viernes, noviembre 8, 2024

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Inocência e senso do combate

Com base na experiência pessoal e na observação da realidade, Dr. Plinio descreve e analisa as relações existentes entre o instinto de sociabilidade, o senso da alteridade, a solidão, o subjetivismo e suas implicações na preservação da inocência.

A sociabilidade se desenvolve perfeitamente, como tudo o que existe, na medida em que haja boas condições de vida em sociedade. Então o instinto de sociabilidade tem elementos para se exercer. Naturalmente, quando existe apenas o que lhe é oposto e não o que lhe é propício, esse instinto se atrofia e se desvia.

Senso da alteridade

Ao longo do processo revolucionário, o instinto de sociabilidade padeceu de um desvio profundo, que a meu ver provém de uma deformação, uma deturpação progressiva da ideia da alteridade. Na normalidade, as alteridades estão postas de um modo sadio, reto, por assim dizer espontâneo, apesar dos defeitos que o pecado original coloca em tudo.

Um caçador no Tirol ou um cantador de trovas baianas não se põe o problema sobre se ele é um indivíduo distinto em relação a outro. Quer dizer, tudo se coloca para ele espontaneamente direito, assim como diante de um homem com a vista correta todos os objetos se apresentam normais, e não se põem problemas oftalmológicos. O homem com vistas boas acha aquilo espontâneo: abriu os olhos e viu, está acabado.

Assim é a alteridade em relação ao instinto de sociabilidade.

Antigamente esse instinto era enormemente favorecido pela existência das sociedades intermediárias, entre o indivíduo e a sociedade geral, de maneira que a pessoa tinha uma sucessão de distâncias variadas em torno de si. Muito próxima, a família pujante, numerosa, com um mundo de filhos, com parentela; o que não se dava só nas casas nobres ou burguesas, mas no povinho também. Então, o homem tinha aquele ambiente que o cercava e constituía uma atmosfera para ele. Quando a família é numerosa, ela forma uma sociedadezinha de um grande empuxe e de uma grande vitalidade.

O indivíduo tem perto de si um bando de irmãs e irmãos que são, ao mesmo tempo, quase ele mesmo olhando para si próprio, mas já não são ele mesmo. De maneira que, de um lado, entre ele e cada irmão há um abismo e, de outro, como que — sublinho a expressão “como que” — não há alteridade.

Segue-se o círculo da parentela no qual esse fenômeno se dilui, mas ainda existe. Depois, também compondo isso, círculos de pessoas agregadas à família que não são apenas os amigos desses ou daqueles familiares, mas da família inteira, fazendo no âmbito familiar mais ou menos o papel do estrangeiro residente e semiadaptado num país: ele enriquece o país pela sua presença e se enriquece com o que o país lhe proporciona. Não são, portanto, indivíduos desgarrados, mas membros daquele clã.

O senso da alteridade é convidado, assim, a dar sucessivos passos e se torna robusto, porque está apoiado nessas distâncias que separam o homem dos vários círculos em meio aos quais ele vive.

Senso da realidade objetiva

Ligado a este senso harmonioso e bem construído da alteridade, existe outro: o senso da realidade objetiva, externa ao sujeito. Isto é, a noção clara e verdadeira da existência do mundo externo com todas as gamas intermediárias que o compõem, desde o prosaico até o admirável, compreendendo que a realidade é esta e que só pensamos e agimos adequadamente em função da verdade. São os corolários da inocência.

Gustavo Kralj
“Retrato de uma criança” – Museu Metropolitano de Arte, Nova Iorque, EUA

Contudo, a inocência faz o homem desejar uma vida que vai muito além dessa realidade que ele, ao mesmo tempo, ama e sente-se exilado dentro dela. E quanto mais ele percebe que ama, mas não cabe dentro da realidade, tanto mais sente sua superioridade em relação àqueles que estão inteiramente satisfeitos dentro do mundo. Então o indivíduo chega à conclusão de que a nota distintiva de seu talento e de sua superioridade é essa inconformidade com a realidade.

No primeiro voo, ele procura algumas coisas da realidade que lhe parecem mais belas, e logo depois começa a imaginar uma realidade na qual só exista o mais belo. E sem negar filosoficamente a realidade, é levado a optar por uma de duas vias.

Uma é a do simbolismo e da Fé, que conduz ao metafísico e ao sobrenatural. Esta via satisfaz inteiramente os anelos da inocência e permite-lhe — pela esperança e pela interpretação, seleção e ordenação da realidade, compondo, assim, objetivamente uma realidade que não existe — voar mais alto e satisfazer o que tem de mais nobre. Este é o caminho acertado pedido pela inocência.

A alma chegaria, assim, a Deus por meio de vários graus, dos quais alguns já não são os seres existentes, mas os que poderiam existir. Isso não constitui uma negação da realidade, mas uma complementação do real com algo de criativo. Não é uma revolta contra a realidade, mas alimenta as nossas esperanças de chegar à realidade que nos aguarda do outro lado do rio da morte, e para a qual tendemos.

Desejo de ser adorado

A outra via pela qual o homem é convidado a optar está ligada ao problema da solidão e do subjetivismo.

Tomemos, por exemplo, um rapaz, filho único, obrigado a conviver em ambientes onde ele não se encaixa, a não ser com muita dificuldade. Ele tem a necessidade de, em certas horas, imaginar um ambiente que não existe, sob pena de não aguentar. Ele não se pergunta se imaginar algo irrealizável é legítimo, mas apenas constata que é necessário.

