sábado, septiembre 21, 2024

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A formação do autêntico paulista – I

Uma das operações mais sutis e detestáveis executadas pela Revolução consiste em tirar do indivíduo a consciência de sua identidade, tão presente no élan primeiro da inocência, fazendo-o procurar ser aquilo para o que não foi chamado.

Para entender bem o ambiente no qual eu me situava e que explica a formação do meu espírito, é preciso afastar alguns prismas, certos pontos de vista errados a respeito de São Paulo.

Fidelidade à imagem primeira mostrada pela inocência

Quando a Revolução atua em determinado meio, uma das operações mais sutis e detestáveis executadas por ela consiste em tirar-lhe a consciência do que ele é, fazendo com que ele queira ser algo que não é, para o qual não foi feito e no qual será uma caricatura.

A Revolução também faz isso com os indivíduos, segundo sua vocação, sua luz primordial1, as graças batismais recebidas. Em tudo quanto Nossa Senhora quer desenvolver em um homem, segundo a realização de um desígnio d’Ela, a Revolução entra e lhe tira a noção de sua identidade com esse plano da Providência e da correspondência ao élan primeiro de sua inocência.

Ele não compreende que o élan de sua inocência é como um jato de luz que atravessa o futuro, bate na parede final da morte e ali lança a figura de sua pessoa, levada a todas as suas dimensões e à sua plena realização.

De maneira que uma pessoa na sua infância, imaginando como deveria ser o momento no qual Deus a colherá para galardoá-la, justa e muito misericordiosamente, por aquilo que fez na vida, tivesse um estremecimento de toda sua alma e dissesse: “Aquela sou eu, assim devo ser!” É a figura da santidade total para a qual cada um de nós, em medidas diferentes, é chamado.

Isso a Revolução extirpa de nossa cabeça e nós descarrilhamos. Vamos procurar outras figuras que não são as nossas e daí por diante tudo é artificialidade, catástrofe, ansiedade, vaidade, aflição de espírito, derrocada e zero!

É isso que se trata de evitar quando compreendemos que um indivíduo tem uma trajetória para percorrer. E a condição de acertar no ponto final da caminhada é ser fiel à imagem primeira que a inocência dá de si e à graça, bem como ao ensino integral da Religião. A pessoa forma uma ideia, um esboço: “Assim eu devo ser, assim serei”, e acerta.

Isso que se dá em escala muito menor em um indivíduo, dá-se também tanto com uma cidade quanto com um estado, um país.

Arnaud Julien Pallière (CC3.0)
Entrada Leste de São Paulo em 1821

Analogia entre o gomo e a laranja inteira

A cidade de São Paulo perdeu, por causa da Revolução, a noção do que deveria ser. Não propriamente a cidade, mas os paulistas de minha idade e os mais moços, na faixa entre os 35 e 75 anos. E quando se lhes diz o que São Paulo começara a ser e deveria ter sido, negam porque não era o que eles queriam.

Então, precisamos estar prevenidos quanto a isso para compreender bem – ao menos segundo o meu depoimento pessoal – qual era a São Paulo verdadeira, a São Paulo da Contra-Revolução.

Para entendermos isso, temos que nos colocar não diante de uma comparação entre São Paulo estado ou cidade – formam de algum modo uma coisa só – de um lado, e algum país europeu ou a América do Norte. Comparação mal feita, porque São Paulo não é um todo, mas parte de um todo chamado Brasil, e a parte de um todo não se compara com outro todo.

Tenho possibilidade de estabelecer certas analogias, mas não vou tomar o gomo de uma laranja e compará-lo com uma laranja inteira; são heterogêneos e não comportam cotejo. Posso comparar laranja com laranja, mas não um gomo com toda uma laranja.

J.P.Ramos
Profetas do Aleijadinho – Congonhas do Campo, Minas Gerais

Pelo regime federativo, em boa hora introduzido no Brasil, cada estado é um gomo de um todo. A estrutura desse regime é parecida com a de uma laranja e não com a de uma maçã, uma só massa. São Paulo é um gomo e não pode ser comparado com outro país, mas sim com o resto do Brasil. Faz parte do Brasil e é no contexto brasileiro que precisa ser visto.

Em todo o Brasil havia aspectos de Contra-Revolução

Há um outro erro de apreciação que tenho encontrado entre pessoas de minha idade e mais moças do que eu, ao analisar a cidade de São Paulo de outrora e não a de hoje. Mas esse erro persiste em nossos dias, quando se compara São Paulo com as principais capitais do mundo para se ver em que lugar ela se coloca.

A comparação pode se fazer porque são cidades. Mas uma coisa é uma capital e outra uma cidade comum. São Paulo é a capital de um estado, mas não de um país.

Nessas comparações os meus conterrâneos muitas vezes vacilam e fazem apreciações que, sem se darem bem exatamente conta, estão erradas. Por causa disso, em geral não levam suas reflexões até o fim. Falam pouco e aquilo fica pelo ar. Não há um pensamento definido que chegue às últimas conclusões.

