Populares da semana

Relacionados

IV – Aderente fervoroso e intérprete de Dr. Plinio

Com sua extraordinária comunicatividade e capacidade de fazer penetrar a graça nas almas, o Sr. João Clá exerceu um imprescindível apostolado de sustentação colateral, descortinando a pessoa de Dr. Plinio enquanto fundador e levando seus discípulos a dar o devido valor a seus ensinamentos.

As reuniões que eu fazia no início do Grupo não eram aulas. Sendo a metade do meu auditório constituída por membros quase de minha idade, eu não podia tomar em relação a eles a atitude doutoral de quem leciona.

Matérias expostas em forma de causerie

Há um tipo de exposição que o francês chama causerie, na qual se pode tratar matérias profundas de modo metódico, mas, ao mesmo tempo, com elevação de forma e uma certa flexibilidade e agrado de conversa. É um misto entre conversa, discurso e conferência, sem ser inteiramente nenhum dos três, um modo de exposição ao qual me adaptava razoavelmente.

Fotos: Arquivo Revista
Dr. Plinio em meados da década de 1980

Eu considerava necessário realizar exposições bem raciocinadas, mas acompanhadas de um certo pulchrum que conferisse ao raciocínio uma espécie de simbolismo, o que, acrescido pela observação direta da coisa, para mim resultava numa compreensão humana completa.

Implicância, tibieza, desinteresse

Ora, várias circunstâncias se encontraram e é positivo que houve um gradual descolamento entre a massa do Grupo e mim, sobre meu modo de fazer as exposições e, portanto, sobre meu modo de influenciar o Grupo.

Fotos: Arquivo Revista
Conferência no Auditório São Miguel, em 15 de novembro de 1979

Quando ainda ocupávamos o Auditório da Santa Sabedoria, na Rua Pará, começou um entretom, espalhado entre vários, de que esse pulchrum era inútil, representava perda de tempo e, ademais, dava pena, porque manifestava que eu não tinha uma inteligência à altura de expor a pura doutrina e por isso me refugiava em dissertações, em parte doutrinárias, em parte literário-históricas. Em alguns isso foi tomando certo ar de fronda que encontrava receptividade em vários outros.

Para manter minha autoridade junto a esses, tive que provar ser capaz de fazer exposições doutrinárias secas. Realizei-as, mas ficou criado um ambiente pelo qual o que não fosse uma conferência assim, dificilmente se podia sustentar dentro do Grupo. Eles abriam exceção para o Santo do Dia, pois reconheciam que os mais novos não compreenderiam reuniões puramente doutrinárias.

Houve um primeiro distanciamento e já aí uma crise de tibieza, importando no fato de eu reduzir as reuniões, que eram quotidianas, a três por semana com pretexto de eles aproveitarem os outros dias para estudar a matéria – mas sabendo bem que não estudariam nada e ficariam na algazarra –; e depois na decadência das Reuniões de Recortes,1 a ponto de eu ter pensado seriamente em suspendê-las.

Fotos: Arquivo Revista
Dr. Plinio em 18 de março de 1968

Com isso entraram os mitos do mundanismo e o desinteresse, por princípio, por tudo quanto não fosse fuxico, rivalidades e questões pequenas da vida interna do Grupo. O interesse de cada um por sua própria pessoa foi aumentando, e todo o universo da vocação no qual eu me movia tornando-se mais distante. Eu fazia sistematizações, teorizações, mas as sentia cada vez menos capazes de serem entendidas. Em visita a uma de nossas Sedes, fiz uma exposição sobre Elias Profeta e tive a impressão de que, se eu estivesse diante de estátuas do Aleijadinho, daria mais resultado. Durante dois lustros, eu falei para essa geração sem suscitar admiração.

Compete aos discípulos saber ver o fundador

Eu costumava dizer, no tempo em que as coisas iam mal, que faltava aos mais velhos alguém que fizesse junto aos outros membros do Grupo o papel de chispa. Ou seja, não bastava o apostolado perpendicular; era preciso um apostolado de sustentação colateral especial, com vistas à vocação, o qual, entre outros objetivos, deveria chamar a atenção para quem fundou o Grupo.

