Partindo da análise da tourada, Dr. Plinio tece comentários sobre a virtude da audácia, cujo reluzir contínuo só é possível quando o homem vive à sombra do sacrifício, pois a partir do momento em que o Homem-Deus entregou seu espírito no alto do Calvário, um aroma sacrifical embalsamou todo o universo. Da Cruz nasceu tudo quanto houve de sublime e belo na humanidade, e dela surgirão os esplendores do Reino de Maria.
Ao pensarmos no Reino de Maria, nós devemos imaginar as almas sob o constante influxo do Espírito Santo – do Qual Nossa Senhora é Esposa – e, portanto, continuamente à procura do ápice de todas as coisas, mesmo das mais modestas. Dessa impostação resultará um acúmulo de perfeições insondável, porque qualquer pequeno ato da vida humana pode comportar um grau de perfeição do qual não se tem ideia.
Um exemplo que me ocorre a esmo é a tourada, que acaba sendo uma obra-prima do espírito espanhol.
Na tourada, a alegria do risco
Quando consideramos o toureiro espanhol, notamos o seguinte estado de espírito: ao fazer a tourada, ele deve ser imaginado alegre e correndo o risco com uma certa euforia. Se não houver euforia no enfrentar o risco, não é um verdadeiro toureiro. Não tem nada da alegria hollywoodiana, nem de algo que se lhe pareça. Basta dizer que é a alegria do risco, enquanto a hollywoodiana é securitária.
Trata-se de um júbilo autêntico, que resulta desta circunstância: o toureiro espera o touro que avança contra ele, naquele passe – para mim é o mais bonito de todos – em que está com a espada no alto, pronto para cravá-la no ponto acertado do animal.
O bom toureiro aguarda o touro na posse tranquila de suas faculdades, percebendo em si toda a possibilidade de matá-lo, dependendo de uma agilidade e de uma destreza que sabe possuir. Ele está cônscio de que para fazer isso precisa ter um ato de vontade firme e certa ascese, de maneira a não perder a cabeça e dar o golpe como deve. Mas o toureiro se sente dono dessa ascese e dessa força de vontade. Por esse motivo, compreende o risco e tem a euforia da sua própria posição. É uma alegria sui generis que o risco dá, o gáudio do heroísmo de quem sabe que vai vencer. O touro cai, o toureiro tira o barrete e cumprimenta o auditório que o aplaude de pé.
O resto é triunfo, porém já não é a hora H, na qual o touro avançou em cima dele e ele conservou inteiro domínio de si, hauriu o néctar da sua própria perfeição e venceu. O aplauso popular, ao contrário do que se pensa, não constitui o néctar, mas o seu complemento. O auge é o momento em que, na presença de Deus, o toureiro teve aquela performance.
Para o espírito hollywoodiano o auge é a hora em que ele está sendo ovacionado. De maneira que, se ele conseguisse os aplausos por meio de uma fraude, seria o mesmo do que conquistá-los por meio da posse autêntica de qualidades. Ora, isso não é assim! A fraude nunca dá à pessoa uma verdadeira alegria.
Poder-se-ia objetar: “Não, o que ele visou foi o aplauso.”
Ele não visou o aplauso, e sim a hora em que, no perigo supremo e desprovido de qualquer outro recurso a não ser a espada e o braço, ele soube reconhecer que era capaz daquilo e fez.
Audácia: o pulchrum do espírito espanhol
Entram nisso fatores psicológicos diversos. O toureiro aplica nessa hora muita força, mas feita de flexibilidade e resultante de uma musculatura muito elástica. Entra também a calma diante do perigo da morte, que lhe faz dizer: “Se eu morrer, morrerei realizando-me e a minha vida terá sentido.”
Há uma ideia de que o toureiro imerge numa espécie de estética da morte, e a terá belíssima, o que absolutamente não é a morte na UTI, não tem nada de comum com isso. Ele morrerá nesse gáudio, a bem dizer, realizando-se. E, mais ainda, achando que sua realização está em estender para Deus um braço por cima da morte, dizendo: “Senhor, tomai-me, porque minha hora chegou.” O que talvez o toureiro não faça explicitamente, por falta de formação religiosa, mas constitui o pressuposto racional do ato dele.
Vemos, então, um elevado senso religioso que passa por cima do instinto de conservação, aliado a uma junção de qualidades opostas – embora não contraditórias – das quais o toureiro tira uma linda síntese: ele se apresenta duro como o aço, mas flexível como um elástico. Em consequência, na hora de o touro chegar, sem o mínimo medo ele sorve o perigo e diz: “Perigo, como tu és belo! Como és delicioso!”
Aparece aqui um aspecto para o qual eu quero chamar a atenção, pois constitui o ponto-chave da mentalidade espanhola. Quer quando o espanhol é muito diplomata e dá jeitos e volteretas para conseguir um determinado objetivo; quer quando ele é muito arguto em matéria de doutrina e lança com segurança uma tese difícil de justificar e que ninguém imaginava, semelhante a um salto certeiro sobre o abismo ou a um voo audacioso no céu da ortodoxia; quer quando ele é orador e se expõe a lances oratórios arrojadíssimos; em tudo, o risco é o ambiente dele e a elegância no risco, nascida da contradição aparente entre elasticidade e força, o exprime por inteiro.
O reluzir contínuo da audácia equilibrada, da audácia de aço e de elástico, da audácia que sabe ter ousadias proporcionadas com o perigo, porque tem consciência de possuir recursos proporcionados com ele, da audácia quase imprudente, cuja sublimidade consiste em, sem jamais ser imprudente, vertiginosamente parecer-se com a imprudência, esse é o pulchrum do espírito espanhol.
