstâncias o permitissem, gostaria de parar o carro e entabular com ele uma conversa, procurando alentar essas qualidades.

Quem teve a ventura de assistir a conferências de Dr. Plinio, não precisa de um esforço de memória para recordar as outras muitas ocasiões em que tratou do mesmo tema, ilustrando-o com casos semelhantes que ele relatava, como a pobre senhora espanhola que trazia parte do rosto coberto com um véu muito limpo e colocado com distinção, para velar os estragos provocados por uma doença; a mendiga sem pernas que se deslocava num carrinho de madeira, usando as mãos como força de tração; a moça, antes rica e bonita, internada como leprosa em um sanatório de Mogi das Cruzes; Zezinho, o copeiro sorridente e serviçal da casa do tio Gabriel; os coletores de lixo que, com fisionomia de gente bem-disposta, percorrem a paulicéia noite adentro.

Ao comentar esses tipos humanos, Dr. Plinio deixava transparecer preciosos traços de sua alma, talvez menos conhecidos do grande público: sua profunda compaixão pelos pobres e pelos mais sofridos, e a enorme simpatia por quem, em meio ao pior infortúnio, mantém uma alegria que só pode ser fruto da alma cristã. Destacava a dignidade inerente a toda criatura humana — criada à imagem e semelhança de Deus — e o conseqüente dever da sociedade e do Estado de proporcionar a todos os homens condições de existência dignas e suficientes. “Toda criatura humana, por mais modesta que seja” — asseverou ele certa ocasião — “tem uma dignidade própria, natural e inalienável. E maior ainda, incomensuravelmente maior, é a dignidade do último, do mais apagado dos filhos da Igreja, como cristão, isto é, como batizado, como membro do Corpo Místico de Nosso Senhor Jesus Cristo. Pois os que possuem a verdadeira Fé sabem que a principal nobreza do homem, no sentido mais profundo, é ser batizado”.

Sempre obediente às ações da graça divina, Dr. Plinio nunca se desviou dos sentimentos que aquela lhe inspirava a respeito dos mais desafortunados. Um exemplo disso é sua narrativa da visita a um asilo de velhos (transcrita na “Gesta marial de um varão católico”), certamente uma das mais belas páginas da compaixão cristã em nossos dias.

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Temos recebido de diversos leitores indagações sobre a ausência da seção “Perspectiva pliniana da história”, no número de outubro passado. Desejamos tranqüilizar a todos, garantindo que ela não foi supressa. Ocorreu simplesmente que, no intuito de acomodar artigos da nova coluna “O Pensamento filosófico de Dr. Plinio”, tornou-se necessário um revezamento entre diversas seções.