U“ma enorme estátua erguia-se diante de vós; (…). Sua cabeça era de fino ouro, seu peito e braços de prata, seu ventre e quadris de bronze, suas pernas de ferro, seus pés metade de ferro e metade de barro.
Contempláveis (essa estátua) quando uma pedra descolou da montanha, sem intervenção de mão alguma, veio bater nos pés, que eram de ferro e barro, e os triturou.
Então o ferro, o barro, o bronze, a prata e o outro foram com a mesma pancada reduzidos a migalhas, (…) enquanto que a pedra que havia batido na estátua tornou-se uma alta montanha, ocupando toda a região.” (Da 2, 31-35).
Assim falava Daniel, interpretando o sonho do rei de Babilônia, Nabucodonosor. E explicava ao soberano o simbolismo dessas imagens: quatro impérios se sucederiam, até Deus suscitar “um reino que jamais passará a outro povo: destruirá e aniquilará todos os outros, enquanto ele subsistirá eternamente” (Da 2, 44). A maior parte dos teólogos católicos vêem nesses impérios o babilônio, o persa, o grego e o romano; na pedra vencedora identificam Nosso Senhor Jesus Cristo.
Quando aluno do Colégio São Luís, ao deparar com descrições dos aspectos aviltantes e brutais do mundo anterior a Cristo, Dr. Plinio se perguntava se valia a pena tomar conhecimento deles. A conclusão: vale, pois assim é possível medir a amplitude da transformação sofrida pela humanidade em virtude do Sacrifício da Cruz, e a superioridade de uma civilização regida pelas leis do Evangelho.
Transcrevemos aqui excertos de aulas e conferências de Dr. Plinio nas quais ele compara o mundo antigo e a civilização implantada pela Igreja.
Considero o Egito como a mais gloriosa das nações antigas. Dele os gregos tiraram grande parte de sua cultura, e os romanos, por sua vez, foram colher na Grécia muito de sua civilização.
De outro lado, a moral do povo egípcio era superior em vários pontos à de outros povos da antiguidade. Por exemplo, ao contrário de outros povos contemporâneos seus, recomendava ele a benignidade, o respeito do filho ao pai, da mulher ao marido e vice-versa, do inferior para o superior, etc.
A civilização egípcia não estava isenta de graves chagas
No entanto, como no restante do mundo antigo, reinava na sociedade egípcia uma desigualdade desproporcionada entre os homens. Assim, o faraó e as duas primeiras classes sociais — a sacerdotal e a guerreira — possuíam a totalidade do território nacional, na razão de um terço para cada. Já os elementos da classe popular, embora considerados livres (isto é, podiam mudar de emprego, de casa, etc.), não tinham qualquer possibilidade de manter uma propriedade. Além disso, eram muito mal remunerados e viviam miseravelmente.
Para se ter uma idéia da situação de desprezo à qual era relegada essa classe, basta dizer o seguinte: quando um egípcio de certa posição tocava em um porco, mesmo com a ponta do manto, ficava na obrigação de banhar-se no rio Nilo, pois acreditavam que o contato com esse animal comunicava impureza — não material, mas essencial — atingindo o homem na sua alma. O banho no Nilo seria purificador. Ora, eles consideravam normal que os porcos fossem tratados por pessoas da classe popular.
Abaixo desta última, havia ainda um quarto grupo, que não era considerado classe social: o dos escravos. Viviam em situação pior que a dos animais. Não usufruíam de direito algum, podiam ser maltratados à vontade pelo senhor, separados da família, e votados a trabalhos penosos. Não tinham direito nem à própria vida: um escravo podia ser morto, mesmo não havendo razão para tal, por um simples capricho de seu dono.
É um tanto difícil de compreender como o Egito, país tão civilizado, pudesse chegar a esse ponto. É verdade que a existência da escravidão é peculiar a todas as sociedades antigas, mesmo a chinesa. Esse regime degradante só foi eliminado do mundo com o advento do Cristianismo, que difundiu entre os homens a idéia da verdadeira fraternidade.
Com Nosso Senhor Jesus Cristo nasceu a noção de que os homens são iguais perante o Altíssimo,só então apareceu a idéia da justa distribuição das condições da vida, a fim de que todos pudessem, enfim, viver com dignidade humana. Antes do advento do Cristianismo, uns viviam com gozos materiais imensos, outros, completamente espezinhados pela prepotência dos primeiros, numa desigualdade chocante.
