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A obediência e o espírito de epopeia

A virtude da obediência faz com que o homem vença a si mesmo. Quem pratica essa virtude na perfeição adquire o espírito de epopeia, pronto a enfrentar os maiores obstáculos.

Temos para comentar uma ficha tirada do livro de Emanuel Dalzon, “La Vie des Saints”, a respeito de São Dositeu.

Conversão a partir de uma terrível ameaça do Inferno

Este santo, cuja vida é pouco conhecida, viveu nos primeiros séculos da Idade Média, sendo um exemplo perfeito de santidade conquistada pela renúncia à própria vontade. Educado de forma mundana, talvez tivesse se desviado do reto caminho se um acontecimento não o levasse à conversão.

Percorrendo um dia a Palestina, viu em Getsêmani um quadro que representava o Inferno. Contemplava-o aterrorizado, quando uma Senhora de surpreendente majestade e beleza lhe apareceu, explicando-lhe o que via. Impressionado com a terrível ameaça do castigo eterno, Dositeu perguntou à desconhecida o que ele deveria fazer para nele não cair.

“É preciso — respondeu a Senhora — fugir do pecado e rezar.” E desapareceu.

O jovem buscou o mosteiro dirigido por São Sérido, um dos mais florescentes da Palestina. O abade entregou o neófito a um de seus melhores religiosos, São Doroteu. Este percebeu logo que o noviço não fora chamado para acompanhar as austeridades do convento, então decidiu inspirar-lhe o sacrifício completo da vontade. Começou por ensinar-lhe o jejum gradativamente. Depois, encar­regou-o da enfermaria. Nesse trabalho, Dositeu irritava-se às vezes com os enfermos. Era então tomado de enormes escrúpulos. Ia para a cela chorar, e aí permanecia dias se São Doroteu não aparecesse e o acalmasse. Imediatamente o santo confiava na palavra do diretor e reiniciava o trabalho, afastando suas dúvidas.

São Doroteu nunca lhe impôs rudes penitências corporais, mas o repreendeu continuamente, humilhava-o sempre que podia, e o obrigava a renunciar às menores coisas.

Aprendendo a renunciar à própria vontade

Um dia em que Doroteu visitava a enfermaria, o noviço perguntou-lhe: “Estais contente, meu pai, com os leitos dos doentes, em ordem e limpos?”

— É verdade — replicou o religioso — que vós sois bom enfermeiro. Mas não sei se sereis um dia bom religioso.

Quando nosso Santo precisava de uma roupa, seu mestre dava-lhe o tecido para fazê-la. Mas quando ele a terminava, obrigava-o a dá-la para um de seus irmãos, e fazer outra para si. Em certa ocasião, um monge deu a São Dositeu uma faca que ele achou muito boa para seu trabalho na enfermaria. Ao pedir permissão para usá-la, o diretor respondeu: “É assim que colocais vossa satisfação na posse dessas bagatelas? Quereis ser senhor de uma faca ou servidor de um Deus? Não vos envergonhais, Dositeu, de fazer de um objeto o senhor de vosso coração?”

E o obrigou a desfazer-se do presente.

São Dositeu gostava muito de ler as Escrituras, e sua alma muito reta fazia com que compreendesse trechos muito obscuros. Mesmo assim, quando tinha dúvidas, recorria a seu superior que não perdia ocasião de repreendê-lo rudemente e não responder às suas perguntas. Um dia, em vez de atendê-lo, enviou-o a São Sérido. O abade, já prevenido, olhou o discípulo severamente.

“Não vos compete — disse — ignorante que sois, falar sobre coisas tão elevadas. Refleti antes em vossos pecados e na vida mundana que levastes.” E o despediu com duas bofetadas. E Dositeu, após essa humilhação, voltou tranquilamente ao seu trabalho.

Após cinco anos de noviciado, o Santo adoeceu gravemente dos pulmões. Recebendo a visita de São Barnassufo, um dos religiosos mais eminentes do convento, como estivesse sofrendo demais, implorou ao visitante: “Meu pai, ordenai-me que morra, porque não posso mais.”

“Tenha ainda paciência” — respondeu o ancião.

Após alguns dias, pediu novamente Dositeu: “Meu pai, não posso mais viver.”

E o religioso respondeu: “Ide então agora em paz, meu caro filho, apresentar-vos ante o trono da Santíssima Trindade.”

