A Revolução Industrial atentou contra as virtudes cardeais, especialmente a da temperança. Ela promoveu o rompimento de uma série de equilíbrios, que corresponde ao nascedouro de uma revolução neurológica e psiquiátrica.
Uma das razões pelas quais o inocente vê as coisas com clareza está no fato de ter ele, na sua ordenação, uma propensão natural para considerá-las em suas hierarquias. Como a pessoa inocente, na própria retidão de sua natureza, mesmo sem ter explicitado nada, é dotada de espírito muito hierárquico, tende a não misturar uns elementos com os outros, nem agrupá-los erradamente, ou seja, a não fazer confusão.
Inocência e espírito hierárquico
Em geral a confusão dos assuntos provém, em larga medida, da falta de espírito de hierarquia. Ora, esse espírito emana da inocência, porque o inocente distingue muito bem entre o essencial e o acidental, aquilo que tem maior ou menor importância. Como ele não tem apegos nem movimentos desordenados, o seu olhar é hierárquico e as suas apetências ordenadas. Por isso, ele toma uma posição facilmente anti-igualitária.
Então, esse papel do espírito hierárquico – visto fora do eterno problema das classes e hierarquias sociais, formas políticas e sociais de organização – chega a este ponto: a inocência é a condição para a formação do verdadeiro espírito hierárquico.
Disso decorre outra consequência. Em toda sociedade verdadeiramente hierárquica paira certa inocência, enquanto nas sociedades niveladas, igualitárias, não.
Portanto, no tema das desigualdades, é muito legítimo considerar o lado socioeconômico ou político; ademais, é um campo muito tangível, onde se pegam com facilidade as coisas como são, porém não é o mais importante. O aspecto principal é ter o espírito hierárquico, essa inocência hierarquizante que paira nos lugares onde esse espírito está dominando adequadamente.
Eu não acredito, por exemplo, que uma pessoa entregue à lubricidade possa ter um verdadeiro espírito hierárquico. Se tiver, é por hábitos mentais oriundos do tempo em que ela era inocente. Contudo, aquilo está deperecendo como um sorvete ao Sol: subsiste durante algum tempo.
Assim, quando demonstramos tanto empenho em que a nota hierárquica refulja sobre toda a sociedade, mais do que a ordenação hierárquica das coisas, estamos desejando a refulgência desse espírito sobre todos os homens. Ora, é precisamente este espírito que a Revolução procura eliminar.
Isso se liga ao assunto do qual vínhamos tratando1.
Temperança e velocidade
No fundo da alma humana inocente estão contidas todas as formas possíveis de temperança. Uma dessas formas está ligada às velocidades. Sempre que se quer ou rejeita uma coisa intemperantemente, a própria intemperança daquela posição de alma suscita o desejo de uma velocidade falsa. A preguiça dá a vontade das falsas lentidões e, pelo contrário, os apegos favorecem o gosto das velocidades super-rápidas, excessivas e contínuas. O indivíduo temperante gosta das velocidades proporcionadas à rapidez e à lentidão do raciocínio e da elaboração ordenada, normal do ser humano, apreciando o verdadeiro repouso como a verdadeira ação, dentro das medidas tomadas em função da natureza dele.
Há uma velocidade na qual a natureza do indivíduo legitimamente se compraz, e que pode vir a ser uma espécie de superpotência dele. Existe também uma lentidão na qual ele se regozija e que é uma grande capacidade de recolhimento. Ou, o que é perfeitamente legítimo e respeitável, um homem sem esses extremos, mas com as proporções normais das coisas.
Contudo, quando o homem perde a inocência, e com ela esse equilíbrio, começam a se formar nele cargas de apetência ou de recusa da ação, que já correspondem à ação pela ação ou à inércia pela inércia. De maneira que o indivíduo adquire um gosto pela rapidez, não por ela o conduzir diretamente ao fim, mas pela velocidade enquanto tal. Do mesmo modo, a lentidão não o agrada pelo gosto da calma, mas pela pachorra em si.
Delírio pela mudança
Durante o período desde o Humanismo ou a Renascença até o começo da Revolução Industrial, no fim do século XVIII – naturalmente se nota muito mais depois da Revolução Francesa –, há o rompimento de uma porção de velhos equilíbrios, que corresponde ao nascedouro de uma revolução neurológica e psiquiátrica. No indivíduo pré-Revolução Industrial, por haver nele apetências desregradas, começam se desencadear apegos fabulosos, os quais ele quer satisfazer, mas que são reprimidos pelas lentidões do compasso da vida. Então, ele tem uma vontade doida de velocidades desenfreadas.
