A vida reserva, cedo ou tarde, amarguras e decepções, inclusive aos homens que na aparência têm mais êxito. Se alguém quisesse inventar uma doutrina perfeita para sofrer o menos possível nesta vida, conceberia a Religião Católica, porque só ela dá a visão elevada para se compreender a cruz, bem como o equilíbrio de alma e o amor de Deus para carregá-la.
Comentaremos alguns trechos da Carta Circular aos Amigos da Cruz, de São Luís Maria Grignion de Montfort.
Não se vive sem combates neste lugar de tentação
[33] Mas, enfim, se não quereis sofrer pacientemente e como os predestinados, carregar com resignação a vossa cruz, levá-la-eis com murmurações e impaciência como os réprobos. Sereis semelhantes aos que arrastavam gemendo a Arca da Aliança. Imitareis Simão de Cirene que pôs de má vontade a mão na Cruz de Jesus Cristo, e que murmurava enquanto A levava. Acontecer-vos-á finalmente o que aconteceu ao mau ladrão, que do alto de sua cruz caiu no fundo do abismo.
Não, não, esta terra maldita em que vivemos não torna ninguém bem-aventurado; não se vê bem neste país de trevas; nunca se está em perfeita tranquilidade neste mar tempestuoso; nunca se vive sem combates neste lugar de tentação e neste campo de batalhas; nunca se vive sem pontadas nesta terra coberta de espinhos. É preciso que os predestinados e os réprobos levem a sua cruz, quer seja de boa ou de má vontade. Guardai estes quatro versos:
Escolhe uma só cruz, das que vês no Calvário.
Bem saibas escolher, porquanto é necessário
Que sofras como santo, ou como penitente,
Ou como condenado, eterno descontente!
Uma filosofia mundana
Mundano é aquele que tem a ilusão de que pode encontrar felicidade neste mundo, e corre atrás dela. Essas duas coisas são conexas, porque quem tem a tontice de pensar que pode encontrar felicidade nesta Terra é bastante tolo para correr atrás dela. Quem, pelo contrário, tem sabedoria é bastante criterioso para compreender que neste mundo não há felicidade perfeita e, naturalmente, não corre atrás dela.
O grande erro neste assunto, que sobretudo existe em nossa época, é achar que neste mundo se encontra aquilo que o homem apetece como felicidade. Desde quando éramos pequenos, em nossos primeiros reflexos vinha incutido esse erro, ou seja, a ideia de que o homem infeliz é aquele que sente coisas desagradáveis na sua alma e no seu corpo, e feliz o que experimenta coisas agradáveis. Então, se um indivíduo consegue nesta vida uma sucessão dessas coisas, ele é feliz; se não consegue, é infeliz, pois a privação delas constitui um elemento de infelicidade. Mas se, além disso, ele sofre coisas positivamente desagradáveis, então é um desgraçado, um desventurado.
Há uma filosofia mundana que se segue a isso, porque se esses pressupostos são tidos como verdadeiros, a única razão de ser da vida é obter os prazeres. E o dever é uma espécie de tributo que se paga para ter determinados deleites.
Por exemplo, um rapaz que estuda pintura dá-se ao trabalho para ser um bom pintor, ou porque lhe é agradável, ou porque, embora o ofício lhe desgoste em alguns aspectos, ele está disposto a aceitar o desagradável para conseguir, no final, coisas aprazíveis: uma medalha de ouro, brilhar numa exposição, ser considerado como um bom pintor, etc. Mas tudo não passa de uma caça ao prazer.
Se isso é verdade, quem tenha um critério de moralidade que não seja o prazer é um bobo, e o criterioso corre atrás do deleite. Mas se esta concepção, por sua vez, é verdadeira, o homem que consegue as coisas reputadas como causadoras de prazer é respeitável; e aquele que não as obtém é um fracassado, um cretino. Vemos, assim, como tudo isso redunda numa filosofia errônea segundo a qual quem conseguiu êxito tem valor, quem não o conseguiu não vale nada.
É uma coisa curiosa como isso está muito em nossos ambientes, impregna as vivências, ainda mesmo quando as pessoas teoricamente o rejeitam, gerando verdadeiros complexos naqueles que têm vergonha de se apresentar diante de outros porque não obtiveram algum sucesso segundo o critério dessa filosofia. Se conseguissem um êxito, então se manifestariam com o rosto ao Sol, à luz do dia.
Para todo mundo a vida reserva as decepções mais uivantes
Isso, afinal de contas, se reduz a naturalismos e mundanismos. É raciocinar a respeito desta vida, em primeiro lugar, vendo-a como ela não é. E, em segundo lugar, tomando-a como se a Religião Católica não fosse verdadeira.