Apesar de minha insistência durante anos sobre essa necessidade e de eu dar a entender claramente que as coisas não iam sem isso, eles não fizeram nada. Ouviam com uma educação perfeita, concordavam, mas não houve quem se apresentasse e ninguém sequer perguntou no que consistia esse apostolado, tal era a indiferença. Eu pensei: “Não lhes farei mais a mínima menção para executarem isso. Se começarem a fazer, eu ajudarei. Se não, é porque a chispa não pegou e não adianta persistir”.

Fotos: Arquivo Revista
Reunião de Recortes na Sala do Reino de Maria, em fins da década de 1960

Por razões de vida interior, eu absolutamente não trabalhava nesse sentido e jamais o faria, pois sempre me abstive por completo de falar de mim mesmo e tomei por norma me apagar. Nunca me apresentei a não ser como um filho da Igreja, procurando equacionar ou proporcionar o modo de ser católico diante das circunstâncias, e de agir de acordo com os métodos tradicionais da Igreja, tomando em consideração as renovações havidas.

Pensar em meu papel é o que eu procuro não fazer. Sou o perpétuo ausente nos meus panoramas, e imaginar-me neles é estragá-los e estragar-me a mim. Esta é a única matéria que eu não posso ensinar. Não me corresponde descrever-me nem ser meu próprio cicerone, como se é de uma obra de arte: “Aqui está… Ecco me! Vejam! Eu sou isso, aquilo, aquilo outro… Tenho tais aspectos, devo ser interpretado assim…” Isso cabe aos discípulos.

E para se unir inteiramente a Nossa Senhora, deve-se ver por inteiro o varão que Ela mandou como elo para essa união. Esse “saber ver” é uma arte que não se ensina mostrando tudo, mas deixando, às vezes, algo na penumbra. Não só por causa disso, mas também por isso, eu, muitas vezes, “penumbreio”.

Se alguém quisesse realizar esse apostolado entre os mais velhos, teria ocasionado uma rejeição feroz por parte de alguns. E o fato é que esse apostolado não se fez. Tenho a impressão de que levar os outros a essa visão é um trabalho muito grande e dificílimo, e não se obtém resultado a não ser por meio de uma ação da Providência.

Relacionamento ideal com o fundador

A união de almas perfeita entre os membros do Grupo e eu, como fundador, seria fruto de um conhecimento transmitido pela geração anterior e também de um relacionamento pessoal comigo. Isso se faria de um modo gradual, tamisado e orgânico. Entretanto, a atitude em relação a mim era tal, que não se mostrava ter eu uma missão correspondente à de fundador… Isso deveria ter sido dito e não foi, porque um movimento como o nosso não vive apenas do que cada um vê, mas é organizado para mostrar aos seus como são as coisas.

Aliás, às vezes foi dito o contrário pelos membros da primeira geração aos da segunda. E isso nos causou um enorme dano, como danificaria e jogaria por terra qualquer fundação. Ou seja, a primeira geração cegou-se a si própria e serviu para castigo da segunda. Por sua vez, esta também se fechou e pesou sobre a terceira, e assim sucessivamente.

Fotos: Arquivo Revista
Conferência no Auditório São Miguel, em junho de 1990

A “ditadura” dos mais novos

Ora, Deus faz as regras e depois deixa luzir as exceções: apareceu um movimento especificamente novo, com o apostolado dos “enjolras”, que interpreto como um trabalho da Providência para convidar os mais velhos a abrirem os olhos.

As doutrinas eram as mesmas que eu sempre admiti e ensinei, e que os membros do Grupo, de um modo geral, aceitavam, apesar de ser tão grande a preguiça de pensar da mesma forma que só um número pequeno de pessoas as assimilava, de fato, como deveria.

O que havia, então, de novo? Era uma nota a mais, uma mudança na posição a meu respeito, em consequência da ação e do apostolado pessoal do João.