Isso gera um efeito curioso: na Revolução Industrial, as descobertas que chamam mais a atenção do público e o inebriam mais são as que permitem correr. Quer dizer, as supervelocidades inebriantes empolgam mais do que, por exemplo, o encontro de um novo remédio ou de um sistema de fabricar e pôr ao alcance de muito mais gente travesseiros cômodos.
Assim, a primeira coisa que salta aos olhos na Revolução Industrial é a mania da velocidade em todos os aspectos, e foi para onde a atenção, a confiança e o entusiasmo do público por essa Revolução mais se acentuou. Isso se deu por causa da carga excessiva de calma que as pessoas carregavam anteriormente.
O gosto pela trepidação entra aí como uma espécie de subproduto do horror à inação. Como a pessoa tem aversão à inércia, ela tem horror a que zonas de sua alma não estejam continuamente solicitadas a alguma forma de impressão ou de ação.
Entretanto, esse desejo de trepidação é algo colateral. A meu ver, uma prova disso está no seguinte: tão logo são fabricados transportes velozes com motores muito barulhentos, os próprios fabricantes se põem a inventar artefatos que diminuam o barulho. E às vezes se sentem triunfantes quando atenuam ou eliminam o ruído, mas nunca quereriam diminuir a velocidade.
Há uma espécie de adoração do movimento dentro disso, relacionada, por sua vez, com a mania de fazer que é, ela mesma, a mania de mudar. O delírio pela mudança para satisfazer o gosto de novidade marca não só a Revolução Industrial, mas a mentalidade dos que vivem imersos nessa Revolução.
Idade Média: explosão de vitalidade
Se buscarmos as causas mais profundas dessa transformação veremos que, da vida aventureira da Idade Média para a existência cada vez mais caseira dos séculos posteriores, houve um acúmulo excessivo de securitarismo. O desaparecimento, a fuga do heroísmo de dentro da existência humana tinha que produzir algum desequilíbrio nesse sentido. É fácil compreender como a reação proveniente desse desequilíbrio tenha produzido, forçosamente, a mania da velocidade.
Mas não é a única razão. A meu ver, a causa preponderante está nas apetências desregradas.
A posição verdadeira preconizada por nós é, portanto, de um equilíbrio no ponto de partida que se chama inocência, e entra no nosso conceito de Contra-Revolução, de hierarquia, de pureza, etc. É uma espécie de temperança primeira e fundamental.
Para compreendermos todo o estrago perpetrado pela Revolução Industrial, seria preciso termos a ideia desse equilíbrio de alma primeiro, originário, pré-existente à essa Revolução, já meio estragado pelo período que vai do Humanismo a Danton, e que só se vê inteiramente na Idade Média.
Eu compreendo bem terem havido exceções no mundo medieval. Entretanto, de um modo geral, existiram pujanças e atividades desconcertantes que não consistiam na intemperança pela intemperança, nem na fobia do repouso, mas correspondiam à explosão da vitalidade de um mundo extraordinariamente fecundo, cuja temperança consistia em entrar opulentamente dentro do jogo da vida, pelo desejo saudável de gastar-se a si próprio, dando origem, por sua vez, ao gosto dos repousos profundos. Por vezes, essa vitalidade partia para as grandes contemplações. E o homem muito ativo venerava o muito contemplativo, não como um inerte, mas um superativo.
Na Idade Média era tal a capacidade de contemplação e de ação ao mesmo tempo, que o povo, ao construir uma catedral, tinha uma noção global, implícita ou explícita, de como ela seria. Eles a contemplavam, mais ou menos, como os judeus a Terra Prometida. Passavam gerações trabalhando naquele edifício sagrado, com calma, sem exigir vê-lo concluído. Morriam em paz com a catedral incompleta, mas cuja edificação eles, ativa e contemplativamente, procuraram realizar. Vejo nisso um equilíbrio extraordinário! A eternidade era uma das dimensões do tempo para eles.
Aliás, os medievais faziam coisas descomunais, mas queriam produzir a impressão do proporcionado, do estático, e nem um pouco a do estertor. A arte moderna visa produzir o estertor continuamente em tudo.
As cores dos vitrais e tudo o mais que eles faziam eram voltados a produzir no homem uma forma de sensação, a qual coabita harmonicamente com todas as outras sensações opostas, mas não contraditórias. Essa é a melhor noção de repouso. Ao contemplarmos as coisas medievais, sentimos nossos anseios de alegria e de dor, de candura e de profundidade, de ação e de contemplação meio atendidos ao mesmo tempo, de maneira a ter uma espécie de plenitude onde a nossa vitalidade atinge o auge.
