sábado, septiembre 21, 2024

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Luzes e sombras na vida de grandes personagens

Passados dois séculos da Revolução Francesa, as figuras de Luís XVI e Maria Antonieta aparecem reabilitadas aos olhos da opinião pública. Contudo, isso não impede que a Revolução continue o seu curso, o qual teria sido cortado se o Rei soubesse utilizar-se dos recursos colocados à sua disposição.

Luís XVI não compreendeu que revolucionário não se amansa: doma-se. E quando não se doma, resolve-se o caso de outra maneira… Ele, pelo contrário, esperava amansar o povo com a política descrita anteriormente1.

Duzentos anos depois da Revolução, aparece a verdade

Daí decorreu uma situação com profunda repercussão sobre o modo pelo qual a Revolução é comemo rada nos dias de hoje. Duzentos anos depois, essa política produziu efeitos que não deixam de ser muito interessantes do ponto de vista contrarrevolucionário.

Gabriel K.
Maria Antonieta com trajes de camponesa – Galeria Nacional de Arte de Washington

Porque, dispondo dessa máquina de difundir notícias por todo país e, portanto, espalhar mentiras se eles quisessem fazê-lo, os revolucionários tinham a possibilidade de convencer momentaneamente a França de tudo quanto quisessem.

E para levantar o povo contra o rei, eles não só produziram uma fome artificial, cortando a circulação dos víveres dentro da França, causando revoltas; mas também apresentaram Luís XVI como um tirano sanguinário. Maria Antonieta, a rainha, foi apresentada como uma mulher que vivia num luxo desenfreado, o qual era a causa dos grandes gastos da corte. Gastos estes que, por sua vez, causavam a pobreza da nação. Por tudo isso, era necessário acabar com a influência do rei tirânico e da rainha dissoluta, luxuriosa.

Fizeram do rei e da rainha, então, o alvo de uma campanha de calúnias quase sem precedentes na História que, finalmente, levou-os à guilhotina.

Passaram-se os anos, o que era velho foi ficando antigo. Os historiadores começaram a estudar os arquivos, os documentos, os decretos, as correspondências do rei e da rainha, e perceberam que todo o quadro revolucionário era artificial, mentiroso. O rei, outrora tido como tirano, era na realidade um moleirão, um homem sem energia, um pobre coitado. A rainha, tida como uma mulher de luxo exorbitante, pelo contrário, se fazia censurar pela excessiva simplicidade das modas que usava. Tinha mania de vestir-se de pastorinha e andar assim trajada por Paris ou Versailles. Não era como as senhoras do reinado anterior, de Luís XV. Maria Antonieta representava uma espécie de modernidade pastoril e simplória – aliás, de muita elegância –, numa França até então habituada ao luxo real. Portanto, ela também era uma coitada.

Além disso, ela era austríaca e irmã do imperador do Império Romano Alemão, ou seja, o chefe da Casa d’Áustria. A Áustria era inimiga tradicional da França. Então, dizia-se que a rainha trabalhava o mais possível para que a Áustria invadisse a França para salvar a monarquia. Isso significava fazer entrar o inimigo dentro de casa: a rainha era uma traidora.

Lendo a coleção de cartas de Maria Antonieta para sua família, vê-se o contrário. Ela sempre agiu para evitar que o irmão interviesse, porque ela participava da ideia do marido. Ela imaginava que, tratando com bondade o povo, este acabaria percebendo a loucura da situação e liquidaria por si mesmo a Revolução.

De maneira que isso tudo foi se difundindo aos poucos e o quadro da Revolução mudou: o rei e a rainha eram uns coitados!

Uma mesma política causou dois efeitos diferentes

Além do mais, o rei era um homem muito honesto. A rainha, por sua vez, reunia em si todas as qualidades capazes de tornar encantadora uma dama.

O ambiente da corte era tão impregnado de moralidade, ao contrário da corte de Luís XV – avô de Luís XVI – que, por exemplo, a irmã do Delfim – Madame Clotilde de Fran ce2 – a qual se casou com o Duque de Piemonte e Rei de Sardenha3, morreu em odor de santidade, com virtudes heroicas reconhecidas pela Santa Sé e proclamada venerável.

Luís XVI teve outra irmã, Madame Elisabeth4, solteira, que acompanhou o rei e a rainha até a Torre do Templo onde estiveram presos, sendo para eles um apoio e ajudando-os na educação dos dois filhos. Ela morreu guilhotinada por causa desse ato de dedicação.

Além disso, havia uma princesa de um ramo colateral da família real, Luísa de Condé5, pessoa muito piedosa e que fundou em Paris um convento de Beneditinas do Santíssimo Sacramento, que deviam fazer adoração perpétua6.