Fotos: Arquivo Revista
Conferências de Encerramento de Acampamento, em 1980 (à direita) e em 1983 (acima)

Fotos: Arquivo Revista

Comecei a adaptar um tanto a Reunião de Recortes aos “enjolras”. Era uma necessidade e um modo de salvar também os mais antigos; do contrário, iriam água abaixo. Voltaram a ser feitas reuniões doutrinárias mais filosóficas, dadas ao pulchrum, para agradar os mais novos, os quais se desenvolveram bem intelectualmente e ficaram em condições de acompanhar quase todas as reuniões. E, assim, firmou-se um primado da influência dos “enjolras” sobre a maioria dos antigos.

Estes, que haviam desprezado a pessoa que possuía títulos para orientá-los, acabaram debaixo da “ditadura” dos mais moços – muito bons rapazes, excelentes filhos meus, a quem eu quero bem –, por meio da qual Nossa Senhora os prendia a mim. Ela assim permitiu e dessa forma deu a réplica a quem não fez o que lhe cabia, não cantou o cântico que deveria ter cantado! Foram levados, por aqueles a quem lhes incumbia ensinar e servir de exemplo, a ter uma vaga noção do dever que não haviam cumprido. É o balanço da coisa: o castigo e a misericórdia andando juntos, admiravelmente. E eles, que não puderam ser resgatados pela minha presença, acabaram sendo impressionados pela presença dos “enjolras”, que tiveram sobre eles mais influência do que eu.

O João apareceu como um Cid Campeador2 daquilo que estava oculto, pôs o fundador e a análise de sua pessoa num realce que constituiu o corretivo natural ao mal feito anteriormente e conduziu o Grupo a uma explicitação que a mim mesmo empurrou também. Ele avançou a la Don Pelayo,3 de lança em riste, cavalgando com muito desembaraço nos setores onde menos essa palavra pareceria fazer-se ouvir.

Ele trabalhou de um modo magnífico, dando uma clarinada e pondo isso numa evidência que caminha, está voltada e antecipa – não digo cronologicamente, mas morfológica e logicamente – o “Grand-Retour”.4

Valorização das obras escritas

Antes disso, lembro-me de que, em geral, minhas obras caíam no esquecimento. Das duas coleções salvas do jornal Legionário, uma se perdeu porque as colocaram num telheiro e se arruinou de tanto molhar. Mais ainda, na ocasião em que deixamos as dependências da Sede do Legionário, manifestei o desejo de levar as coleções conosco, ao que me responderam: “Mas acha que vale a pena?”

Fotos: Arquivo Revista
Santo do Dia em janeiro de 1990

Fotos: Arquivo Revista
Fotos: Arquivo Revista

Aquilo me doeu e me fez refletir: “Que falta haveria de minha parte, perante Nossa Senhora, para um trabalho tão grande – não digo como qualidade, mas como quantidade – naufragar por essa forma?”

Com a Oração da Restauração foi assim. Perguntaram-me se eu poderia compor uma oração para pedir a restauração da inocência. Redigi, quase rabisquei, na mesma ocasião, em cima de uma daquelas mesas de mármore da pizzaria Giordano. Ali, naquela roda do restaurante, ela foi lida e considerada muito boa. Providenciei que eles recebessem o texto, e a atitude foi de indiferença; depois envelheceu, sujaram-se os papéis, não se falou mais dela… Eu não fiz o menor esforço para trazê-la à tona.

Eu havia redigido algumas Vias-Sacras, as quais foram lidas e julgadas muito boas também. Mas pararam no mesmo bolso onde já estava guardada a Oração da Restauração e alguns papéis ensebados, desses que se muda de um paletó a outro e nem se tem tempo de ver o que é.

Ora, em certo momento soprou um vento mais forte da graça e o João começou a fazer insistência para valorizar esses pensamentos e essas orações, que passaram a ter no Grupo certa vida, e continuam a ter até hoje. Se não fosse a mão desse filho tocado especialmente por mamãe, tudo isso estaria num baú, esquecido e comido pelas traças, sem dúvida nenhuma! Da minha parte não haveria uma palavra. Fico profundamente comovido com a dedicação dele, porque era uma situação que me deixava com certa tristeza. De fato, quando eu morresse, se não fosse o João, tudo iria para o lixo.