Então, diz a vida dos Padres do deserto, esse bem-aventurado filho da obediência adormeceu o sono dos justos, no seio desta bela virtude que fora como sua mãe no caminho da perfeição.

Modo errôneo de escrever hagiografias

Creio que para a grande maioria dos meus ouvintes essa vida deve ser rica em conotações um pouco estranhas.

Com efeito, vemos aqui um jovem que olha para um quadro representando o Inferno, e temos a impressão de um rapaz um pouco embasbacado, tímido, que se assusta com qualquer coisa. Vem uma linda Senhora e aparece para ele. Extasiado e perplexo, ele fala com a Senhora que, em seguida, desaparece. Então, o jovem, todo tímido e fugitivo, vai correndo para um convento e se mete ali dentro.

Não é um homem que enfrenta a vida. No convento, ele se introduz num casulozinho, numa coisinha, numa vidinha que é a vidinha interna do convento. E vai tratar de doentes.

Então há uma transposição da vida que ele levava para uma vida muito suave, muito tranquila… Toda manhã ele entra na enfermaria, onde os doentes esticados na cama o olham com alegria.

Então vai dar papinha para um, remedinho para outro; ele os agrada e todos o agradam também, deixando-o tão contente! Quando acaba o serviço, ele fica esperando o almoço, alegrinho, satisfeito até à tarde.

Depois trata de mais uns doentinhos e acabou-se. Ele tem, é verdade, uns superiores que assustam um pouco. O episódio das bofetadas, por exemplo, é um pouco desconcertante. Mas também é verdade que aquilo entra um pouco nas regras do jogo, ele sabe que os superiores são muito bons, que fazem aquilo para quebrar sua vontade; ele então ficou com a vontade quebradinha, um bobinho que a gente leva pela ponta do nariz. E depois, na hora de morrer, pediu licença para expirar; deram a licença, ele foi para o Céu e está acabado.

Orientarei meus comentários no sentido de mostrar que essas conotações são erradas, mas não em sua globalidade. A questão é que o modo pelo qual certas hagiografias são redigidas, de fato suscita essas conotações. Trata-se de uma biografia que não tem nada de errado, exceto o seguinte: o essencial, o essencialíssimo, aquilo que explica todo o resto e lhe confere sua beleza e sua verdadeira grandeza, vem contado tão de passagem, quase de contrabando, que se o leitor não atinar bem para isso, a perspectiva toda da vida do Santo fica errada.

Todo verdadeiro católico deve ser pessoa de profunda reflexão

Como diz a ficha, embora fosse um rapaz de poucos estudos, São Dositeu se interessava muito pela Sagrada Escritura e considerava os seus mistérios, a ponto de, às vezes, interpretar trechos muito obscuros com uma sabedoria que espantava, porque mesmo os melhores especialistas na Bíblia não tinham alcançado aquela interpretação.

Aqui está a chave dessa alma e a explicação dessa vida religiosa. O resto é muito bonito, mas o é por causa disto, e encontra sua explicação nisto. Isto ilumina todo o resto. O que isto quer dizer?

Interpretar a Sagrada Escritura retamente, penetrando nas suas profundidades, encontrando um sentido que não ocorre muitas vezes a exegetas, cientistas experimentados, é um carisma. Para que a pessoa tenha esse carisma, é preciso um alto grau da virtude da contemplação. Quer dizer, que seja um espírito muito profundo, sempre voltado para a cogitação das coisas elevadas e profundas, e cuja mente está, portanto, sempre posta a considerar tudo quanto faz do modo mais elevado, a não pensar principalmente no que realiza, mas nas grandes verdades eternas e ter o seu espírito fixado nelas.

Quer dizer, devemos antes de tudo ver nele uma pessoa que, depois de ter fixado a sua atenção num quadro representando o Inferno e ter recebido uma visão de Nossa Senhora que o confirmou na virtude do temor de Deus — que São Bento considera o começo de toda sabedoria —, com um ato de reflexão lucidíssima, compreendendo quanto as coisas do mundo são traiçoeiras, quanto elas podem levar o homem para o Inferno, resolveu, por um chamado especial, abster-se de todas as coisas da Terra para levar uma vida de contemplação.