Galope para a loucura
A Revolução Industrial não tem essa meta, mas pelo contrário rompe com ela.
No século XIX houve quem se perguntasse, em presença da Revolução Industrial, se ela atentava contra as virtudes teologais, e chegaram à conclusão que não. Porém, ela atentava contra as virtudes cardeais, e isso eles não viram.
Ficam dados, assim, esses pressupostos para uma análise da Revolução Industrial, que são um ponto de equilíbrio interno do homem, ou seja, a inocência, na qual, proporcionadamente com a natureza humana, o homem sente, conforme as circunstâncias, que todas suas paixões, todos os seus instintos e impulsos da alma podem aplicar-se e desenvolver-se, mas nunca em detrimento do equilíbrio entre si. Cada qual tem um dinamismo por onde se move sem violar os demais, sem procurar ocupar um espaço que não lhe é devido, e tendo seu gáudio em chegar adequadamente à plena intensidade de si mesmo nas ocasiões em que isso se justifica. E fora disso, tendo um gáudio em ocupar a proporção devida na sã psicologia humana, o que é a aplicação, nessa correlação interna, dos princípios que regem a sociedade hierárquica, harmônica, equilibrada, pura e sacral.
A violação desse equilíbrio fundamental é o ponto de partida de todas as desordens, e produz esse galope para a loucura que vemos hoje em dia.
A Revolução Industrial é, portanto, um modo para produzir uma espécie de desordem daquilo que, no sentido literal da expressão, seria a infraestrutura do pensamento humano, o pressuposto pessoal, psicológico de equilíbrio que deve ter o homem, quando ele se põe a pensar, a querer, a viver.
Tendências: a ordem natural, o sobrenatural e o preternatural
O mundo das tendências não existe apenas na ordem natural. Essas tendências são muito visitadas pela graça, que produz no homem esse equilíbrio de que eu falo.
Também a tendência para os desequilíbrios é muito visitada pelo preternatural, e o homem também sente algo do demônio dentro disso.
Daí decorre que, historicamente, em cada indivíduo não há apenas o fenômeno natural. Ele teve sensações mais ou menos místicas que o levaram a conhecer a graça, e essas sensações ele recusou por uma coisa do demônio, e os dois polos estão implantados na alma dele; e a vida inteira ele tem uma atração da graça e do demônio, ou uma fobia do demônio e da graça, que estão no fundo da Revolução tendencial dele, fazendo a luta concomitantemente com os elementos naturais, interpenetrando-se e dando o fundo das origens da Revolução ou da Contra-Revolução.
Entretanto, o Humanismo deu ao homem uma fobia do sobrenatural e uma tendência ao comprazimento do natural que, no fundo, tocava nesse ponto. Então, o demônio entrou.
O fim da Idade Média foi precedido por uns cem ou duzentos anos de decadência, antes de aparecer o contrário dela, que é o fruto do extremo da decadência dela mesma. O período da cavalaria andante, dos menestréis, dos jograis, dos romances de amor eram fugas do sobrenatural graduais que preparavam o momento em que viria a rejeição. O Humanismo é, portanto, o brado de revolta final de uma longa evolução anterior.
Em alguns ambientes entrava o mal e começava a produzir esse desequilíbrio. Os bons se deixavam tentar, tiveram um pequeno esmorecimento anterior ao pecado. Veio a tentação, eles caíram.
Tendo sentido a ação da graça e do demônio dentro de si, o homem percebe que os meros padrões naturais de equilíbrio não lhe bastam. Se ele busca esse equilíbrio, quando encontra a Igreja Católica ele procura discernir isso nela e amá-la por essa causa, e fazer com que isso se generalize por sua alma.
Embora os estilos que foram penetrando sucessivamente na arte religiosa terem sido cada vez menos ricos disso, houve um fenômeno pelo qual, tomando por pretexto instrumentos de expressão material menos idôneos, entretanto a graça continuava a fazer sentir integralmente esse equilíbrio dela.
Portanto, essa impressão de equilíbrio proveniente da graça, posso dar testemunho de que senti em todas ou quase todas as igrejas onde estive. Com mais intensidade em umas, menos noutras, com muito mais intensidade no estilo medieval, evidentemente.
Isso se aplica às pessoas também. Quer dizer, os próprios clérigos tinham um certo carisma no qual algo disso transparecia. De maneira que, apesar de talvez eles terem advertido pouco a respeito da Revolução nas tendências, enquanto contrária às virtudes cardeais, a Igreja irradiou esse equilíbrio continuamente.
(Extraído de conferência de 20/8/1986)
1) Ver Revista Dr. Plinio n. 226, janeiro de 2017, p. 9-13