Vendo a vida como ela não é porque só um verdadeiro tolo não compreende que a existência reserva, mais cedo ou mais tarde, as coisas mais amargas e as decepções mais uivantes para todo mundo, sem nenhuma exceção, inclusive àqueles que na aparência tiveram mais êxito.
Eu não encontrei um só homem que, tendo chegado aos cinquenta anos de idade, olhando para a sua vida, por mais bem-sucedido que ele fosse, não lhe parecesse uma batalha tremenda; tão tremenda que já começava a ver a morte no fim do caminho, e a se fazer a pergunta sobre se valia a pena ter vivido. A indagação que se pode pôr a uma pessoa assim é a seguinte:
— Você gostaria de nascer de novo e passar por tudo quanto passou?
A resposta de alguns é:
— Não, de nenhum modo!
De outros:
— Não sei. Quer dizer, eu talvez prefira me atirar nos abismos tenebrosos da morte, a refazer tudo aquilo que em tese o outro pensa ter sido uma vida de prazeres.
Esse é um mito errado com que se educam as pessoas das elites da sociedade, e a ele se devem os seus insucessos crônicos. A Revolução, querendo liquidar uma classe social, coloca isso na cabeça de seus componentes e está tudo perdido. Aliás, todos os países decaem quando a classe dirigente está com esse estado de espírito e o comunica às camadas inferiores.
À medida que esse senso da vida vai se espalhando como uma mancha de azeite, a podridão vai acompanhando-a. E quando chega às últimas classes sociais, o país se desfaz. Não há quem resista a uma quimera dessas.
Observando casais de noivos na Igreja do Sagrado Coração de Jesus
De maneira que, embora seja uma coisa muito sabida, por mais que se repita é difícil tirar isso do subconsciente das pessoas. Um indivíduo ouve essa explicação e diz:
— Ah, é verdade, é claro, mas percebo que eu teria um jeitinho pelo qual seria feliz.
Pergunta-se a ele:
— Qual é o jeitinho?
Resposta:
— Dê-me tal coisa e eu me sentiria feliz.
O sujeito a recebe, mas não fica feliz e diz:
— Tenho tudo quanto gosto, só não possuo fortuna. Se eu a tivesse, ficaria feliz.
Raciocínio claro como a luz do fogo, porém ao mesmo tempo tonto como é a tontice, porque exatamente a frustração está naquilo que o indivíduo mais quer e que, conseguindo-o, tem a ilusão de ter alcançado a felicidade. O duro é que realmente, para cada um de nós, há algo cuja obtenção, na aparência, deixaria feliz. Mas a estrutura do espírito humano e o conteúdo dos bens terrenos são tais que ali está a ilusão. Ou o indivíduo obtém ou não obtém. Se não obtém, fica amargurado; se obtém, ele vai pegar, e aquilo se torna amargo.
Tenho prestado atenção, na Igreja do Coração de Jesus, nos casais quando descem do altar após o Matrimônio e noto que, em geral, são uniões baseadas no conceito corrente de amor. Olha-se para a cara deles e percebe-se já estarem completamente desiludidos um do outro. Aquele casamento é feito meio maquinalmente porque foi tratado, e se não fosse realizado seria pior. A moça acha: “Afinal de contas, não me casarei com outro se não casar com este sujeito que está aqui.” Ele pensa: “Já estou tão comprometido com ela; das que eu gostei, é aquela de que gostei mais. Então aceito.”
É até interessante ler a fisionomia da moça quando ingressa na igreja e quando sai. Ela entra de braços com o pai, com uma expressão de esperança e pensando na cena que vai se passar: “Eu agora vou me casar!” E sai de braços com o marido, com um semblante de quem acha que o casamento foi em prejuízo dela.
Outro dia eu me encontrava no automóvel em frente à igreja quando entrou um casal de nubentes. Ele não virou a cabeça para olhar para ela, nem ela para ele. A noiva estava exclusiva e nervosamente preocupada com as dobras do véu, e com esta ideia: “Essa porcaria de véu tem tanta dobra e dá tanto trabalho, que não me sinto bem enquanto estiver com ele. Quando é que me verei livre dessa porqueira?” O noivo, por sua vez, olhava para a praça, onde estava acontecendo alguma coisa que lhe interessava.
Uma ilusão que precisa ser dragada periodicamente
Todas as coisas nessa vida são assim, não só o casamento. Aqui está exatamente a ilusão dos mundanos. Eles pensam que têm muitas coisas, mas na realidade não possuem absolutamente nada.
