Serviço, obediência e holocausto em prol da Igreja, nascidos do enlevo pelas perfeições de Deus, são atitudes próprias da alma onde lateja um autêntico amor à Cruz de Nosso Senhor Jesus Cristo. É o que Dr. Plinio nos convida a compreender, ao comentar — numa série de conferências que equivalem a um retiro espiritual — a “Carta circular aos amigos da Cruz”, escrita por São Luís Grignion de Montfort.
São Luís Maria Grignion de Montfort escreveu uma obra com um título glorioso: “Carta Circular aos amigos da Cruz”. Por ser pequena, deu-lhe a forma de carta. A julgar pelo título, foi redigida para afervorar certo número de pessoas conhecidas do santo, particularmente amigas da Cruz ou, pelo menos, com um começo de amor a ela, numa época [início do século XVIII] onde se era pouco amigo da Cruz1.
Ardorosa linguagem do santo
Esse é um pormenor importante, e não de interesse meramente livresco. Porque uma é a linguagem empregada com os inimigos, outra, com os amigos. Há ainda um terceiro modo de falar, utilizado com os irmãos, aqueles que vibram de entusiasmo pelo mesmo ideal que o nosso, aos quais não queremos apenas afervorar, mas impulsionar nas sendas desse ideal. São Luís escreve numa linguagem que convém às duas últimas categorias, embora mescle considerações diversas.
Com efeito, alguns pensamentos são próprios a estimular o amor à Cruz, outros constituem defesas ou apologias da Cruz, para serem usados em polêmicas contra os inimigos dela. Analisaremos ambos os aspectos, para bem compreendermos a linguagem e o significado da Carta, que assim começa:
Já que a divina Cruz me esconde e me interdiz a palavra, não me é possível e nem desejo vos falar, para vos externar os sentimentos do meu coração sobre a excelência e as práticas divinas de vossa união na adorável Cruz de Jesus Cristo.
Hoje, entretanto, último dia de meu retiro, saio, por assim dizer, da atração do meu interior, a fim de esboçar neste papel alguns leves dardos da Cruz, para com eles transpassar vossos bons corações. Prouvesse a Deus que, para acerá-los, bastasse o sangue de minhas veias, em lugar da tinta da minha pena! Mas, ai de mim! Mesmo se ele fosse necessário, é por demais criminoso. Que o espírito de Deus vivo seja, pois, a vida, a força e o teor desta carta; que sua unção seja a tinta de meu tinteiro; que a divina Cruz seja minha pena, e vosso coração, o meu papel!
No exórdio de sua carta, São Luís Grignion se refere ao amor nascido do enlevo pelas coisas de Deus, à luz do qual as almas se tornam capazes de abraçar a Cruz de Nosso Senhor
Graça especial para se ter amor à Cruz
Percebe-se nesse trecho certo estilo próprio à literatura da época, mas também um pensamento teológico muito profundo. Ou seja, para tudo quanto é bom, faz-se necessária a graça de Deus, e de modo especial no que diz respeito à cruz. Porque o homem é tão egoísta e infenso ao sofrimento que, se não houver uma graça particularmente intensa, pujante, a ação de qualquer pessoa é incapaz de despertar noutra o amor à Cruz de Nosso Senhor Jesus Cristo.
Por exemplo, a graça do enlevo pelas coisas celestes, pelas coisas de Deus, proporciona a uma pessoa coragem para que ela carregue grandes cruzes como se fossem pequenas. Quer dizer, esse amor latente por Deus, por Nossa Senhora, pelas grandezas do Céu agem com tal profundidade no homem que, por um ato de consentimento livre, consciente — e ao mesmo tempo subconsciente, o que parece parodoxal, porém verdadeiro — ele se deixa transformar. E o amor à Cruz é o sintoma dessa mudança de mentalidade.
Esse é um ponto fundamental na vida espiritual. Pois quando no coração de alguém cresce o enlevo por algo, ele fica apetente de obediência, serviço e holocausto, que são cruzes. Fazer a vontade de outrem e não a própria: obediência; servir ao próximo e não a si mesmo e a seus egoísmos: serviço; e mais que tudo isso, o holocausto, o sacrificar pelo outro o que se possui, até a imolação da própria vida. Essas três atitudes de alma constituem cruzes e são a substância de toda cruz que existe na Terra.