Aleksander Kucharski (CC3.0)
Mme. Elisabeth no Templo e Mme. Clotilde de France

Andrea Pozzi (CC3.0)

O convento foi construído sobre as ruínas do Templo onde Luís XVI e Maria Antonieta estiveram presos, para a reparação dos crimes e pecados que ali se cometeram contra a autoridade real. Ela não foi beatificada, mas é tida como santa. Ou seja, uma pessoa de alta virtude.

Enfim, tudo isso foi saindo aos poucos do pantanal das mentiras da Revolução, impregnando a História e, posteriormente, a opinião pública.

Ao cabo de algum tempo, ficou claríssimo que aquilo era uma conspiração da mentira, da calúnia mais atroz, do ódio mais debandado a serviço de planos de anarquia social, cuja ponta explodiu no fim da Revolução Francesa, com a primeira revolta comunista promovida por Babeuf7, um revolucionário republicano que fez uma tentativa de implantar o regime comunista, tal qual, na França.

Hoje vemos que o eixo da História mudou e que a excessiva mansidão de Luís XVI e de Maria Antonieta produziu em nossos dias um sentimento de compaixão em relação a eles, tornando-os populares depois da morte. Em alguma medida, embora pequena, realizaram suas esperanças – com duzentos anos de atraso –, de que o povo acabasse dando-lhes razão.

Nessa perspectiva, a opinião pública fica também preparada para uma análise mais objetiva das ideias da Revolução.

Por exemplo, o homem que estava no píncaro da popularidade poucos anos antes da Revolução era Voltaire; ele era, dentre os enciclopedistas, o homem mais ímpio da França. Era tão asqueroso que, num ato de revolta, poucos instantes antes de morrer – o fato é horrível, mas é preciso contá-lo para se compreender bem –, ele bebeu o conteúdo do próprio vaso noturno.

Voltaire está hoje com o crédito muito rebaixado. Enquanto Luís XVI e Maria Antonieta, que outrora estavam no auge do descrédito, agora são glorificados, deixando a Revolução sem coragem de atacá-los de frente.

Divulgação (CC3.0)
François-Noël Babeuf

Vejam o remexe-mexe da História: a Revolução serviu-se da política débil e estulta que os reis quiseram adotar para derrubá-los e dominar a França, grosso modo, durante dois séculos, e assim infestar o mundo. Mas, em contrapartida, essa mesma política serviu para, em determinado momento, desmoralizar a Revolução. Essa é a pluralidade de aspectos que o fenômeno revolucionário tem.

Alguém perguntará: “Então, Luís XVI e Maria Antonieta foram espertos ao agir desse modo?” Não! Porque não é muito consolador saber que eles foram reabilitados na opinião pública quando esta continua avançando, apesar de tudo, no caminho que a Revolução traçou, ou seja, rumo ao Comunismo. Contudo, é preciso compreender bem esse aspecto colateral da atitude dos reis para entendermos, na sua prolixidade e na sua multiplicidade de aspectos, a marcha do fenômeno “Revolução e Contra-Revolução”.

O que deveria ter feito Luís XVI?

Não entendo nada de cirurgia, mas vou imaginar um cirurgião que resolve operar um paciente de câncer – um tumor não aparente, que não está à flor da pele. Primeiro, o médico manda tirar uma radiografia, depois analisa-a e faz seu plano de ação: “O câncer está penetrado em tal lugar; eu devo cortar aqui, lá e acolá. Mas a minha meta é extirpar qualquer célula cancerosa, porque ela vai espalhar a doença para outros lugares do organismo.”

A Revolução, de si, é difusiva como o câncer e, por isso, deve ser extirpada por completo.

Luís XVI tinha diante de si duas alternativas: ou considerar as massas que se aproximavam e mandar descarregar a cavalaria sobre elas, como fez o Príncipe de Lambesc8; ou, caso isso não fosse possível – como realmente aconteceu – ele deveria fazer uma lista dos erros da Revolução e mandar pedir ao Papa Pio VI uma condenação; mas pedir de tal forma que o Pontífice não pudesse recusar.

Eu imagino uma carta do rei ao Papa nos seguintes termos: “Ou Vossa Santidade condena com radicalidade esses erros, de maneira a não ficar dúvida nenhuma, ou eu vos responsabilizarei pelo sangue derramado no meu país. Se esses erros não forem condenados, a França sofrerá um morticínio para o qual vou me preparar, embora preferisse não vê-lo. Portanto, é preciso que eu sinta todo o peso do clero católico combatendo do meu lado. Aí sim, eu sou fiador de que minha espada garantirá a integridade do altar, dos ministros sagrados, do culto católico inteiro e assegurará uma França católica! Se não houver isto, eu, só com meu poder militar, não extirpo essa situação.

