Dr. Plinio dava enorme importância à formação do tipo humano verdadeiramente católico. Desde menino, ele observava detida e amorosamente as altas qualidades morais de Dona Lucilia, e através dessa admiração enlevada foi destilando o tipo humano ideal.
Há um ponto central que estava no meu espírito desde muito menino, e que foi cobrindo sucessivos campos até o momento presente. O curioso é que esse ponto, sendo sempre o mesmo, ilumina com sua luz temas diversos. Mas isso não quer dizer de nenhum modo que, havendo a migração da luz de um tema para outro, o tema anterior foi abandonado, esquecido ou passado para segundo plano. Mas as coisas se somam como os andares de um prédio.
Um princípio de justiça
Em menino, houve um primeiro período em que eu estava todo voltado a admirar certas disposições, qualidades de alma, em determinadas pessoas nas quais notava uma luz sobrenatural.
Quando falo disso, lembro-me principalmente de mamãe, do seu afeto, enfim, de tudo quanto tenho explicado, mas também de certa respeitabilidade que ela possuía e à qual eu queria tanto quanto o próprio afeto.
Para a minha ótica, Dona Lucilia tinha essa alta respeitabilidade, não só enquanto minha mãe e, por isso, com todo o respeito que naturalmente o filho tem por sua mãe, porém, mais do que isso, notava-se como ela sabia se fazer respeitar em relação a terceiros. Não com o respeito que tem como intenção o domínio, nem propriamente uma determinada precedência que deveria fazer-se sentir sobre os outros, mas era uma disposição de alma de quem se olhava com respeito a si mesma, e por uma disposição natural esperava o reconhecimento dessa respeitabilidade da parte de outros. E se esta respeitabilidade faltasse, seria capaz de fazer cessar uma relação, um afeto ou qualquer outra coisa.
Era uma respeitabilidade por um princípio de justiça, proveniente do sentir em sua pessoa essa respeitabilidade e querer que os outros a reconhecessem por justiça. Não era, portanto, uma questão de faceirice, de preeminência.
Antíteses harmônicas formando um todo moral
Isso pode ser compreendido facilmente, sem tantas digressões, se considerarmos a fotografia dela, em Paris. Pelo menos para meus olhos de filho, há ali uma alta respeitabilidade, muito mais moral do que social, mas onde a respeitabilidade social é um elemento através do qual essa respeitabilidade moral se mostra, e que não exclui de nenhum modo a manifestação de um grande afeto e de tudo aquilo que eu quero nela.
Esses vários predicados se somando constituíam uma espécie de antíteses harmônicas, que faziam um todo moral exquis1 para se contemplar.
Ao lado, e como complemento disso, havia nela um senso das contas, pesos e medidas muito apurado, sem nada de cálculos. Por isso eu emprego a palavra “senso”.
No modo de tratar as pessoas, ela dava tudo aquilo que a pessoa merecia, com uma espécie de boa vontade de ver o mérito do outro até onde esse mérito existia. Não era, portanto, uma coisa assim: diante de alguém, começa a analisar se mereceu ou não a gentileza dispensada na entrada, quando se cumprimentaram. Ou então pensar: “Ele tem tal qualidade; essa qualidade é maior ou menor do que a minha? Mas também tem tal defeito, e esse defeito eu não tenho…”
Não é isso! É um modo de se relacionar que corre como um rio: largo, generoso, sem contas de tostões.
Destilando o tipo humano ideal
Lembro-me, por exemplo, de que nossa preceptora, a Fräulein2 Mathilde, era uma mulher muito inteligente e muito viajada, tendo sido governanta numa série de casas da nobreza europeia. Sabia, portanto, muito mais coisas do que mamãe poderia conhecer a partir da pequena São Paulo daquele tempo.
Várias vezes as vi conversando, nunca como duas iguais, mas muito amistosamente. No total, ficava claro que mamãe era patroa, pertencente a uma tradicional família paulista; e ela, uma alemã instruída, viajada, culta, mas não mais do que isso.
Como Dona Lucilia fazia sentir essa diferença? Ela não fazia sentir, desprendia-se dela. Mamãe não tinha isso como um desses faroletes de cinema para indicar o lugar: “Olha, tenho isto, tenho aquilo!” Não. Como o curso do Rio Amazonas, assim eu imagino o fluir das qualidades dela.
A Fräulein Mathilde não tinha nenhuma vontade de transpor esse limite, e conversava com ela muito normalmente, com o respeito devido, mas também não deixando de fazer valer o que ela tinha aprendido pelos lugares onde estivera.
Esta respeitabilidade de Dona Lucilia não provinha do dinheiro. Aliás, o dinheiro não proporciona isso. Pode até levar as pessoas a fingirem um respeito, mas que não será autêntico.
Eu apreciava altamente essa respeitabilidade, e a considerava como fazendo parte do conjunto de predicados que uma pessoa deveria ter. Assim, ia se destilando aos poucos, na minha mente de menino, o tipo humano ideal.
Descendo com charme a rampa da velhice
Por uma questão de ótica, toda criança, quando é muito pequenininha, julga seus pais enormes, maduros, provectos, inteiramente formados e com um domínio sobre todas as situações, uma coisa extraordinária!
Mamãe era muito madura de espírito, como se nota, por exemplo, por aquela fotografia à qual me referi. Ela me parecia a própria manifestação da maturidade plena. Por causa disso, um juízo emitido por ela era, para mim, uma coisa definitiva. Estava liquidado o caso, não tinha mais nada a acrescentar.
À medida que fui tomando corpo, ficando maduro, ela descia com nobreza, com charme, a rampa da velhice, e em certo momento comecei a achá-la miúda. E eu, que toda a vida chamei-a de mãezinha, comecei a notar o quanto ela era pequenininha, e até a brincar com ela a esse respeito, o que eu fazia tão naturalmente, que nem me passou pela mente se ela gostava ou não.
Revendo agora, noto que não sei se ela chegou a tomar consciência dessa mudança de clave, de tal maneira isso correu com naturalidade entre nós.
Achava-a graciosa nas suas dimensões, com qualquer coisa de frágil que a velhice ia pondo nela, mas que não tirava nada do que ela possuía de augusto, de sério, de respeitável. Pelo contrário, acentuava.
(Extraído de conferências de 13/8/1983 e 22/8/1992)
1) Do francês: requintado.
2) Do alemão: Senhorita.