De outro lado, a São Paulo da Contra-Revolução existiu no tempo em que havia uma Bahia, um Pernambuco, um Rio de Janeiro, um Paraná, um Rio Grande de Sul, uma Minas Gerais da Contra-Revolução. Não era privilégio de São Paulo. Realmente, se pensamos na coisa mais contrarrevolucionária que há no Brasil, os profetas do Aleijadinho…

Para fazermos a apreciação que parece interessar, deveríamos perguntar: se a Contra-Revolução tivesse vencido quarenta anos atrás na continuidade da tradição que ela trazia consigo, como seria o mundo, o Brasil dentro dele e São Paulo dentro do Brasil?

Em todas as cidades brasileiras, na América latina como na anglo-saxônica, na Europa latina, como na germânica, enfim, por toda parte deu-se o mesmo. Na complexidade dos acontecimentos, é preciso saber bem o que se fala para chegar a alguma conclusão. Do contrário, perde-se no caos.

Como se constituíam as famílias paulistas

Tendo isso bem situado a respeito de São Paulo, como seria o resto do Brasil contrarrevolucionário?

Nosso país é enorme, não posso percorrê-lo todo. Por isso, vou apresentar alguns dados muito sumários para que se compreenda essa São Paulo antiga. Tomarei para isso a síntese do paulista autêntico. O que era um paulista verdadeiro?

Não alcancei a época da formação do paulista autêntico, que se deu entre o tempo de meus avós e o de meus bisavós. O membro da cidade de São Paulo. O Brasil tinha recém escapado – e travessamente – das mãos de Portugal, e os habitantes corriam de um lado para outro em suas próprias vastidões. E São Paulo, capital de Província, era muito pequenina e as casas, as acomodações, os móveis, etc., diminutos.

No Museu do Ipiranga, vi uma maquete de São Paulo do tempo das muralhas de taipa e outra de cem anos depois, não muito maior. O centro residencial era o Centro velho de hoje, as famílias moravam nos andares superiores das residências e alugavam o térreo para lojas.

Por exemplo, meus bisavós residiam numa casa de propriedade deles, na esquina do Largo da Sé com a Rua XV de Novembro. O prédio possuía quatro pavimentos que, para aquele tempo, representava um arranha-céu. O térreo era alugado para comércio e, nos três andares de cima, a família morava. A catedral ficava em frente porque o Largo da Sé era pequenininho. Quando a minha bisavó estava doente e não podia descer e subir escadas, mandavam abrir a porta da catedral para que ela, do terraço de sua casa, assistisse à Missa. Todo mundo se conhecia, os amigos ou os inimigos.

 Mike Peel (CC3.0)
À esquerda, maquete de São Paulo em 1841 – Museu do Ipiranga, São Paulo. Acima, Dr. Plinio em abril de 1983

Arquivo Revista

A cidade estava cercada de sertão quase por todos os lados. Havia Mogi, Jundiaí; Campinas era longe e a viagem até lá era um pouco temerária. O resto… mato, onças, urutus, cascáveis e toda espécie de cobras e de bichos.

As famílias eram muito numerosas e tinham a preocupação de não decair de sua condição social. As principais famílias de São Paulo descendiam dos fundadores da localidade. E em todos os tempos se considerou que as estirpes fundadoras de uma povoação têm uma espécie de status de nobreza. E se compreende, porque o pai é nobre na casa de seus filhos.

Quando um irmão casado vai visitar outro é a visita de igual a igual. Se um pai visita um filho, é um pequeno soberano que chega. Essa é a boa ordem de uma vida de família. Por causa disso, a paternidade dessas linhagens sobre a cidade dava-lhes uma espécie de status nobiliárquico.

Tanto mais quanto, de vez em quando, pingava de Portugal para cá algum fidalgo que se casava com uma mulher dessas famílias. Então, essa aristocratização tão autêntica, que nascia da terra e era o fato histórico da fundação, juntava-se com a velha aristocracia tradicional e gloriosa de filhos mais moços de estirpes nobres de Portugal que vinham fazer fortuna aqui. Assim, formava-se um misto de aristocracia local orgânica e autêntica, reconhecida por lei e proclamada pelo rei.

Constituía-se uma miscelânea de elite local formada de sangue azul europeu, com um bom contingente de sangue índio e um pouco de sangue negro. Isso aumentava a nota local; não era uma cópia carbono de Portugal. O Brasil deveria ser um filho, não uma cópia. Era ele próprio se constituindo pelo jogo das circunstâncias históricas.

(Continua no próximo número)

(Extraído de conferência de 16/4/1983)

1) Luz primordial é o aspecto de Deus que cada alma deve refletir e contemplar, em função do qual precisa ordenar toda a sua existência, a sua vocação pessoal.

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