“Este meu pedido precede ao uso das armas, mas, se eu tiver que fazer uso delas, a Europa ficará sabendo que entrei em combate porque Vossa Santidade não quis ser enérgico, pois eu fiz o possível para não derramar sangue.”

Se fosse eu, sem dúvida escreveria essa carta e obteria do Papa o lançamento desse documento.

Resposta ambígua do Papa e revide do rei

Pio VI era muito medroso, quase tão medroso quanto Luís XVI. Aconteceu, porém, que o monarca tentou tomar uma medida desse gênero. Mandou uma carta em segredo, por meio de um portador, pedindo ao Papa a condenação dos Direitos do Homem elaborados pela Revolução. O que fez Pio VI? Respondeu à missiva do rei e enviou-a por um mensageiro, dizendo:

“Eu recebi seu pedido e a condenação está feita. Ora, ela foi feita em segredo num consistório do Sacro Colégio dos cardeais. Portanto, o documento que envio à Vossa Majestade é secreto também. Mas, para tranquilidade de sua consciência, esses erros estão condenados.”

National Gallery of Ireland, Dublin (CC3.0)
Pio VI – Galeria Nacional da Irlanda

Luís XVI deveria ter respondido o seguinte:

“Tenho em minhas mãos um documento de Vossa Santidade mostrando que não posso contar com vosso apoio. Fique sabendo que, no momento oportuno, farei a matança desses bandidos para libertar o meu povo. Nessa data, enviarei missivas para todos os reis da Europa com a cópia dessa carta secreta que me enviastes. Vossa Santidade ainda está em tempo de corrigir a situação…”

Nessas condições, o rei, ou poderia mandar esmagar os revoltosos ou – o que eu acho muito mais interessante – prender todos os enciclopedistas na Bastilha, mandar queimar os livros deles em praça pública à maneira da Inquisição e exterminar, assim, a difusão das ideias revolucionárias. Porque mais vale a pena eliminar os grandes culpados do que os pequenos.

Além disso, o monarca poderia pagar alguém para fazer uma suma das máximas revolucionárias contidas na Enciclopédia e publicar, dizendo: “O Papa não quis condenar esses erros, mas eu os condeno; isso é contra a Doutrina Católica. Eu vou fazer a minha Enciclopédia, nela vocês ficarão sabendo a verdade.”

Alguém objetará: “Mas, coitado, Luís XVI não tinha talento para fazer isso.” Se não tinha talento, pelo menos podia convocar gente que o tivesse; trancá-la numa fortaleza e dizer: “Quando vocês terminarem o trabalho ficarão em liberdade. Eu lhes darei tanto dinheiro como pagamento – um bom dinheiro –, mas façam como eu quero que seja feito, porque do contrário vocês não sairão daí. Eu vou mandar carcereiros fiscalizarem o trabalho para ver se está saindo como eu quero.”

Esses seriam alguns recursos. Haveria muitos outros…

O papel da corte

Na descrição que fiz do mundo dos salões omiti o papel da corte, a qual ficava em Versailles e não em Paris, duas cidades distintas. As pessoas principais da corte possuíam casas, ora numa cidade, ora noutra. E algumas tinham apartamentos concedidos pelo rei no castelo de Versailles, pois este era enorme e capaz de acolher muita gente.

A corte constituía, portanto, o salão dos salões e era muito prestigioso pertencer a ela, ser recebido ou receber visitas de pessoas da corte, ganhar distinções do rei, da rainha, etc. O prestígio social se fazia, em larga medida, em virtude disso.

E, se o rei e a rainha tivessem uma ideia exata de qual era a doutrina da Revolução e, por conseguinte, também do que seria uma desejável doutrina contrarrevolucionária, eles já poderiam, pela habilidade, ter feito muita coisa para destroçar a rebelião nascente em Paris, sem o caráter enérgico e rubicundo das medidas acima mencionadas. Bastava irem, aos poucos, expulsando os fidalgos revolucionários e introduzindo os nobres contrarrevolucionários nos cargos da corte, de modo a fazer dela um foco permanente de Contra-Revolução, dando prestígio aos bons.

Os reis tinham muita influência na nomeação de bispos e na promoção do clero; poderiam promover, ali dentro, os mais ortodoxos ou obter do Papa a nomeação de prelados bons, com pensamentos contrarrevolucionários, e não verdadeiras pústulas como Talleyrand9, Bispo de Autun, homem praticamente sem fé e, sobretudo, sem moral. Estimulando a Contra-Revolução ideológica no país de todos os modos, a corte poderia ter tido recursos de ação colossais.