Como imaginar o pulchrum do Reino de Maria?
Ora, de modo análogo há um certo pulchrum que marcará o Reino de Maria. Trata-se de uma virtude magnífica, diametralmente contrária à “heresia branca”1 e que, vista pelo prisma religioso, poderia chegar a extremos de perfeição ainda ignorados.
Sendo uma virtude, essa forma de pulchrum tem de existir em Nossa Senhora de um modo inimaginável. A Santíssima Virgem deve possuir, no meio do firmamento de suas virtudes, uma nota dominante que está para as demais excelências d’Ela como a audácia está para a Espanha.
O Reino de Maria se caracterizará por essa nota altíssima, fabulosíssima de Nossa Senhora. Trata-se, portanto, de conhecer tal virtude n’Ela, para saber como será o Reino de Maria.
Para chegar a esse ponto, um recurso interessante é lembrarmos que a Revolução, com todos os seus horrores, tem algo disso: há um certo horror que excede em baixeza os demais e constitui o aspecto pelo qual ela mais atrai, o “visgo” dela mais se exerce. E aí se encontra a causa da vitória dela. Se nós compreendermos esse aspecto na Revolução, teremos dado um passo importante para saber, por antítese, dizer como isso se verifica em Nossa Senhora, porque a Revolução é o contrário d’Ela.
Eu imagino o revolucionário perfeito mais facilmente realizado – trata-se de uma facilidade de imaginação, não quer dizer que tenha sido historicamente assim – por um arquétipo da Revolução Francesa. Eu o concebo como um indivíduo exuberante de vitalidade e sensual, mas no qual o pecado de espírito transbordou o pecado da carne. O que ele mais odeia não é o rei ou o nobre, e sim uma certa visualização do nobre enquanto transcendente, puro, piedoso, combativo, limpo, ornado, digno em todas as suas maneiras, agilíssimo em seu espírito e como que vivendo num mundo empíreo, que seria o mundo atual, porém visto através de um vidro de cor especial chamado nobreza, que eleva e repõe o homem numa atmosfera paradisíaca, na qual ele está pronto a qualquer momento para saltar o abismo do risco.
O revolucionário odeia essa manifestação e esse modo de ser ao último ponto. E, ao ver que isso é assim, tem vontade de escarnecer, não com desaforo leve, mas com injúria grossa, que desfigura, joga ao chão, suja, ultraja e depois liquida.
Agora, imaginem o contrário disso, refulgindo na alma mais eleita que houve entre as meras criaturas, que foi Nossa Senhora, e expresso de um modo inimaginável. Então podemos compreender o que será a felicidade do Reino de Maria, e também a felicidade do Céu.
Há aí uma intensidade do ser que nos deixa meio pasmos. No fundo, a nossa felicidade consiste em procurar as coisas que têm essa intensidade, e não o prazerzinho, a “brincadeirota”, o repouso numa cadeira espreguiçadeira à beira-mar. Em última análise, é algo que lembra a Deus, o ser Absoluto, a Quem nós procuramos miseravelmente extraviados e aflitos quando não sabemos o que buscamos. E o Reino de Maria terá isso por inteiro.
A beleza suprema tem origem na Cruz
Vamos chegar de uma vez ao fundo da questão. Posto que Nosso Senhor Jesus Cristo Se imolou por nós e morreu na Cruz, uma nota sacrifical predomina na atual vida, conferindo maior nobreza até ao sorriso. Esse aroma sacrifical que embalsamou todo o Universo a partir do momento em que o Redentor disse “Consummatum est” e entregou seu espírito, marca inclusive a Ele. Mesmo nos quadros e esculturas em que Nosso Senhor é representado triunfante, Ele aparece com os estigmas e o flanco aberto; correu o Sangue, houve a tragédia. E o esplendor da glória só se explica em função da tragédia.
Portanto, no centro de tudo está presente uma nota sacrifical, superior a todos os horrores da Revolução. E aqui vemos a beleza de tudo quanto eu disse. Essa beleza é um mistério, no qual há uma seriedade, uma gravidade e uma participação em Deus inigualáveis. Minhas palavras são incompreensíveis sem esse amor à Cruz e esse perfume de sacrifício. A vida de cada um de nós é um holocausto, do qual temos de ser vítimas. Para haver tudo quanto comentei, faz-se necessário aceitar esse holocausto, não tem remédio.
Entretanto, o homem foge dessa nota de sacrifício o quanto pode, por não querer viver à sombra dela. Ora, pensemos um pouco no papel que a Cruz tem na espiritualidade de São Luís Maria Grignion de Montfort, a ponto de ele escrever a Carta Circular aos amigos da Cruz, e compreenderemos como devemos ser.
Quer dizer, o sofrimento não desfigura, não enfeia, não atrasa; pelo contrário, dele vem tudo quanto há de verdadeiramente belo e ordenado na humanidade. E procurar ver essas gotas do Sangue de Cristo faz parte da piedade católica mais genuína.
A jaculatória “Sanguis Christi, inebria me” exprime exatamente isso. A ebriedade do Sangue de Cristo faz contemplar a beleza da dor presente em todas as coisas.
(Extraído de conferências de 14 e 19/2/1986)
1) Expressão metafórica criada por Dr. Plinio para designar a mentalidade sentimental que se manifesta na piedade, na cultura, na arte, etc. As pessoas por ela afetadas tornam-se moles, medíocres e pouco propensas à fortaleza, assim como a tudo quanto signifique esplendor.