No Ocidente, foi apenas com a decadência da Civilização Cristã e o advento da Primeira Revolução — Humanismo, Renascimento e Protestantismo —, que a escravidão voltou a ser praticada em larga escala, e não na Europa, mas nas Américas.
Menos que a pata de um cavalo…
A sociedade, para funcionar bem, supõe desigualdades: de importância, de ilustração, de situação, etc. Porém, que não sejam extravagantes, exorbitantes, mas harmoniosas, proporcionadas. Aí começa a colaboração dos desiguais, cada qual com sua missão própria. Temos, então, a sociedade humana funcionando em ordem. Temos a Civilização Cristã.
Essas desigualdades limitadas, mas muito autênticas, nasceram na Terra junto com o cristianismo. Antes da religião católica ser pregada aos homens, essas desigualdades moderadas não existiam.
A este propósito, lembro-me de uma fórmula de saudação a que os egiptólogos costumam se referir, encontrada numa carta escrita a um faraó, em ladrilho, por um agente que representava os interesses do Egito na Síria. Era pessoa de certa graduação, correspondendo a um cônsul de hoje. Tratando de assuntos comerciais, assim introduzia sua missiva: “Ao faraó, meu divino senhor. Fulano de tal (dava o nome dele), indigno de beijar vossos pés, indigno de beijar as patas dos vossos cavalos, beija o pó onde as patas dos vossos cavalos pousaram”.
É uma fórmula tão espantosa que nunca mais me saiu da cabeça. Isto é levar a desigualdade a uma desproporção absurda! Sob o ponto de vista da humanidade, assim como todos nós, os dois eram iguais. Não há razão para um homem considerar-se indigno de beijar as patas do cavalo do faraó. Qualquer ser humano vale imensamente mais do que um quadrúpede! Nosso Senhor Jesus Cristo morreu pela nossa salvação, e não pela de um eqüino.
Ora, manifestações de desigualdade como estas são próprias aos povos pagãos. A Civilização Cristã as atenuou e modelou de tal maneira que, na história dela, não encontramos nenhuma manifestação de desigualdade indigna de um homem. Ela respeita em cada um, por pouco que ele seja, a natureza humana que é igual em todos.
Compararemos essas atitudes absurdas com as maneiras dos reis da era cristã. Há algo pouco narrado em livros, mas Luís XIV — rei que certos historiadores chamam de orgulhoso, cheio de desdém para com seus inferiores — cumprimentava, tirando o chapéu, toda senhora que encontrasse no caminho, até mesmo as criadas. Fazia-o por causa do respeito cavalheiresco que o homem deve ter para com uma senhora, considerando que ela é uma criatura humana como ele, e que, portanto, tem direito à deferência dele.
A ferocidade de assírios e babilônios
Pior que a história do faraó e seu diplomata, é o fato que passo a narrar.
Lembro-me da impressão terrível que os assírios e babilônios me davam, no meu curso ginasial. No livro de história que eu folheava, havia fotografias de alto-relevos feitos por eles, estupendos trabalhos em cerâmica, encontrados nas ruínas de Nínive e Babilônia, que deixam ver características desses povos, que aliás tiveram muita glória.
Após terminarem suas guerras, eles realizavam aparatosos desfiles, em que os reis e generais carregavam com grande ostentação os objetos saqueados aos inimigos. Furavam os olhos dos prisioneiros, cortavam-lhes as orelhas, arrancavam o nariz, e os faziam entrar na cidade acorrentados, como se fossem animais, sob apupos do povo vencedor.
Os reis assírios e babilônios vangloriavam-se de suas crueldades e de sua depravação. Num alto-relevo que atravessou os milênios, podemos observar um soberano que toma atitude perante os vencidos. É algo confrangedor. O monarca, de físico avantajado, tinha sua estatura aumentada por um chapéu em cone truncado. Vê-se tratar-se de um chapéu de material rico. E o rei, com uma tal abundância de cabeleira, que de dentro da cobertura escachoam os cabelos, frisadinhos, direitinhos, formando filas, como se diria de soldados em ordem de batalha. E a barba dele do mesmo jeito: enorme, com dois, três dedos inteiramente lisa, depois uma série de cachinhos; em seguida, mais três dedos lisa, outros frisados e assim por diante, até o fim da barba. Na fisionomia, uma expressão feroz; os olhos, não amendoados mas compridos, característicos daqueles povos; nariz adunco de ave de rapina, e com uma lança na mão.
