Porque vivia intimamente unida ao Sagrado Coração de Jesus, tinha Dª Lucilia seus olhos postos também em Maria Santíssima e na Santa Igreja Católica. Atraída pelas infinitas perfeições do Divino Mestre, pela incomensurável santidade de sua Mãe Virginal, pela formosura do Corpo Místico de Cristo, ela Os amou o quanto pôde.
Como a casta esposa do Cântico dos Cânticos, ela bem podia dizer a Nosso Senhor: Atraí-me; eu correrei atrás da recendência de vossos perfumes (Cânt 1, 3). Desta devoção aos Sagrados Corações brotava a fonte que irrigava suas qualidades morais. Assim, embebida de piedade, chegou ela aos últimos dias de sua existência.
Não são de admirar as palavras de um prelado que uma vez ou outra a ouvia em confissão, quando ia celebrar a Santa Missa no apartamento dela. Ao lhe pedirem certo dia que novamente a atendesse, respondeu:
— Eu vou confessá-la, mas, coitadinha, ela não tem o de que se acusar.
Este episódio repetiu-se mais duas vezes e foi presenciado por algumas pessoas.
“Se eu fosse tratada assim, gostaria de viver mais 400 anos”
Tanto mais Dª Lucilia se assemelhava ao Divino Salvador, menos era compreendida. Naqueles últimos anos de sua vida, cada vez eram menos numerosas as pessoas que se sentiam verdadeiramente atraídas pelo Sagrado Coração de Jesus. Nesse mundo assim, Dª Lucilia se tornava uma exilada.
Dr. Plinio, como nunca, redobrava seu carinho para com ela, mostrando-lhe dessa forma que o “filhão” a compreendia e lhe queria bem em toda a medida do possível. Além de lhe dirigir a palavra, procurava, por meio da fisionomia, dos olhares e dos gestos, dizer o que o vocabulário humano não é capaz de exprimir. Também não lhe poupava elogios, em tom de ligeiro gracejo, e literalmente a inundava de agrados.
O que sentia quem presenciava tais cenas foi expresso um dia por alguém da família, ao dizer a Dr. Plinio:
— Se eu fosse tratada assim, gostaria de viver mais 400 anos…
Os funerais das recordações
Certo dia Dª Lucilia permaneceu em seu quarto por longo tempo, remexendo papéis guardados numa gaveta da mesa de toilette. Sem ela perceber, Dr. Plinio a observava. Com dificuldade, devido à catarata, examinava cada um dos papéis, reunia-os melancolicamente e em seguida os rasgava. Tendo tomado como regra nunca desgostá-la, Dr. Plinio nada fez para impedir aquela destruição.
Tratava-se de escritos diversos, muitos dos quais Dª Lucilia conservara a vida inteira. Pressentindo que em breve entregaria a alma a Deus, ela mesma quis pôr em ordem seus pertences. Era uma ação ditada pelo desejo de não dar trabalho a outros após seu falecimento, e por uma lealdade e firmeza de alma, certamente resultante de uma reflexão como esta: “A morte se aproxima e, vista de frente, a conduta razoável é esta”.
Assim, procedia aos funerais de suas recordações, antes de suas próprias exéquias.
Dias depois de ela ter morrido, verificou-se que havia deixado apenas o essencial. Dr. Plinio então notou que sua mãe jogara fora muitos papéis que ele teria gostado imensamente de conservar, como, por exemplo, várias agendas nas quais ela anotava, com escrupulosa precisão, as despesas da casa, contas feitas com esmero, e quantas outras lembranças…
Desfazer-se tranqüilamente de todos aqueles papéis cujo teor talvez nos fizesse conhecer outros aspectos de sua bela alma era, da parte dela, um sinal da serenidade com que ia transpor os umbrais da eternidade.
Para que seu filho não sentisse tanto sua morte
Ao mesmo tempo que dispunha suas coisas para a derradeira viagem, Dª Lucilia desejava também preparar seu filho para a dolorosa separação. Alguém lhe dissera que Dr. Plinio ficaria chocadíssimo com sua morte, e lhe aconselhara diminuir as manifestações de afeto para com ele, a fim de que não sentisse tanto sua falta.
Dona Lucilia deixou-se convencer pelo argumento e, dominando seu enorme benquerer, retraiu um pouco seus carinhos. Esse propósito, ela o cumpriu com uma precisão comovedora. A este píncaro de abnegação se elevou sua alma materna!
Só pouco tempo antes de morrer, ela contou a Dr. Plinio que estava agindo desse modo em virtude do conselho recebido.
Nesta atitude, quanta calma, quanta segurança! Os vagalhões que a assaltaram em nada tinham penetrado seu tabernáculo interior: ela estava se preparando para o Céu.
Doçura e resignação
Pelo fim de 1967, Dª Lucilia, já com 91 anos, encontrava-se na contingência de se locomover em cadeira de rodas, devido ao reumatismo. Uma tênue névoa lhe embaçara a mente no que dizia respeito a assuntos práticos ou concretos, mas não prejudicara em nada sua incrível lucidez no tocante a temas elevados. Apesar da idade, nunca perdia a compostura ou a dignidade. Pelo contrário, mantinha no porte uma impressionante e admirável linha, como nos mostram suas últimas fotografias. Em qualquer posição que estivesse, mantinha a cabeça sempre firme. Seu meigo olhar conservava toda a luminosidade. No modo de falar, com seu inconfundível timbre de voz, suave, respeitoso e aristocrático, estava presente de modo constante a dama paulista de 400 anos.