Entretanto, Luís XVI não usou nenhum desses recursos. Havia mil meios de prevenção da Revolução antes de usar a repressão. Depois, havia mil meios de repressão. Nada disso os reis fizeram. Na minha opinião, eles não tinham uma ideia nítida e articulada do que é a opinião pública. E por isso ficaram meio hébétés10 nesse vai-e-vem das coisas.

Poder oculto que criava os “Cahiers de Doléances”

A meu ver, havia um modo facílimo de desmoralizar a organização dos Estados Gerais quando estes foram convocados. Para me exprimir melhor, vou falar linguagem moderna. Cada distrito eleitoral daquele tempo escolhia os deputados por um sistema de voto indireto. Eles nomeavam quem elegeria os deputados.

Ora, desde que houve Estados Gerais – já na Idade Média era assim –, esse pequeno corpo de deputados elaborava também um documento intitulado Cahier de Doléances11. Portanto, era a lista das coisas que o povo desejava que fossem modificadas porque lhes fazia sofrer, e pediam para serem tomadas as providências necessárias.

Flávio Lourenço
Charles Maurice de Talleyrand-Périgord Museu Carnavalet, Paris

Existia o Cahier de Doléances da Bretanha, outro da Alsácia, outro da Lorena. O deputado de cada local se dirigia para os Estados Gerais com a incumbência de dar a conhecer as doléances de sua jurisdição, e apresentava os pedidos. Daí nascia um debate e se tomava uma decisão.

Ora, os Cahiers de Doléances foram exaustivamente estudados por autores contemporâneos e verificou-se que esses livros não tinham sido feitos pelos representantes populares, pois existiram exemplares de zonas diversas uma das outras, como, por exemplo, Lyon e Havre, com as mesmas queixas, repetindo palavra por palavra, em páginas inteiras. Tal prova indicava a existência de uma máquina que fazia as doléances e as enviava para Paris, a fim de exercerem certo efeito sobre o público. Mas tudo aquilo era falsificado e, portanto, a Assembleia funcionava a serviço de um outro poder. E de um poder oculto.

Luís XVI podia ter mandado examinar essas queixas de modo muito amável: “O rei quis conhecer, ele próprio, as doléances de seu querido clero, de sua querida nobreza e de sua querida plebe; mandou examiná-las e teve a surpresa de encontrar tal coisa assim.”

Antes que os Estados continuassem a funcionar, o rei deveria ter aberto uma investigação nacional para saber como havia sido elaborado aquilo. Ele poderia chamar para um inquérito os senhores que tinham cadernos iguais: “Senhores, apresentem-se aqui diante da Inquisição e expliquem como é que, morando em zonas tão diferentes uma da outra, os senhores imaginam para seus respectivos povos situações iguais; não é possível. Como receberam isso? Quem lhes deu? Por que os senhores aceitaram trazer isso? Eu quero saber com exatidão. Se não, vão ser chamados para responder por crime de estelionato, porque falsificaram as intenções do povo aceitando as intenções de uns ideólogos revolucionários, agitadores, inquietos e incontentáveis.”

Isso bastava para fazer explodir a Revolução.

Meios de evitar a Revolução

Havia, também, muita confusão na administração do patrimônio público da França, ninguém sabia ao certo como estava. Isso não era tão irregular, porque antigamente as questões de dinheiro se tratavam com certa bonomia e relaxamento, chegando às vezes ao excesso; o dinheiro não era um ídolo como é nos dias de hoje.

Então, encarregaram um banqueiro suíço-francês, Necker12, para estudar a situação do tesouro da França e elaborar um relatório. Mas não mandaram ninguém fiscalizá-lo para ver se estava trabalhando direito.

Necker apresentou um relatório muito bem redigido – eu desconfio ter sido redigido por algum enciclopedista, pois eles eram muito bons literatos –, que foi espalhado por toda a França como o último modelo da melhor ciência econômica possível. Porém, estava cheio de erros. Hoje não se admitem mais tais propostas. Por que, então, não mandaram examinar antes? Porque esse trabalho era a peça chave para provar que os Estados precisavam ser reformados. Em outras palavras, era o libelo de acusação, no plano administrativo e econômico, contra a monarquia.