Por exemplo, o homem que fez carreira e chegou ao ápice dela. A parte da família que não progrediu olha para ele como um cachorrinho ao qual se vai dar alguma coisa e faz um aceno com as patinhas. Mas o coitado que se encontra lá em cima está se fritando. Digamos que ele seja senador. Para ele seria pior não ter esse cargo, mas ocupá-lo causa-lhe uma frustração enorme, contínua.
Podemos ter bem a ideia do que essa frustração representa considerando o que se refere à saúde. Vai-se a um hospital e, em geral, os doentes olham pela janela e pensam: “Oh, se fôssemos aquele moço forte que se encontra lá! Olhem como ele está bem vestido, deitando saúde, andando a pé em redor do hospital, que delícia!”
Pergunte-se para o jovem se a saúde está resolvendo os problemas dele. Ele dirá: “Se tivesse como único fardo um fígado que funciona mal, eu trocaria minha ‘saúde’ com uma porção de coisas, porque isso me aborrece e atormenta.” Quer dizer, tudo é assim. E o maior engano para uma pessoa é fazer-se uma ideia falsa a respeito dessas coisas.
Certos portos em que não se está continuamente dragando o depósito da areia, esta vai se acumulando em montículos e, dentro de algum tempo, eles ficam obstruídos. Assim, essa ilusão precisa ser dragada periodicamente. Porque é só deixar de pensar neste assunto que imediatamente nas vivências se estabelece o contrário. Neste ponto, o homem é de uma pertinácia incalculável e por isso estou insistindo. A dificuldade do tema está exatamente nisto: Quando se fala sobre ele é considerado banal. Se não se fala é esquecido. De maneira que a pessoa zelosa por manter a verdade a esse respeito fica sem saída. Ou ela está continuamente insistindo e se torna cacete, ou nunca trata da questão e se restabelece no fundo das almas um banco de areia, em que todas as boas resoluções desatam e em seguida não há senão naufrágio.
Quem não quiser sofrer como Nosso Senhor padecerá como demônio
Quer isso dizer que se não quiserdes sofrer com alegria como Jesus Cristo…
O que São Luís Grignion deduz é o seguinte: não adianta querer fugir da cruz, pois a pessoa irá carregar outra cruz, resmungando. E o que não se sofre como um fiel de Nosso Senhor Jesus Cristo, sofre-se como um demônio.
Há certo gênero de gente que sabe que a vida é esse horror sobre o qual estou falando. Mas daí tira uma conclusão péssima: “Esta vida não devia ser esse horror. É errado que o seja, eu me revolto e por causa disso vou viver amargurado.”
O escocês, o holandês e o francês calvinistas têm exatamente esse espírito. Se alguém quiser contraditá-los, replicarão: “Não adianta me dizer que há tal ou tal prazer, porque eu não condescendo nem sequer em sorrir para esses deleites. Isto aqui de fato é frustrado, mas não deveria ser e eu me irrito.”
Naquelas carinhas de serpentes percebem-se muitas anomalias morais. O horror que existe dentro daqueles indivíduos é incrível. Não tiveram senão prazeres, mas sofrem como demônios porque não quiseram padecer como Nosso Senhor. Esta é a realidade.
[34] Se ao contrário, porém, sofreis como deveis, a cruz se tornará um jugo suavíssimo que Jesus Cristo carregará convosco. Tornar-se-á as duas asas da alma que a levam para o Céu; tornar-se-á o mastro do navio que vos fará chegar ao porto da salvação feliz e facilmente.
Nota-se isso na vida de qualquer bem-aventurado, Santa Teresinha, por exemplo. Quando a cruz veio ao seu encontro, ela teve uma golfada e ficou tão contente que precisou fazer uma mortificação para não ver se era ou não hemoptise. E caminhou para a morte, no meio de mil provações, mas alegre. Isso foi assim com todos os Santos. Quer dizer, eles de fato levaram uma vida mais feliz porque carregaram com amor a cruz.
A alegria da cruz
Levai vossa cruz com paciência, e por esta cruz bem levada sereis iluminados em vossas trevas espirituais, pois o que não sofre pela tentação nada sabe.
Este princípio é fecundíssimo. O sofrimento é a coisa que mais aumenta a inteligência do homem. E o pior dos sofrimentos, para a alma que não se entrega ao pecado, é ser tentada. De maneira que o ser tentado é um ápice do sofrimento, e que dá uma ciência da vida, à la longue pelo menos, que as outras almas não possuem. Feliz, neste sentido, é a alma tentada. Ela é como uma fruta que fica exposta a um Sol causticante quando ainda é verde, mas que com isso matura mais depressa e fica mais saborosa. Assim é a alma que sofre.
Levai vossa cruz com alegria e sereis abrasados pelo amor divino, porque ninguém pode viver sem dor no puro amor do Salvador. Só se colhem rosas entre espinhos. Só a cruz alimenta o amor de Deus, como a madeira alimenta o fogo.
