Civilização requintada pela técnica ou boçalização indígena? Eis um dos dilemas diante dos quais o demônio se encontra para realizar seus planos de perdição. Entretanto, na medida em que o mal progride, aproxima-se de sua ruína, pois é como o câncer que, ao terminar sua obra no organismo, morre junto com o corpo.
Entre os bens que a Revolução Industrial visou tirar aos homens estão a calma e, com esta, a seriedade que é a objetividade. É sério quem é objetivo. Essa objetividade ela subtrai também.
Surpresas que quebravam uma rotina secular
Enquanto os frutos da Revolução Industrial constituíam uma surpresa, o homem se maravilhou com eles. Acontece que essa surpresa não o era apenas no sentido estrito da palavra, ou seja, um acontecimento inesperado, mas uma surpresa deliciosa.
As primeiras surpresas da Revolução Industrial eram cheias de “maravilhas”. Em parte, porque suprimiam uma série de desconfortos e inconvenientes da situação anterior, substituindo-os por deleites com os quais as pessoas ficavam entusiasmadas.
Por exemplo, os meios de comunicação rápidos, como o trem. Então, o prestígio de certas denominações de linhas ferroviárias: “Expresso Rápido Direto de Paris a Constantinopla”, “Orient Express”; para aquele tempo eram coisas fabulosas. Pousar em Budapeste e amanhecer em Constantinopla…
Algo com o qual o homem daquela época ficava maravilhado era ver um trem entrar num navio, de maneira a um braço de mar ser atravessado sem que a pessoa saísse do vagão. Tive essa experiência e lembro-me de ter visto, estando dentro do vagão, todos os passageiros maravilhados, inclusive a minha família. Em determinado momento, pediram ao chefe do trem licença para descerem até um espaçozinho a fim de observarem o mar. Tudo isso deslumbrava deliciosamente. Ao deslumbrar, levava as pessoas a não terem a atenção voltada para os inconvenientes. A surpresa tirava-as de uma ultrarrotina, que datava de séculos, e as fazia entrar numa coisa nova, ao mesmo tempo deliciosa.
Descobrimentos cheios de “maravilhas”
Com o passar do tempo, os descobrimentos foram se tornando menos deliciosos e correspondendo mais a atender necessidades sérias, que levantavam pensamentos preocupantes. Por exemplo, as radiografias.
A radiografia foi tida como uma maravilha, porém uma maravilha em função da doença. Celebrar a radiografia era lembrar ao homem sua condição de enfermo. Por outro lado, significava dar oportunidade ao médico de descobrir problemas no organismo com os quais a pessoa não contava. De maneira que, embora a existência da radiografia, genericamente, fosse uma causa de alegria para todo mundo, o radiografar-se não o era para ninguém.
Era frequente, entre os contos de família, ouvir-se dizer: “Não sabe o que aconteceu com o Fulano? Ele foi tirar uma radiografia e descobriram que estava com uma tuberculose a qual ninguém haveria de imaginar! Já se encontra em Campos do Jordão, deitado, tratando-se.” Não era um feliz encontro…
Lembro-me desta pequena cena: um primo meu, que era um “touro” de tão saudável, foi assumir um cargo público, e para isso devia tirar radiografia dos pulmões. Enquanto ele aguardava o resultado, de repente aparece a secretária do radiologista, interrompendo a fila, e pergunta: “Quem é o Dr. Marcos Ribeiro dos Santos?”
Ele entrou, estranhando muito aquele chamado, pois não era ainda sua vez. Mais tarde ele me disse que teve um primeiro movimento, ao pé da letra, de desmaiar. Examinaram o homem, e não era nada. Ele tinha tirado a radiografia numa posição inadequada, e por isso precisava fazer outra. Quando, afinal de contas, ele deixou o consultório com a chapa da normalidade, saiu como um gato que pula para fora do braseiro.