Auguste Couder (CC3.0);Bibliothèque nationale de France (CC3.0)
Abertura dos Estados Gerais a 5 de maio de 1789. Em destaque, Jacques Necker – Biblioteca Nacional da França

Ora, o rei, contra quem se dirigiu tal acusação, não mandou controlar a situação tendo todos os meios ao seu alcance? É algo inimaginável! É claro que se um homem verdadeiramente católico estivesse na direção de um país nessas circunstâncias, ele teria usado de toda a força necessária, mas teria feito todo o necessário para evitá-la. É evidente! Só um animal sanguinário prefere usar a força podendo evitá-la.

Enfim, todos esses métodos políticos: mandar controlar os cahiers de doléances, o trabalho do Necker, desmontar o prestígio dos salões de Paris por meio de suspensões ou afastamentos desses ou daqueles em relação à corte, tudo isso poderia ter evitado a Revolução, se Luís XVI tivesse agido logo no começo do seu reinado. Como católico, o rei devia preferir isso. Mas ele não viu nada, não soube nada, não quis nada e morreu com a cabeça cortada na guilhotina.

Aspectos luminosos e deploráveis que se misturaram

Os acontecimentos da Revolução Francesa têm uma tal prolixidade, complexidade de aspectos, que é preciso considerar também um outro ponto.

No meio de todas as culpas que cabem ao rei e à rainha, é preciso dizer que Pio VI, por ocasião das exéquias de Maria Antonieta, celebrou uma Missa na Basílica de São Pedro, na qual declarou por opinião pessoal, ou seja, sem fazer uso da infalibilidade papal, que os monarcas morreram mártires. Porque se eles tivessem concordado com a separação entre a Igreja e o Estado, simplesmente por isso, não teriam sido mortos. E eles sabiam disso. Há, portanto, aspectos luminosos e deploráveis que se misturam.

G. Beys (CC3.0)
Morte de Pio VI – Biblioteca Nacional de Portugal

O próprio Pio VI teve uma morte digníssima. Entretanto, Ludwing von Pastor13 – tido por muitos como o melhor historiador do papado –, conta que Pio VI era um homem muito vaidoso, pois passava um certo número de horas por dia com as mãos metidas em um recipiente com leite de amêndoas, porque se acreditava naquele tempo que isso tornava a pele mais branca. E como ele tinha as mãos muito bonitas, queria que estas aparecessem muito alvas ao entrar na Basílica de São Pedro sendo carregado na sede gestatória dando bênçãos.

Para um homem qualquer é algo inconcebível pensar se as mãos são bonitas ou feias. E para um Papa é inadmissível! Ele fez isso. E teve fraquezas diante da Revolução, inegáveis.

Contudo, a partir de certo momento, começou a resistir, razão pela qual foi levado preso até a França pela Revolução. Chegando lá, estava tão doente que parou, porque não aguentava mais viajar tantas horas de carruagem desde Roma. E o “povo” – de fato, era um bando de sacripantas acumulado pela polícia – agrupou-se diante da casa onde o Pontífice residia e pediu-lhe para aparecer. Ele saiu da cama, vestiu-se com a indumentária própria a um Papa, chegou ao terraço do quarto e o “povo”, vaiando, disse: “Ecce homo”14. Pouco depois morreu. Isso demonstra uma grande dignidade.

Esses personagens são muito complexos. Quando se quer fazer um juízo pessoal, é mais complexo julgá-los do que parece à primeira vista.

(Extraído de conferência de 19/7/1989)

1) Cf. Revista Dr. Plinio n. 304, p. 16-21.

2) Marie Adélaïde Clotilde Xavière (*1759 – †1802).

3) Carlo Emanuele IV (*1751 – †1819).

4) Élisabeth Philippe Marie Hélène de France (*1764 – †1794).

5) Louise Adélaïde de Bourbón-Condé (*1757 – †1824).

6) Louise Condé fundou a Abadia de Saint-Louis du Temple, fazendo parte da ordem dos Beneditinos da Adoração Perpétua do Santíssimo Sacramento, uma congregação fundada por Mechtild do Santíssimo Sacramento.

7) François Noël Babeuf (*1760 – †1797), jornalista que participou da Revolução Francesa, conhecido pelo nome de Gracchus Babeuf.

8) Charles-Eugène de Lorraine (*1751 – †1825).

9) Charles-Maurice de Talleyrand-Périgord (*1754 – †1838).

10) Do francês: atordoado.

11) Cahiers de Doléances são registros nos quais a assembleia de cada região da França anotava as petições e as queixas da população.

12) Jacques Necker (*1732 – †1804). Foi em três ocasiões encarregado pelo rei Luís XVI da economia da monarquia francesa.

13) Ludwig von Pastor (*1854 – †1928). Historiador alemão e diplomata para a Áustria.

14) Do latim: eis o homem.

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