Meu livro Revolução e Contra-Revolução, que estava dormindo com colunas de poeira em cima, começou também a ser estudado, pelo empenho do João em que os “enjolras” o conhecessem, e conhecessem admirativamente. Houve então um número de pessoas mais velhas que, sentindo que essa obra tinha prestígio dentro do Grupo, procuraram se “envernizar” dela, para terem alguma respeitabilidade eles próprios.

Há um determinado momento do curso do Sol que dele se pode dizer: “nec est quod se abscondat a calore eius – nada escapa ao seu calor” (Sl 18, 7)! Esse momento não teria chegado, se o João não tivesse se levantado e feito o que fez. A própria organização de uma opera omnia mea… foi só mesmo com o entusiasmo e a dedicação do João que se pôde levar adiante algo assim.

O Jour le Jour através dos olhos do João

Uma criação inapreciável, toda ela do João é o Jour le Jour.

Fotos: Arquivo Revista
Sr. João Clá durante uma reunião do Jour le Jour no Auditório Nossa Senhora Auxiliadora

O João é uma pessoa peculiar. Quando ouço um ou outro emitir juízos a respeito dele, fico quieto, porque, para quem não queira ver, não se pode dizer o seguinte: o João é orador nato, dotado de todos os recursos e de todas as possibilidades que conhecemos, mas, para certos temas, ele, de repente, se eleva a um grau de comunicatividade e, por meio disso, a um grau de possibilidade de fazer penetrar a graça na alma dos outros que são extraordinários!

Alguns oradores vencem aumentando a distância entre si e o auditório. O João não vence assim. Ele sobe junto com o auditório, o qual fica nem mais distante, nem mais próximo dele; a relação entre um e outro permanece como estava no início, mas tudo subindo! É como se uma sala subisse, com todos sobre o mesmo chão. Ou como um elevador: tudo sobe junto! E as pessoas saem de lá como quem fez um passeio no maravilhoso, com muita graça.

Dos rapazes que têm a feliz oportunidade de participar dos Jour le Jours, eu às vezes penso comigo: “Estes são mais felizes do que eu. Quando deram os primeiros passos, eles tiveram um João Clá, que eu não tive”.

Eu nunca em minha vida assisti a um Jour le Jour, nem tenho visto o João falar aos “enjolras”. Não sei, portanto, como o João me apresenta a eles. Mas é positivo que eles me veem através dos olhos do João, sem dúvida nenhuma, enquanto outros me veem meio diretamente e meio através do mundo. Os mais velhos entre esses rapazes me conheceram no período que vai entre o surto muito forte de diabetes que eu tive, que levou à amputação dos artelhos, e o desastre de automóvel; portanto, antes de o João começar qualquer ação sobre eles.

Eles, conhecendo-me diretamente, não tiveram a meu respeito o entusiasmo que tiveram depois, vendo-me interpretado pelos comentários do João. A verdade é essa. Se as gerações que os precederam não tivessem posto a apreciação da matéria tratada no Jour le Jour sob um abat-jour, um quebra-luz, e houvessem ensinado o que o João Clá ensina aos “enjolras”, eles poderiam ter me visto de outra maneira.

De outro lado, também é verdade o seguinte: os que entraram depois começaram a me conhecer em função dos comentários do João. E, portanto, o intercurso desses comentários foi a ocasião pela qual eles entraram numa via nova, que os mais antigos não conheceram.

Mas é preciso acrescentar que eles não só não conheceram essa via nova, mas não lhes adiantou muito conhecê-la depois. Porque o Jour le Jour esteve aberto a todos os que quisessem ouvir e eu creio que a maioria do Grupo ouviu, mas os mais antigos não se sentiram atraídos como os “enjolras”, nem movidos como eles a tomar uma atitude diferente a meu respeito.

Tradutor e “rei dos enjolras”

Os “enjolras” encontraram no João uma pessoa que, valendo-se de um feeling e de um talento incomparável, conseguiu pô-los num diapasão de idealismo e de entusiasmo. Mas com que verve, que fogo, que senso de observação! Com uma coragem, uma crânerie,5 um desafio de assombrar. Simplesmente fantástico! Eu tenho visto de mil modos, pelos efeitos, pelos reflexos que me chegam, que faz um bem extraordinário aos mais novos, de onde eles terem, de fato, essas disposições a meu respeito.