A alegria da cruz é um assunto que mereceria ser explanado.
Para a pessoa ser capaz dessa alegria é preciso que ela tenha essa temperança primeira, pela qual compreende que há uma forma de felicidade em não estar gozando nada, embora não sofra também. Ela vive normalmente como todo mundo, sem grandes alegrias, grandes prazeres, grandes emoções, e deve dizer-se feliz. A procura da grande emoção como condição da felicidade é uma das mais graves fontes de toda espécie de infelicidade.
Poder-se-ia mesmo dizer o seguinte: se uma pessoa tivesse continuamente grandes felicidades, emocionantes e sensacionais, ela gastaria de tal maneira o seu sistema nervoso, todo o mecanismo de suas apetências, que se tornaria completamente inútil. Ter continuamente emoções com coisas novas é um vício, uma forma de intemperança, e com a esta vem a infelicidade.
A felicidade é a da alma temperante que, por exemplo, passa um dia de domingo assim: teve uma noite normal, acorda de manhã e lê o seu jornal ou toma o carro e faz um passeio, volta para casa e reza suas orações; à noite, janta, passeia mais um pouco, reza e dorme. Essa pessoa levou um bom domingo que satisfaz inteiramente. Ela não precisa a todo momento estar com alguma coisa para lhe mover a sensibilidade. Esse estado de espírito de uma vida regrada e comum, sem grandes sensações, é um pressuposto para encontrar a verdadeira felicidade.
Holocausto de amor desinteressado
Quando a pessoa compreende o valor dessas coisas, ela também entende que algumas cruzes lhe caiam sobre os ombros, desde que não tolham completamente isso, pois são cruzes que ainda conservam a vida suportável. E uma pessoa não tem o direito de se dizer infeliz quando leva uma vida assim.
O verdadeiro infeliz é aquele que tem uma existência insuportável. Quem leva uma vida tolerável, para as condições deste vale de lágrimas, é uma pessoa feliz, não precisa mais nada. Por causa disto a primeira coragem para carregar a cruz provém exatamente dessa temperança: a cruz não torna insuportável a vida.
Entretanto, há momentos – às vezes são fases, anos – em que a cruz se torna como que insuportável. Então, intervém outra tabela de valores muito mais alta: a sobrenatural. A pessoa pensa: “É verdade, é duríssimo, mas em rigor eu posso aguentar isso. Então vou suportar por mais que sofra. Por quê? Porque Deus permitiu. E São Luís Grignion indicou um princípio magnífico: Deus é um pedreiro perfeito, um lapidador incomparável. Ele nunca toca na pedra a não ser com uma sabedoria enorme, e nunca permite para mim um sofrimento a não ser por uma razão muito profunda. Portanto, esse sofrimento, a algum título ainda que eu não perceba qual seja, faz bem à minha alma. Vou recebê-lo com paciência, com resignação por causa dos bens do Céu que desejo, do Purgatório que abrevio e do Inferno que evito.”
Mais feliz é a alma que se eleva a uma condição superior e diz: “E também para salvar outras almas.” Muito mais feliz ainda quando ela pode afirmar: “Meu Deus, sou escravo vosso; fazei, Senhor, de vosso pobre escravo aquilo que entendeis. Eu me ponho nas vossas mãos. Se Vós quereis isso de mim, eu também quero, por mais que me doa. Morro por Vós nas vossas mãos com a alegria de ter realizado em mim aquilo que Vós queríeis.”
Este é um holocausto de amor desinteressado.
Dessa forma, o homem carrega com facilidade e alegria uma cruz, mesmo atrocíssima! Alegria quer dizer o seguinte: no fundo da alma ele aceita aquilo, acha que tem conta, peso e medida, e, portanto, morre em paz, por mais que a situação seja dura. Essa é a cruz.
Se um indivíduo quisesse inventar uma doutrina perfeita para fazê-lo sofrer o menos possível nesta vida, ele inventaria a Religião Católica porque, praticando-a, o sofrimento se torna mais suportável e, portanto, minora mais a cruz.
Diz-se que a Religião Católica é a Religião da cruz. Isto é mil vezes verdade, com esta ressalva: Ela é a Religião da cruz porque dá a visão elevada para se compreender a cruz, bem como o equilíbrio de alma e o amor de Deus para carregá-la. Nas outras religiões o sofrimento é mil vezes pior, não tem comparação.
Assim, fica comprovada a verdade daquele princípio: “Pela cruz se chega à luz.” De fato, só almas assim carregam a cruz e chegam até a luz.
(Extraído de conferência de 7/10/1967)