E entrou nesse mosteiro para ser eminente e fundamentalmente um homem de contemplação como, aliás — é preciso que notem bem —, deve ser todo religioso e, acrescento mais, todo bom católico. A vida interior de que D. Chautard1 fala é uma vida de contemplação, de reflexão sobre as verdades eternas e sobre as coisas desta Terra à luz das verdades eternas. E todo religioso, todo sacerdote, deveria ser, antes de tudo, um homem deste tipo de reflexão, um homem de contemplação neste sentido da palavra. Todo verdadeiro católico praticante, em qualquer função, deve ser primeiro um homem de profunda reflexão.

No nosso caso concreto, temos uma vocação diferente da de São Dositeu e, consideradas as circunstâncias, os matizes individuais que possa haver, devemos ter continuamente diante dos olhos as verdades eternas, o problema da Revolução e da Contra-Revolução. Precisamos saber ver a virtude e o pecado; quer dizer, a Lei de Deus e a violação dessa Lei, as vias de Deus e as vias do demônio em todos os fatos que nos cercam, desde uma nova forma de microfone até uma chuva que cai e o simbolismo que a chuva tem na ordem do universo. Tudo isso devemos considerar em meditações que não são obsessiva e exclusivamente sobre a Revolução e a Contra-Revolução, mas que, quando se fixam sobre as coisas terrenas, têm como polo natural, espontâneo, harmônico de atração a Revolução e a Contra-Revolução.

Uma vida de altíssima contemplação

São Dositeu era um homem assim. E por causa disto ele, no convento, tratando dos doentes, levava uma vida de altíssima contemplação. E, com certeza, mil e mil vezes, cuidando dos enfermos, ele teve ocasião de refletir a respeito do simbolismo moral das várias doenças, como as enfermidades do corpo simbolizam as da alma; como, de outro lado, a saúde do corpo simboliza a da alma, qual é o valor penitencial da doença para a formação espiritual do homem; como ela pode enobrecer, formar os caracteres, e mil outras coisas desse gênero; como as almas dos doentes, ou dos monges, se iam santificando; como eles eram chamados, quer os doentes, quer os monges, a irem se transformando para cada vez mais ficarem semelhantes a Deus, obedecendo ao preceito dado por Nosso Senhor Jesus Cristo: “Sede perfeitos como vosso Pai celeste é perfeito” (Mt 5, 48).

Tudo isso povoava o espírito de São Dositeu. E enquanto ele desempenhava a mais humilde das funções, como dar um remédio, trocar um travesseiro, aprontar uma cama limpa, não devemos imaginá-lo monoliticamente absorto nisto, mas fazendo tais trabalhos na perfeição, não desdenhando esta função, mas achando-a muito bela porque era uma obra de misericórdia. Contudo, longe de ficar só nisto, elevava-se aos mais altos graus da cogitação e da meditação, unindo-se com Deus Nosso Senhor.

Então, o verdadeiro perfil moral dele não é o de um bobinho que ao ser agradado fica tão contentinho, mas é o de um espírito recolhido, interior, em cujo olhar se perceberia todo um universo de pensamento, e que, ao fazer as menores coisas, tinha em vista a grandeza a que essas coisas se dirigem, como elas de algum modo estão ordenadas a algo de mais nobre, de mais nobre, de mais nobre, até a última perfeição que é Deus Nosso Senhor.

E é assim que devemos imaginar, na sala ou dormitório dos doentes desse convento, nosso Santo passando como uma espécie de turíbulo queimando um incenso perfeitíssimo, que elevasse todas as almas para o Céu. Assim ele deixava um sulco de recolhimento, de piedade, de vontade de sofrer, de generosidade, de conformidade com as intenções de Deus, em todos os doentes. É desse modo que precisamos considerar este homem.

Assim também o devemos observar na hora da obediência. Quando se leem essas histórias, tem-se a impressão de que são historietas. De fato são coisas sublimes. Porque não se trata de um ato isolado, de uma vez na vida de um homem um superior dizer-lhe que faça tal coisa, a qual ele não tem vontade de fazer. Estas são pequenas amostragens de uma vida inteira vivida sob a obediência, e a obediência de superiores sábios, que sabem, por causa disso, ser necessário contrariar a vontade do homem naquilo que o afasta de Deus.

Creio ter sido São Nicolau de Flue, um santo suíço, que rezava uma jaculatória que outrora comentamos juntos: “Ó meu Deus, dai-me tudo que me une a Vós e tirai tudo que de Vós me separa.” Esta é a obediência. O superior verdadeiro, que tem a felicidade de mandar no súdito verdadeiro — porque não basta só o superior verdadeiro —, deve a toda hora afastar do súdito as coisas que o separam de Deus, e aproximá-lo das coisas que o unem a Ele.