O mesmo se dava com o telégrafo. Nas narrações daquele tempo, vemos o papel desempenhado pelo telegrama que, em geral, vinha comunicando uma “bomba”. Então, no romance chegava um telegrama quando o homem tinha perdido a fortuna. Logo depois ele se matava e encontravam, perto do seu cadáver, o telegrama molhado de sangue. Quer dizer, começavam a se acumular só aspectos negativos.
Desejo de fugir das consequências da industrialização
Outras descobertas tornaram-se completamente banais, como, por exemplo, a luz elétrica. Alcancei o tempo em que o abat-jour surgiu e começou a ficar na moda. Quer dizer, quebrar o excesso da luz elétrica, de tal maneira que hoje quase não há sala onde não se encontre um abat-jour. Aquele esplendor da iluminação que encantou não a mim, mas a tantos contemporâneos de minha infância, foi perdendo seu encanto. A própria Revolução Industrial foi azedando nas mãos do homem, mudando de aspecto, a ponto de, no final, deixar-lhe apenas uma sobrecarga de uma capacidade de trabalhar e de sobreviver estonteante.
Então nós vemos que a humanidade continua a considerar como um benefício a Revolução Industrial, mas aquilo que fora um casamento por amor, acabou sendo umas núpcias por razão. Quer dizer, os esposos amaram-se no começo e, no período seguinte, convivem baseados na razão. Cada um percebe o tédio do outro, mas entende ser razoável viverem juntos. Porém, quando o casamento chega a esse ponto, ele está caminhando para o divórcio. E divórcio, com a Revolução Industrial, é o hippismo e todas essas coisas que levam o homem a fugir das consequências da industrialização.
Os que percorrem o deserto da Revolução Industrial, depois de algum tempo ficam no estado de querer pular fora dela.
Tenho a impressão de que os lançadores da Revolução Industrial previram tudo isso e conheciam muito bem a que consequências isso levaria. Mas calcularam a coisa de propósito, de maneira que, em determinado momento, o homem fizesse o processo contrário. Não é, portanto, uma volta para a Idade Média, mas o processo contra um impulso que o tinha levado para onde ele não queria.
Por exemplo, a Medicina é a arte de curar e nunca foi levada tão longe quanto hoje em dia; entretanto, o número de doenças e de doentes vai se multiplicando à medida que se aumentam os recursos médicos. Se considerarmos apenas as infecções hospitalares, é uma coisa bárbara!
Há, às vezes, monumentos ou prédios que nos trazem ainda presente à memória a atmosfera meio ilusória dessas coisas. O prédio da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo, por exemplo, é de um estilo-caricatura de um gótico inglês expirante, com gramados enormes, plantados com a esperança de serem atraentes, agradáveis. Passa-se em frente, um isolamento! E aquilo tudo ironicamente colocado diante do Cemitério do Araçá. De maneira que o caminho é curto, basta atravessar a rua…
O demônio não quer acabar com o mundo, mas fazê-lo piorar cada vez mais
Tudo isso vai criando a impressão do fracasso da civilização, onde a semelhança de situações internas provocadas por esse fracasso é ainda mais cruel. Por exemplo, a impossibilidade, pela multiplicação dos crimes, de manter um sistema carcerário que contenha todos os prisioneiros.
Quando a civilização entra em uma determinada rampa, todas as coisas se azedam umas às outras. A sociedade, então, vai água abaixo, e as pessoas recorrem a pajés, orixás e coisas do gênero, para ver se resolvem a questão. É o que está acontecendo. Nenhum de nós tem certeza de que nunca uma pessoa é beneficiada em magias ou macumbas. Porque o demônio pode intervir a favor da pessoa. Imaginem um sujeito que não tem Fé e quer, recorrendo a uma macumba, sair-se de uma situação. Por exemplo, assinou uma letra de câmbio, um cheque sem fundos, e tem um mês diante de si. Há ao lado de sua casa um terreiro de macumba; ele entra ou não para ver se cava uma solução para o caso? Não há dúvida!