Fotos: Arquivo Revista
Santo do Dia no Auditório São Miguel, em 1990

O João atua como uma espécie de tradutor. E se não fosse um tradutor com esse grau de abnegação que estivesse continuamente alimentando e metendo o fole ali, se não fosse o João estar fazendo a todo momento o papel de cicerone meu junto aos outros, se não fosse a ação pessoal dele sobre uma grande fração do auditório, eles simplesmente não me entenderiam, não teriam o entusiasmo que têm. Eles me abandonariam, me deixariam sozinho e há muito tempo minhas reuniões teriam cessado, não cabe a menor dúvida. O fator de aperfeiçoamento dos “enjolras”, que evita que eles fiquem tíbios, é o João.

Vou dar uma prova. Imaginem um quadro que passou sessenta anos num museu, visto pela correta consideração dos cicerones do público. De repente, há uma mudança na situação: vem uma multidão ver o quadro. O que aconteceu? Foi um cicerone que apareceu e, com uma verve única, soube mostrá-lo de tal maneira que os visitantes saem do museu entusiasmados e admirados. Se não fosse o cicerone, eles não entenderiam o quadro.

Agora, vamos direto ao fato. Eu digo algo duro e severo: como eu tenho qualidades abominadas pelo século, o indivíduo escravo do século as vê, mas em pouco tempo elas se apagam miseravelmente de seu espírito. Elas, por si mesmas, ou afugentam, ou não são suficientes para justificar um progresso, e menos ainda uma continuidade; se não entram outros fatores, sem uma graça especial vinda aliunde, é como se não existissem. Isso se dá por causa da malícia dos tempos e da disposição geral dos espíritos. A história do Grupo está cheia de provas desse fenômeno, o qual vi passar-se com muitos após o primeiro contato comigo, antes de começar o apostolado do João; e, depois de começado este, com muitos daqueles sobre quem o João não tem influência. Isso é a coisa dita com toda a franqueza, usando a política da verdade.

Fotos: Arquivo Revista
Dr. Plinio e Sr. João Clá, em 1986

Portanto, eu mentiria se dissesse que pela irradiação de valores pessoais reuni em torno de mim um grupo. São esses valores, enquanto iluminados por uma certa graça que não vem de mim ou, se vem de mim, passa por outrem. Creio ser absolutamente evidente que o João Clá é um instrumento da Providência para comunicar essa graça, com a qual, o que possa haver em mim de digno de aplauso, os outros veem. Ele é como uma estrela a anunciar a minha vinda, de modo que é preciso olhar para ele para compreender que a minha influência vem depois. Havendo um cicerone de primeiríssima ordem, faz-se aplaudir qualquer coisa! A graça muitas vezes se serve da propaganda para abrir os olhos das pessoas.

Em consequência, eu acho que alguém que participe daquela “turumbamba” do João no Præsto Sum sai mais capaz de acompanhar uma conferência minha do que se não assistisse à do João. Quando entro para fazer a reunião de sábado,6 no Auditório São Miguel, tenho a impressão de que cada olhar que pousa em mim é uma luz acesa, mas não a elétrica, morta e parada, e sim a luz cintilante da chama da vela. Começo a reunião, que é bem o prefácio da reunião-auge da semana: o Jour le Jour de domingo no Præsto Sum… Todo mundo vai tomando o antegosto dos entusiasmos, dos fervores, dos aplausos que coroam o Jour le Jour feito pelo João.

Não há quem seja capaz de fazer o Jour le Jour. Se não fosse o João Clá, não seria a conferência de um outro que produziria esse efeito… Ainda que alguém passasse comigo quinze dias, não sairia um só mísero Jour le Jour.

O João tem, à maneira dele, um dote muitíssimo raro, que é de tornar agradável e leve uma série de matérias profundas; a genialidade consiste em colocar esses assuntos na cabeça dos mais novos através do Jour le Jour; ou seja, por meio de fatos quotidianos, banais, comuns, começar a tratar de temas altos. Ele mistura aquilo com a narração de casos engraçados e pitorescos, e o pessoal se entusiasma. Ademais, ele tem um jogo de expressão muito vivo, que atrai enormemente a “enjolrada”. Porque, queiramos ou não, se não nos conformarmos ao feitio psicológico dos mais jovens, acabamos não produzindo o resultado que desejamos.