Despojar-se completamente do apego a si mesmo

Alguém dirá: “Mas, Dr. Plinio, haverá uma bagatela maior do que uma faca? Que importância tem tirar uma faca de um homem?”

Tirar facas de um homem a vida inteira, ou coisas à maneira de faca, de modo que sempre que se percebe que um homem tomou, ou pode vir a tomar, capricho por uma coisa dizer-lhe:

— Fulano, venha cá!

— Pois não, Padre Superior, o que deseja?

— O que você iria fazer agora?

— Tal coisa.

— Está bom, então faça o contrário: se ia subir, desça! Embaixo eu lhe dou instruções sobre o que deve fazer.

O homem fica cinco horas embaixo esperando, sem receber as instruções, mas recolhido e sem resmungar. Passa o Superior por lá e diz, para prová-lo:

— Oh, é verdade, você está esperando aqui! Não preciso mais de você, faça agora outra coisa.

— Pois não, Padre Superior. E sobe a escada…

Qual é o valor disso? O valor é exatamente a pessoa praticar o seguinte ato contínuo: subir ou descer, esperar ou não esperar, ter a faca ou não ter a faca, são coisas boas na medida em que me unem a Deus. E se a vontade de meu superior, que é a voz de Deus para mim, me manda fazer uma coisa, eu, que não tenho vontade própria, fazendo a de meu superior, me uno a Deus.

Porque Deus o chama para o estado sublime de não ter vontade própria. E de, por causa disso, a toda hora conhecer a vontade de Deus.

Robert Nyman (CC3.0)

Quando um homem destes se levanta de manhã, ele sabe que o dia inteiro lhe vão mandar executar coisas que ele não quer. Mas ele sabe também que é Deus que está querendo. Porque Deus o chama para o estado sublime de não ter vontade própria. E de, por causa disso, a toda hora conhecer a vontade de Deus.

Isso, evidentemente, é uma verdadeira maravilha, porque significa despojar-se completamente do apego a si, e estar vivendo apenas para a vontade de Deus. Mas, para aguentar isso, é preciso ter um espírito elevadís­simo. Não ver nisso as birras e manias de um superior, mas o desígnio da Providência, e obedecer constantemente, constantemente, constantemente.

Encontramos um exemplo admirável disso em Santa Teresinha do Menino Jesus, com aquela obediência contínua aos superiores, e uma superiora como a Madre Maria de Gonzaga… Para obter uma licença dela, era preciso agradar o seu gato.

Santa Teresinha não agradava o gato. Mas é para compreenderem quanta injustiça de um superior é preciso aguentar, de vez em quando. Porque não é só o superior santo para o discípulo santo, mas o bonito às vezes é ver o superior não santo ridicularizando o pobre discípulo santo, e com isso crucificando o discípulo santo e levando-o para o Céu.

Celine Martin (CC3.0)
Santa Teresinha do Menino Jesus

Há nisso uma trituração de si mesmo e um exercício de energia e de força de vontade, que tempera os homens mais fortes.

Homens capazes de derrotar a Revolução

Alguém me dirá: “Mas, Dr. Plinio, isso tem alguma relação com o espírito de epopeia que o senhor tanto admira? Não seria muito mais razoável que esse homem fosse fazer apostolado, saísse às ruas, enfrentasse os adversários?”

A única coisa razoável seria que ele fizesse o que Deus lhe mandou fazer. E se Deus lhe deu uma atração santa e verdadeira para a vida contemplativa, é porque Ele queria que aquele homem, na contemplação, ensinasse aos outros, fizesse aos outros o admirável apostolado que é de alguém ver que alguns renunciam a tudo. Não podemos ter ideia do bem que faz a alguém, que é apegado, ver que alguns renunciam palpável e materialmente a tudo, e vivem numa vida de renúncia contínua. Isso é um verdadeiro guindaste que leva as almas para o Céu!

Tenho notado este fato curioso: vão pessoas conversando pela rua e quando passam em frente a um convento, muitas vezes não olham; e nem dá muito para observar porque o muro é alto; e, exceto na hora de passar diante da porta, só se vê o alto do prédio. Mas há uma influência qualquer que parece obrigar todo mundo a falar mais baixo, a andar mais devagar, a se recolher até chegar ao outro lado.