É uma espécie de desagregação final preparatória de uma outra ordem de coisas que não adivinhamos. Porque nós não sabemos a que conduz, de fato, este mundo cibernético, computadorizado. Só temos ciência de uma coisa: estamos sendo levados para lá.
Nós deveríamos considerar, pois, duas grandes questões: Existe um ponto terminal? Se existe, o que o demônio pode querer como ponto terminal?
Em face dessas perguntas, podemos imaginar as alternativas diante das quais o demônio fica colocado. Haverá um determinado momento da História da humanidade em que ele considere de seu interesse acabar com o mundo? Ou, quiçá, ele faça o seguinte cálculo:
É tal a natureza divina, que se ele, demônio, não acabar com o mundo, Deus não dará fim ao mundo antes do dia marcado. E com a humanidade se multiplicando indefinidamente, ele pode aumentar muito mais o número de precitos, por supor que o Criador está meio amarrado na lógica de seu próprio procedimento. O demônio sabe que Deus tem poder para criar pessoas boas, dar-lhes graças e encerrar esse ciclo de pecado, mas a conjunção da justiça com a misericórdia d’Ele leva-O a, indefinidamente, estar criando gente que vai se perdendo. Assim, concluiria satanás, enquanto o Todo-Poderoso quiser deixar-Se amarrar pela lógica de sua posição, ele vai levando a melhor. Por isso, não quer acabar com o mundo, mas fazê-lo piorar cada vez mais.
Na medida em que os homens progridem no mal, eles se destroem a si próprios
O demônio sabe que Deus profetizou – e, portanto, fará – que o fim do mundo se dará em determinadas condições. Porém, fica na dúvida sobre se essa profecia é polivalente e se aplica a situações que vão se repetir várias vezes na História. E se, portanto, pode-se deixar passar a situação número um, dois, cinco, oitenta, sem acabar o mundo. Uma coisa o demônio não quer: a realização dos planos de Deus. Ele desejará antecipar o fim do mundo, ou preservá-lo indefinidamente para não realizar os desígnios divinos?
Haveria outras perguntas para formular: Dada a natureza do pecado do homem, existe uma situação pior, um pecado-auge na ordem do possível, para a qual o demônio possa arrastar a humanidade? Convém a ele arrastá-la até lá ou, fazendo isso, provocará a Deus demais e Ele acaba com o mundo? Se a intenção dele é fazer com que o mundo dure muito, vale a pena provocar esse auge de pecado?
De outro lado, o demônio vê que o mundo vai acabar, porque Deus está resolvido; e ele se pergunta se, em determinado momento, não vale a pena acelerar uma situação que chegue até o auge do pecado antes do fim do mundo.
No que consiste esse auge de pecado e como se arrasta o homem até lá? Mais concretamente, diante do problema das civilizações, para prejuízo da humanidade e dos planos divinos, o que é preferível: que o homem conheça no seu roteiro alternativas entre a civilização mais requintada e a boçalização indígena mais terrível, ou é melhor que o homem afunde definitivamente em um desses dois extremos? Ou seja, que ele se torne um animal ou um demiurgo? Ou existe a possibilidade de somar a condição de animal com a de demiurgo?
Estas perguntas se repetiriam, depois, com relação à Igreja. A situação para qual a Esposa de Cristo está caminhando é a pior possível ou haveria um estado ainda pior?
Não tenho respostas a estas perguntas. Eu sei, quando muito, formulá-las.
O que me deixa muito cauto a este respeito é considerar que o mal tem certas condições de se destruir a si próprio, mesmo contra a vontade de seus agentes. Por causa disso, na medida em que estes progridam no mal, eles se destroem a si próprios. Quando o câncer termina sua obra no organismo, ele morre junto com o corpo.
(Extraído de conferência de 1/10/1986)