Diante de uma ordem natural tão avessa a ele, sente-se no direito de fabricar outra imaginária na qual ele caiba. Não conseguindo construir uma circunstância extrínseca inteiramente como ele quer, e tendo uma necessidade premente de viver nisso que não lhe foi dado como seu hábitat próprio, o rapaz fica diante de um dilema: ou imagina ou perece. E acaba por embarcar no irreal e adultera o senso da realidade.

A partir daí, abrem-se novamente diante dele dois caminhos:

Não se resigna com a solidão e procura realizar o sonho, jogando-se nas aventuras amorosas ou financeiras. Neste caminho, ele despreza o subjetivo e pensa ter-se lançado numa realidade objetiva. De fato, pelo contrário, procurou transformar a realidade, forçá-la, violentá-la para ser conforme a um sonho irreal que estava em sua cabeça.

Às vezes dá num tipo de pessoa a qual, vendo que essas tendências poderiam nascer nela, esmaga-as com horror, se trivializa e fica uma espécie de positivista. Em nossos dias, a evasão mais cômoda para isso é dentro da mecânica. Tenho a impressão de que muita mania de lavar e conservar automóvel corresponde a uma evasão para esse terreno.

O outro caminho é a pura interiorização. O sujeito sonha com uma felicidade que, na maioria das vezes, não seria conquistada por glórias em face de outros, mas tendo um tipo humano que ele gostaria de possuir e, como tal, compreendido e adorado.

Desponsório entre o sonho e a realidade

Encontramos um modelo da posição equilibrada, verdadeira, em Carlos Magno. Ele concebeu um alto ideal, batalhou como uma fera para realizá-lo, recrutou quem com ele lutasse para concretizá-lo, caminhou até o fim fiel a esse ideal, e morreu deixando-o realizado.

O inocente é um homem tão feliz quanto se pode ser nesta Terra; e é infeliz porque está num vale de lágrimas.

AndreasToerl (CC 3.0)
Estátua de Carlos Magno – Aachen, Alemanha

Já na concepção do ideal, o futuro está delineado. Haverá dificuldades, tentações, acontecerá de tudo, mas ele anda. E se ao invés de ele viver o quanto viveu, durasse duzentos anos e morresse, portanto, cento e tantos anos depois, tudo quanto ele tivesse inicialmente na cabeça se apresentaria continuamente como tendo frutificado, desenvolvido e aprimorado. O sonho estaria sempre a jardas além da realidade obtida.

Havia uma espécie de desponsório entre o sonho e a realidade. Ele sonhava o realizável e realizava o que sonhou.

Formar o homem assim é tirá-lo do pantanal do positivismo e da mera imaginação, do divórcio com a realidade.

Não se trata de um mundo dos sonhos, mas do mundo visto aos olhos da inocência e da Fé. Este seria o sonho da alma inocente.

Por exemplo, Santa Mônica com Santo Agostinho. Ela queria converter o filho, mas tudo me leva a supor que Santa Mônica possuía uma ideia de quem seria o filho dela. Daí aquele pranto antes e aquela alegria depois da conversão. Ela sabia que a missão dela não era derrotar hereges. Santa Mônica precisava ter Santo Agostinho, depois este faria o caminho para o qual ela era cabeça de ponte.

O sonho do inocente coloca o homem diante da verdade total. Seria mais ou menos como um indivíduo que estivesse em cima de uma pedra sobre a qual bate um raio de luz, e compreendesse o que aquele granito comum tem de sólido. Entretanto, compreende também que ele não pode viver indefinidamente sobre aquele granito, mas deve se elevar naquele raio de luz.

Inocência e felicidade

Um positivista negaria a condutibilidade daquele raio de luz, e diria: “Quem entra nesse raio de luz? Tu, inocente, com teus sonhos afundarás!”

O inocente não sabe o que responder, mas continua a andar, porque ele é levado pelo princípio axiológico que lhe diz: “Enquanto fores inocente, anda, porque os Anjos te ajudam!” Então ele tenta devagar, temperantemente.

Aí a solidão, de um problema passa a ser para ele uma bênção, um calvário no qual ele sente forças para subir mais e mais pelo raio de luz.

Shakko (CC 3.0)
São Luís Gonzaga

Quando o indivíduo peca em algo contra a inocência, duvida dela porque ela desafia demais o senso dos demais, e isso o deixa inseguro. Dou muita importância a isso: há um determinado momento em que o inocente é tentado a duvidar de sua inocência, pensando que ela é o pior dos sonhos porque — imagina ele — quanto mais virtuoso, tanto mais quimérico.

Para manter-se inocente, a pessoa precisa ter muito senso do combate, muita honestidade.

Se ele mantém essa batalha da inocência, internamente é um homem feliz? A resposta é: sim e não. Ele é um homem tão feliz quanto se pode ser nesta Terra; e é infeliz porque está num vale de lágrimas.

Se a felicidade está em não sofrer nada, então ele não é feliz. Se a felicidade é ter gáudios sérios, sólidos, verdadeiros, substanciosos, embora com sofrimentos, ele então é um homem feliz. Depende da tônica que ele ponha na questão.

Ele precisa quase que diariamente voltar a esse ponto, pensar nisso para não ceder, de tal maneira o mundo mente dizendo que felizes são os que vivem no pecado, e o inocente é o errado, o torto, o infeliz.

Diante das pessoas entregues ao pecado, o inocente se sente completamente recusável e recusado, mais ou menos como alguém que tivesse nascido com a cabeça virada para trás se sentiria diante do comum dos homens.

Aí muitos fraquejam! É a batalha neste vale de lágrimas. A Igreja é militante, e para isso existe a piedade, os sacramentos, etc. O inocente, no fundo, é um homem mais feliz do que todos os outros.

(Extraído de conferência de 4/1/1984)

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