Quer dizer, há uma irradiação, uma graça que vai e volta daquilo tudo, e que unge as cercanias. Todas aquelas almas levam uma certa quietude nas paixões agitadas, depois de terem passado ali por perto. E é apenas a carcaça, o vulto externo de um prédio que abriga uma Ordem religiosa que não se conhece, mas que se têm razões para recear que genericamente sofra dos males de que tantas outras Ordens sofrem.

São Dositeu recebeu esta vocação; portanto, era levado a cumpri-la. Mas — e isto é o que acho capital notarem —, sendo um Santo, é fora de dúvida que se a vontade de Deus exigisse a saída dele do convento para lutar contra o respeito humano, contra o mundo, contra a Revolução — que, aliás, naquele contexto histórico ainda não tinha aparecido — para lutar contra o pecado, para batalhar de armas na mão, como um cruzado contra os maometanos, ele o faria como os homens mais vigorosos o fazem.

Como tenho certeza de que, se Nossa Senhora tivesse querido que Santa Teresinha saísse do convento para capitanear uma sublime Chouannerie2, ela não teria estado atrás de Joana d’Arc nos êxitos militares. Porque a alma capaz de, com profundidade de espírito, com enlevo, dominar-se a si própria, ela é capaz de tudo. E são os homens capazes de tudo que têm capacidade de der­rotar a Revolução.

O espírito de epopeia nasce da vitória do homem sobre si

Por que afirmo isto? Porque quando um homem não consegue fazer o que deve, não é porque o obstáculo foi grande, mas porque ele não conseguiu vencer em si os obstáculos proporcionados àquela obra. Tomem um homem que não consegue subir uma montanha: se é um homem normalmente constituído, ele não sobe a montanha porque é alta, mas porque sua preguiça é alta. Porque se ele tem pernas e vontade de subir, sendo normalmente constituído, ele chega ao alto.

Isto se dá também com as batalhas e com as lutas de toda ordem. “Ah! eu fiquei muito acabrunhado e não pude lutar… Sabe como é… o ambiente era muito contrário…” Então me diga direito: você não lutou, não contra o ambiente, mas contra o respeito humano que estava dentro de você, não lutou contra seu apego, sua vaidade, seu egoísmo. O segredo de sua luta era você, e como não quis lutar contra si, você diz que o adversário foi forte. Não seja hipócrita, e diga pelo menos a verdade: o adversário foi forte porque você foi fraco. A sua fraqueza é a causa de sua derrota. Se você soubesse vencer-se com o auxílio do sobrenatural, se rezasse — e não rezou por preguiça, por espírito naturalista de que tem culpa —, se confiasse como deveria confiar, se você lutasse contra si seria tudo completamente diferente.

O espírito de epopeia não se realiza por meio de arrancos: o indivíduo que, de repente, dá a louca e faz uma coisa extraordinária. Isto é epopeia decadente do século XV. O espírito de epopeia nasce da vitória do homem sobre si. E esta vitória o homem alcança por esta via.

Deveríamos compreender bem o que é não fazer a vontade própria desde a manhã até a noite, não ter ideias esdrúxulas nem caprichos: “Agora, vou deixar esse serviço para tal hora; deram-me recado pelo telefone, mas eu esqueci porque não anotei; tal serviço deixarei para o dia seguinte…”

Por quê? Vem a resposta com a boca mole, miolo mole, dedo mole: “Ah! É porque eu achei que dava tempo…”

Precisamos estar adestrados à ideia de que devemos fazer sempre e imediatamente o dever inteiro, nunca deixá-lo para depois porque pode não dar tempo, porque pode haver preguiça. Devemos saltar como um leão em cima das obrigações desagradáveis, e fazê-las logo, desde que elas sejam inevitáveis, porque, do contrário, podemos perder o ânimo e a coragem de cumpri-las. Não se adia um trabalho só porque não se teve vontade de fazê-lo; isso é uma concessão para a preguiça. Só se adia um trabalho por causa de oração ou de saúde. A vontade daquele que dirige os serviços aos quais estamos sujeitos é para nós a vontade de Deus. Ainda que ele esteja errado, Deus quer que obedeçamos a ele. Se compreendêssemos isto, o nosso Instituto Secular nasceria como um lírio magnífico pode nascer de um terreno abençoado.