Fotos: Arquivo Revista
À esquerda, Sr. João Clá, na sessão de encerramento da V Semana de Estudos de Catolicismo, em 23 de janeiro de 1957. À direita, Dr. Plinio durante uma conferência, no início da década de 1950

Não sei se já viram a água do mar durante a noite: é escura, mas, remexendo-a, sai luz. Assim também há fatos da vida quotidiana dos quais, deitando a atenção, percebemos se desprender uma certa luz, uma certa fosforescência. Não é a luz do Sol, é uma luminosidade inerente aos próprios fatos, os quais, “remexidos” pela análise do raciocínio, desprendem o “flash”. Assim, não é puro raciocínio nem puro “flash”. Eis o mérito do Jour le Jour com suas mil saídas, mil lampejos, mil “acrobacias”. Trata-se de um sistema, uma escola de remover águas fosforescentes, e o João Clá é perito nessas águas.

Sem perceber, ele faz uma leçon de choses.7 Ele não adota um programa muito fixo no Jour le Jour e, à medida que calha, ele vai tratando dos assuntos, dos quais se aproveita para ensinar mil coisas àqueles meninos que não sabem nada. Ele cria um estado de espírito e manobra muito direito, com todo o tirocínio dele; é um ás nessa matéria! Nosso grande especialista em “enjolrologia” é ele, o “rei dos enjolras”.

O traço característico da amizade

Um dos traços mais característicos da amizade – enquanto reta e católica orientação de uma alma em relação a outra – é, ao mesmo tempo, um dos menos mencionados. O amigo pergunta a respeito daquele a quem ama, a quem quer; tem uma curiosidade natural e afetuosa de saber, de estar informado, de entrar nos pormenores, de interpretar, para encontrar a justificação de sua amizade, que não é puramente sentimental e tola, mas nascida da razão e da repercussão dos dados da razão sobre o assunto.

Fotos: Arquivo Revista
Dr. Plinio no Cemitério da Consolação, em 21 de abril de 1992

É um traço que eu tenho encontrado continuamente na amizade tão devotada de meu querido João Clá. Vejo com alegria e com desejo de corresponder a tanta e tão filial amizade que, dele, essas disposições de alma se irradiam para todos.

De fato, nessa matéria ele tem sido muito fiel, tem uma vocação excelente para isso e é, eminentemente, uma pessoa que serve de modelo, porque, em vez de se afirmar e procurar esquecer quem está acima, pelo contrário, ele é uma espécie de tabuleta com uma flecha indicando o caminho, sempre nessa direção.

Se para ilustrar uma doutrina convém ter um vitral, uma iluminura, um órgão, uma torre, um castelo, parece evidente que muito mais simbólico para um homem é outro homem. Portanto, uns aos outros devemos saber tomarmo-nos como que símbolos. Com as graduações adequadas, todos nós – quando andamos retamente – somos símbolos de Deus uns para os outros. Se isto é assim, eu quero crer que o meu João veja em mim uma tal ou qual simbolização do que eu explano e ajude aos meus “enjolras” a perceberem essa simbolização ao longo do Jour le Jour.

Antes de começar a odisseia ou a epopeia “enjólrica”, eu sempre tive no meu João um ouvinte inteiramente atento ao que eu dizia e que acompanhava as reuniões com entusiasmo. Disto eu tinha consciência. Mas nunca investiguei se ele comentava ou não a minha pessoa com os outros. Esse problema não me passou nem pela mais ligeira fímbria da cabeça. Seria a mesma coisa que perguntar: “Agora, neste momento, o número de pinguins é maior ou menor no Polo Sul?”

Eu não tinha uma noção clara de que houvesse nele o hífen entre a geração antiga e a geração nova, de maneira a saber atrair e entender a tal ponto a “enjolrada” e fazer um jorro traduzido em pequenos comentários simbólicos.