Diante dele, uma série de prisioneiros, em tamanho menor, todos com argola atravessando o lábio inferior, presas por cordéis que chegam até a mão do rei. À frente deste, dois de joelhos e, atrás, mais dois em fila. Ele os cumprimenta, na iminência de furar os olhos dos quatro. Quando saíam da presença real, estavam cegos. E assim ia ele perpassando os olhos dos derrotados, às centenas, para se vingar e para depois ter braço que não precisasse controlar. Sem ver, não podiam fugir e, portanto, não necessitavam de vigilância. Carregavam e serviam como animais de tração, onde fosse preciso.
Essa é uma desigualdade maldita, que não considera o fato de todos os homens possuírem a mesma natureza humana na qual um dia se encarnaria Nosso Senhor Jesus Cristo. Portanto, a desigualdade tem limite, e não pode levar um homem a fazer este uso de um semelhante. É algo abominável, fruto da civilização pagã.
Com o advento da Cristandade, tudo isso desaparece. Mais ou menos como quando surge a manhã: as aves de mau agouro, os animais daninhos, todos se encolhem nas suas tocas; assim também todas essas brutalidades se eclipsam. O Sol de Justiça, Nosso Senhor Jesus Cristo, vai aparecendo.
Os “benigníssimos” persas
Falemos dos persas. Quando estes, derrotando os caldeus, destruíram o império mesopotâmio, foram os judeus — até então cativos — restituídos à liberdade por um decreto de Ciro. Pelo texto desse indulto sabe-se que Ciro permitiu aos judeus a reconstrução do Templo em Jerusalém, fato confirmado também pela Bíblia.
Isto não nos deve levar a supor que os persas foram uma nação de inigualável benignidade. Episódios como os narrados impressionam o espírito da maioria dos povos da antiguidade, em geral dotados de grande inclinação para a crueldade, e fizeram com que os persas passassem para a história como benigníssimos.
Tal critério pode nos conduzir, à primeira vista, a juízos errôneos a respeito do caráter deste povo. Convém fixar bem este caráter, porque por ele se define toda a antiguidade. Aliás, por esse conhecimento podemos ver até que ponto eram considerados naquela época os sentimentos de bondade, solidariedade e misericórdia, quase inexistentes entre os demais povos de então. Seja como for, encontramos entre os persas gestos acusativos de grande crueldade, pois sabe-se que chegaram a mutilar prisioneiros vencidos, cortando-lhes o nariz, as orelhas e tudo o que havia de “cortável” no rosto deles.
Pois este era o povo com fama de “benigno” na antiguidade. Uma ou outra vez, usavam de misericórdia para com os povos vencidos. Entretanto, freqüentemente, à maneira dos caldeus, usavam de grande crueldade com os povos por eles dominados. Tinham, inclusive, o costume de crucificar os prisioneiros.
Outro caso que merece menção especial é o de Creso, rei da Lídia, aprisionado pelos persas. Ele foi condenado à fogueira, juntamente com quatorze crianças da nobreza de seu país. Porém, numa atitude bastante sensata, Ciro pensou que poderia acontecer com ele o mesmo sucedido ao monarca estrangeiro. Então mandou libertá-lo e o nomeou seu ministro. Nesse gesto transparece o verdadeiro caráter da benignidade de Ciro, baseada inteiramente no temor de um infortúnio.
Ainda com referência à crueldade, conhecemos episódios muito interessantes que mostram a existência deste instinto entre o persas. Conta-se que suas tropas, mal-sucedidas numa empresa de conquista da Etiópia, sofreram horrores nos desertos africanos. Esgotados seus víveres, os soldados persas começaram a se matar e a comer uns aos outros.
Noutra ocasião, apenas pelo fato de ter sofrido um desacato em Memphis, no Egito (que havia invadido), o imperador persa Cambises mandou executar duas mil pessoas desta cidade.
Assim eram os persas, povo que passou para a história como um dos mais benignos da antiguidade — época em que imperava a lei da força.