Mas, sem esse espírito de obediência, que é um espírito de luta abrangendo tudo — porque não fazer a vontade própria é lutar em todos os campos —, estar radicado em nós, não estamos à altura do sublime ideal de um Instituto Secular. Por quê? Porque para isto não estamos ainda prontos.

Muitos me falam em preparação para os castigos prenunciados em Fátima. Se todos fôssemos homens de estar sempre nos perguntando só isto: “Qual é o sentido mais alto daquilo que devemos fazer? No que serve à causa da Revolução e da Contra-Revolução?” E depois fizéssemos tudo por amor à causa da Contra-Revolução, e por ódio à Revolução. Se compreendêssemos que todo ato de obediência quebra o poder do demônio, lhe arranca as garras, facilita a descida dos Anjos e transforma o aspecto da Terra, se fôssemos duros conosco no cumprimento da vontade de nossos superiores, estaríamos inteiramente preparados para os acontecimentos futuros. Porque o adversário jamais poderá com um punhado de homens inteiramente recolhidos e obedientes, inteiramente sobrenaturais. Esses são os homens invencíveis.

A vida de obediência faz do homem um herói

Montalembert3, no prefácio da “Vida de Santa Isabel da Hungria”, conta um fato que já comentei várias vezes: um daqueles maometanos, preso durante as guerras de Cruzadas e outras, viajando pela França, começou a observar as catedrais com aquelas torres magníficas e altivas e perguntou quem construía esses edifícios. Responderam que eram os irmãos leigos de tal convento. Ele os olhou… eram homens tão humildes… E perguntou: “Mas como podem construir monumentos tão altivos homens de alma tão humilde?”

Esse maometano não tinha acertado com a solução, mas tinha compreendido o problema. A altivez perfeita, a altaneria completa e sacral como a torre de uma catedral ou de um castelo gótico dos grandes estilos, esta altaneria só as almas que têm essa forma de humildade são capazes dela. Esses são os verdadeiros heróis das verdadeiras epopeias. Aqui está um dado a mais para compreendermos o espírito de epopeia.

Por detrás ou dentro do conceito “tempo inteiro e alma inteira”, há o seguinte elemento: vontade inteira, sem divisão, que não hesita e não vacila; que se entregou uma vez com firmeza e que frutifica na direção em que ela se deu. Esta é a raiz do espírito de epopeia. Quando se tem vontade assim não se recua diante de nada. Aquela frase de Santa Teresinha: “Para o amor nada é impossível”, diz o seguinte: Para uma alma que quer mesmo — porque amar é querer; amor não é sentimento — e a quem Deus ajuda, nada é impossível. Isto é o suco da epopeia.

São Dositeu praticou a mais absoluta e heroica obediência, o que também é um modo de adquirir a força de vontade própria aos verdadeiros heróis das verdadeiras epopeias. Fazer continuamente a vontade de outros, ou seja, dos superiores para obedecer a Deus, é desapegar-se continuamente de manias, fobias, venetas e caprichos, o que supõe uma força de vontade sobrenatural. A vitória de um homem contra obstáculos é, principalmente, uma vitória contra si mesmo, ou seja, contra todos esses defeitos. Quando um homem não leva a cabo uma tarefa que Deus quer dele, não é porque o obstáculo foi grande, nem porque o inimigo foi forte, ele é que foi pequeno.

Conclusão: a vida de obediência faz do homem um herói porque, vencendo-se a si próprio, com o auxílio de Deus, não há o que ele não vença. No dia em que tivermos essa plenitude de orientação de espírito para a Revolução e a Contra-Revolução, a escravidão a Nossa Senhora, saberemos obedecer como São Dositeu, e estaremos preparados para todas as epopeias.

(Extraído de conferência de 12/2/1972)

1) Dom Jean-Baptiste Chautard (*1858 – †1935), monge trapista e Abade do Mosteiro de Sept-Fons. Autor do livro A alma de todo apostolado, ao qual Dr. Plinio se refere.

2) Nome derivado de Jean Chouan, um dos principais chefes da insurreição contrarrevolucionária em defesa da Fé e da realeza, desenvolvida na Vendée e em Mayenne, durante a Revolução Francesa.

3) Charles Forbes René, Conde de Montalembert (*1810 – †1870). Jornalista, historiador e político francês.

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