Nesse sentido, uma das primeiras atitudes do João junto aos outros, que eu presenciei, foi quando estávamos transitando por São Paulo e, por alguma razão, tirei o chapéu; mais adiante, tirei-o de novo. E ouvi o João comentar com as pessoas que iam na parte de trás do automóvel: “Vocês estão aqui sem prestar atenção no que ele está fazendo. Esse tirar do chapéu tem um sentido: ele agora rezou tal coisa, depois rezou tal outra. E o tamanho da tirada do chapéu é calculado de acordo com a importância que ele dá àquilo que ele está rezando. Se é uma oração muito cheia de respeito, ele tira mais o chapéu; quando é menos, ele tira menos. Porque tudo o que ele faz é de acordo com a razão e muito calculado. Como viajam aqui sem prestar atenção no que se passa?”

Eu não quis interromper a minha oração, mas pensei comigo: “É a primeira vez que escuto alguém fazer a meu respeito um comentário tão bem pensado e acertado. Convivo com uma série de pessoas há muitos anos, nunca vi uma observação tão miúda, sobre uma coisa tão pequena, revelar tanto pensamento”. A partir disso, comecei a prestar atenção nos comentários dele que me chegavam aos ouvidos. Muito bem pensados e elevando a todos quantos estivessem em torno dele. O João tira um partido único das coisas: ele pega uma migalha com pinça, põe em foco e deita uma luz dourada em cima.

Fotos: Arquivo Revista
Dr. Plinio no Auditório São Miguel, em 1982

Aí está uma nota característica do João, é parte do feitio dele. O tempo inteiro que ele está comigo, não dá impressão de estar observando tanto. Ele não me pergunta: “O senhor poderia me esclarecer tal coisa, para eu explicar melhor no Jour le Jour?” Digo mais, eu acho que ele gosta mais de adivinhar do que de receber explicação.

Uma boa parte das minhas reuniões meu João passa anotando, e tenho a impressão de que ele anota muito bem. É um observador atentíssimo, um excelente perguntador, um ouvidor exato de todas as conferências, no meio do tumulto de ocupações que ele tem.

Nessa ação do João entra qualquer coisa de sobrenatural. Eu desconfio que ele possui uma intuição enorme, fruto de uma graça mística segundo a qual ele fala, e que a capacidade dele vem daí. Nesse sentido, ele tem uma verdadeira missão interna no Grupo, não se pode negar. Eu vejo pelos efeitos, que são ótimos.

Eu acho que cada Jour le Jour é um lance da história do Grupo.8

(Continua no próximo número)

1) Conferência na qual Dr. Plinio comentava os acontecimentos mais recentes ocorridos no Brasil e no mundo, recolhidos de jornais.

2) Rodrigo Díaz de Vivar (*1043 – †1099). Nobre espanhol, conhecido com o cognome de Cid Campeador (Senhor Campeão), que se tornou a imagem do cavaleiro ideal: valente, leal, justo e piedoso.

3) Nobre, fundador e primeiro monarca do Reino das Astúrias, Espanha (*685 – †737). Iniciou a resistência contra a invasão islâmica na Península Ibérica.

4) Do francês, literalmente: “grande retorno”. No início da década de 1940, houve na França extraordinário incremento do espírito religioso, quando das peregrinações de quatro imagens de Nossa Senhora de ­Boulogne. Tal movimento foi denominado de “grand-retour”, para indicar o imenso retorno daquele país a seu antigo e autêntico fervor, então esmaecido. Ao tomar conhecimento desses fatos, Dr. Plinio começou a empregar a expressão “grand-retour” no sentido não só de “grande retorno”, mas de uma vinda de uma torrente avassaladora de graças que, através da Virgem Santíssima, Deus concederá ao mundo para a implantação do Reino de Maria.

5) Do francês: bravura ligeiramente provocativa.

6) Conferência dedicada especialmente aos mais novos.

7) Do francês, literalmente: lição sobre coisas. Diz-se do ensino feito através da observação da vida quotidiana e seus pormenores.

8) Para a elaboração do presente número foram compilados excertos de conferências realizadas entre 1964 e 1995.

Artigos populares