Pode-se supor que é a esse amor nascido do enlevo pelas coisas de Deus, o qual torna as almas capazes de abraçar a Cruz, é a essa graça especial que se refere São Luís Grignion no exórdio de sua carta.
“Coragem! Combatei valentemente!”
E prossegue:
Estais reunidos, amigos da Cruz, como outros tantos soldados crucificados para combater o mundo, não fugindo dele como os religiosos e religiosas pelo medo de serdes vencidos, mas como valorosos e bravos guerreiros no campo de batalha, sem largar o pé e sem voltar as costas. Coragem! Combatei valentemente!
Como já vimos, uma das características de São Luís Grignion é o espírito combativo, com um quê de fogoso no sentido de apostrofar os erros dos adversários. Então ele, que fundou uma congregação religiosa, reunindo pessoas para fugirem do mundo, conhece a variedade dos dons que existem na Igreja. E compreende que certas almas são chamadas a permanecer no mundo para combater o mal. Porque viver no mundo é sinônimo de lutar contra o mal. É para esses que ele escreve: “valorosos e bravos guerreiros no campo de batalha…” Apenas isso? Não. “Coragem! Combatei valentemente!” Quer dizer, é preciso tomar a iniciativa em defesa da virtude, contra o pecado.
“Imaginamos um missionário que fala e brande um crucifixo para os seus ouvintes, convidando-os à luta em defesa da virtude contra o pecado: bravos guerreiros, combatei valentemente!”
Essas palavras se compaginam com a forte personalidade de São Luís Grignion de Montfort, fazendo-nos imaginar um missionário que fala e brande um crucifixo para os seus ouvintes, convidando-os à luta. Nesse trecho há qualquer coisa do timbre de voz de nosso santo, que é insubstituível. Aqui transparece sua psicologia inteira: abrasado de entusiasmo, não passando um minuto sequer sem um amor a Deus superlativo, lucidíssimo, com os olhos voltados ao mesmo tempo para o ideal que o enlevava e para a ação por ele contemplada. Portanto, da chama da contemplação passava para o ato, realizando um apostolado dardejante, levando muitas pessoas consigo. Era um braseiro ardente, cujo calor comunicativo se sente nessas palavras.
Mais anjo do que homem
Tem-se a impressão, aliás, ao lermos esses escritos de São Luís Grignion, de vermos nele mais um anjo do que um homem, com o amor próprio de um serafim. Constantemente aceso e deitando labaredas em torno de si. Ele possuía uma castidade primeira, uma candura inicial, uma incontaminação da sabedoria, sem nenhuma concessão às máximas mundanas, aos desvios da Revolução. Era um reflexo do espírito de Nossa Senhora agindo entre os homens, como um anjo.
Como se vê, nesses comentários procuramos fazer sentir o tom de voz e quase o calor pessoal de São Luís Grignion de Montfort, pois para nós é indispensável compreendermos a personalidade dele, que tanto nos fala à alma. Afinal, ele é o santo da verdadeira devoção a Nossa Senhora, a qual alcança para seus devotos a plenitude de dons como este do amor à Cruz, enaltecido por São Luís nessa sua admirável carta circular.
(Continua em próximo artigo)
(Extraído de conferência em 20/5/1967)
1) Grandet, o primeiro biógrafo de São Luís Grignion, assim escreveu: “O Pe. Grignion, apoiado na máxima de Jesus Cristo segundo a qual, para ser do número de seus discípulos, é preciso renunciar a si mesmo, carregar sua cruz todos os dias e segui-Lo, empenhava-se no inspirar a todos os povos o amor à cruz, de qualquer espécie que esta seja: doença, injúrias, humilhações, desprezos, etc. E ele pregava esta grande verdade, mais eficazmente por seus exemplos do que por suas palavras. E para incentivar essa devoção tão contrária aos sentidos e à natureza corrompida, constituía associações de várias pessoas sob o título da Cruz; dispunha-lhes regras e práticas espirituais aprovadas pelos bispos. Erguia grandes cruzeiros ao final de cada missão, com solenidade, e distribuía pequenas cruzes bordadas aos que haviam participado dos 33 sermões das suas missões. Compôs diversos cânticos em louvor da Cruz e imprimiu uma carta circular dirigida aos amigos da Cruz, contendo máximas evangélicas necessárias à salvação.” (Œuvres completes de Saint Louis-Marie Grignion de Montfort, Éditions du Seuil, Paris, 1966, p. 217-218.)