Seu dia-a-dia era na maior parte dedicado a prolongadas orações. Nas horas de contemplação, sua atitude era de quem dizia: “Tenho tantas coisas que me fazem sofrer, mas na minha alma há tanta paz, tanta ordem; essa ordem é tão boa, e de tal maneira meu espírito a oscula que, embora tudo viesse a faltar-me, eu conservaria intacta minha paz interior”.
Quando estava sozinha, sem perceber que a observavam, causava a impressão de estar inundada de uma doçura resultante de incontáveis atos de resignação, ligada a um grande senso sobrenatural e a uma superior dignidade, sem nada de comum com a paciência deformada por concepções românticas e sentimentais.
Filiais cogitações… sem resposta
Um dia em que Dr. Plinio jantava só com sua mãe, embevecendo-se com as palavras, os gestos e a atitude dela, uma singular consideração lhe passou pelo espírito. Emocionado, ele recordará:
O melhor não estava na conversa… Estava na presença dela! E, portanto, eu mantinha a prosa quase por polidez, para poder me regalar com sua presença. Passou-me de súbito pela mente esta reflexão: como as circunstâncias do mundo de hoje tendem a tornar cada vez mais raro que haja mãe e filho que se queiram tão bem como nós dois! E como é difícil haver mãe como ela!
Lembrei-me, então, do convívio que tivéramos tantas vezes naquela sala. Dada a raridade desse relacionamento, desse ambiente, naturalmente me veio ao espírito o seguinte: qual será o desígnio da Providência a respeito de nós dois? Aqui está uma sala onde estamos, a sós, uma velha mãe e um filho, homem já maduro. Passa-se rapidamente da maturidade para a velhice, e desta para a morte. O tempo traga tudo. Não acontecerá que antes do período normal a Providência determine de nos levar embora, tirar-nos desta vida, a ela e a mim? E assim os fatos se passarem como se um tufão entrasse nesta sala de jantar e nos arrastasse?
E então se extinguiria este último torrãozinho onde, como em poucos lugares do mundo de hoje, havia um filho que queria sua mãe tanto quanto podia, e a mãe o merecia com uma abundância e uma amplitude difíceis de calcular… E uma mãe que queria bem a seu filho com todo o coração.
Esta salinha de jantar é um dos poucos torrõezinhos no qual Nossa Senhora ainda conserva um resto de seu reinado sobre os corações. Neste mundo em que tudo quanto é d’Ela vai sendo destruído, será que a Providência permitirá dissolver-se ao vento também tais torrõezinhos?…
Enfim, cogitações mais ou menos melancólicas como estas me passavam pela mente, e para elas eu não tinha resposta…
Dir-se-ia feita para ter milhares de filhos
O feitio do amor materno de Dª Lucilia dava a impressão de que sua alma esperava ter mil filhos, e isto constituía a grande incógnita de sua vida.
A Providência lhe infundira no coração uma enorme capacidade de afeto, bondade e proteção, que parecia fadada a morrer sem ter podido exercer-se inteiramente. O plano de Deus em relação a ela lhe parecia inexplicável, e foi uma das tristezas de sua vida: aquele amor maternal, que pudera dedicar, é verdade, a dois filhos, mas que em grande parte ficara guardado no escrínio de sua alma, sem condições de ser aplicado.
Várias vezes analisei mamãe — comentaria mais tarde Dr. Plinio — e, não podendo imaginar o que depois sucedeu, olhava para ela e pensava: “Há algo de axiológico na vida dela que parece não estar bem acertado. Ela possui uma enorme ternura; foi afetuosíssima como filha, afetuosíssima como irmã, afetuosíssima como esposa, afetuosíssima como mãe, como avó, e mesmo como bisavó. Ela levou seu afeto até onde lhe foi possível.
“Mas, eu tenho a impressão de que alguma coisa nela dá a nota tônica de todos esses afetos: é o fato de ela ser, sobretudo, mãe! Ela possui um amor transbordante não só para com os dois filhos que teve, como também para com filhos que ela não teve. Dir-se-ia feita para ter milhares de filhos, e seu coração palpita do desejo de conhecê-los. Entretanto, esses filhos não vieram, nem poderiam vir nesse número exorbitante. O que quis a Providência com isso?”
Via-se que mamãe esperava uma certa coisa da vida. Não na ordem do prazer, nem do realce, nem de algo semelhante. Ela esperava uma certa reciprocidade de mentalidade, uma certa afinidade de pensamento, de temperamento, de modo de ser. Ela era ávida de abarcar um largo afeto, uma imensa consonância com um número enorme de pessoas. E chegou ao último extremo de sua longa ancianidade nessa serena expectativa, calma, um tanto tristonha, mas de uma tristeza luminosa, nobre, sem agitações ou angústias, e com um fundo de certeza de que isso um dia viria…
(Transcrito, com adaptações da obra “Dona Lucilia”, de João S. Clá Dias)