Com profundo senso psicológico, usando de uma linguagem ao mesmo tempo precisa e poética, Dr. Plinio continua a tecer suas reflexões sobre o vasto universo dos temperamentos humanos.
Em anterior exposição evocamos alguns exemplos colhidos no reino animal, para ilustrarmos nossas considerações sobre temperamento. Havíamos tomado o paralelo entre o jacaré e o beija-flor, descrevendo mais as características do primeiro. Vejamos, agora, algumas peculiaridades do segundo.
Um pássaro “relacional”
Dir-se-ia que o colibri quase não se sente a si mesmo. Enquanto o jacaré é um individualista, ele é propriamente um relacional de primeira categoria. Percebe com imensa vivacidade o que se encontra ao seu redor. De longe, vê a flor a ser saboreada, voa em sua direção dando vueltas y vuelteretas, efetuando dois movimentos: um, na aparência perda de tempo, quando esvoaça diante da flor; e outro, quando a oscula com seu bico afilado e sorve-lhe com pressa inesperada todo o néctar desejado. Uma vez alcançado o objetivo, afasta-se com ainda maior celeridade, satisfeito, descrevendo uma trajetória retilínea, à procura de outras delícias.
O colibri, portanto, se relaciona de modo intenso com o mundo à sua volta. E, curioso, como é próprio do relacional, ele não se sente bem quando parado exceto para dormir, ou seja, para perder a consciência de si mesmo. Quando acorda, tem novo comprazimento, tomando contato com as coisas, procurando-as, encontrando-as, esvoaçando…
Creio ser um engano imaginar que ele só gosta de flor. Devo confessar que observei, desconfiada e atentamente, alguns poucos colibris, e estou perscrutando os fundos de minha memória para dar uma visão de conjunto sobre este pássaro. Quer me parecer que ele também se agrada muito com o ar e com o vento. Basta considerá-lo no seu vôo, para perceber seu contentamento e euforia. Assim como o jacaré, emparafusado na margem do rio, está derramado, o beija-flor, esvoaçando, sente a felicidade de fender o ar. A mim, dá-me a impressão de que em cada centímetro do seu vôo se desprende para ele uma forma de energia diferente, vinda das coisas e da terra. Ser-lhe-ia por demais monótono ficar sujeito à mesma energia. O que o satisfaz é a mudança, o sentir em si a harmonia das vibrações que variam, e isso indica seu caráter eminentemente relacional.
Sendo pequenino, deleita-se em criar um “ventinho” com seu fantástico bater de asas. E as reações que o homem manifesta ao receber uma brisa agradável na face, são análogas às do colibri quando voa de um lado para outro. O prazer do ar o inunda, ele se agrada e se encanta.
Nessa perspectiva, percebe-se portanto que o beija-flor possui um temperamento relacional, em que o próprio modo de ele se sentir abrange o contato com os outros, pede o movimento, e toda a sua constituição, carnatura, plumagem e vitalidade são calculadas de maneira a ele poder se deslocar como o faz.
Pequenino, o prazer do ar o inunda, ele se agrada e se encanta…
Como já frisei anteriormente, os animais não têm alma espiritual, e tudo isso que dissemos se refere ao corpo e, conseqüentemente, a um mundo onde o espírito não está presente.
Esses exemplos poderiam se multiplicar de modo indefinido. Não seria desagradável, aliás, estando num jardim zoológico, observar os temperamentos dos vários animais. Pois, além das muitas espécies, cada qual com sua índole própria, existem as subespécies. Pensemos no mundo dos gatos, tão diferente do dos cães, e as mil subespécies de uns e de outros, divididas por sua vez em indivíduos com peculiaridades distintas, etc. É um universo quase insondável…
No homem, tesouros temperamentais
Voltemos agora nossos olhos para o homem. Ele possui incomparavelmente mais do que tudo isso constatado nos animais, e sou inclinado a achar que o conjunto das disposições observadas nos inúmeros espécimes da fauna, simboliza as formas de movimentos temperamentais possíveis na criatura humana.
Consideremos, por exemplo, o pernilongo. Encantador, quando se o vê mal. Monstro em miniatura, analisado através de uma lupa. Tem um modo de agir traiçoeiro: pousa sobre a pele, à primeira vista agradando e, de repente, mete-lhe o ferrão e vai embora. Ataca quando menos se imagina, não tem força nenhuma mas é destríssimo.
Ora, pessoas há que, ao tratarem com os outros, aplicam de modo semelhante os recursos do pernilongo, e em certas manifestações delas notamos algo do temperamento “pernilongal”. O mesmo se poderia dizer de incontáveis similitudes entre características do mundo animal, aplicadas ao mundo humano. Vemos, então, que tesouros temperamentais carregamos dentro de nós!
E me seja permitido observar: o que esmaga esses tesouros é a sensualidade, porque uma alma hipnotizada pela impureza não tem vontade de prestar atenção em outra coisa e, portanto, não desenvolve essas mil possibilidades que possui.
Pelo contrário, na alma temperante, e por isso casta, existe a potencialidade de desabrochar essas características, pois sua atenção se volta serenamente para todos os lados, colhendo, selecionando e ordenando o que existe de bom aqui, lá e acolá.
“A meu ver, o conjunto das disposições observadas nos mais variados espécimes da fauna, simboliza as formas de movimentos temperamentais possíveis na criatura humana. Em matéria de temperamento, temos incomparavelmente mais do que os bichos…”
Ora amigo, ora inimigo
Vamos percebendo, assim, como temperamento, têmpera, temperado, etc., são conceitos que se ajustam e formam um só todo. Tomando esse todo, podemos dizer como é no homem o temperamento: uma tragédia e uma sublimidade.
Explico.
Todos os seres vivos têm o temperamento servindo ao respectivo fim. O homem é um ser alquebrado, com fratura mais grave do que se lhe tivessem rompido os braços e as pernas. Porque, com freqüência, o seu temperamento pede alguma coisa contrária ao fim dele, verificando-se no seu íntimo um conflito, fruto do pecado original que introduziu essa desordem em nós. O resultado é a luta que devemos travar como uma fera contra nós mesmos, na qual o temperamento nos serve de gládio: para combater as más tendências ou, pelo contrário, para se voltar contra nós e nos fustigar.
Tal situação é, ao mesmo tempo, por alguns lados admirável, e por outros, terrível. Não é difícil notar como os bichos não hesitam, pois não se sentem levados por duas tendências opostas. Assim como uma pedra rola, assim vai o boi atrás do bom pasto, o pássaro em busca do melhor alimento, etc., de um modo que se diria automático. Ora, o homem não é autômato, e nisso há indiscutível nobreza. É nobre cuidar do seu próprio destino, e uma miséria ser escravo de apetências que o levem para onde não deseja. Nessas condições, o temperamento pode ser um amigo ou um inimigo. Este é o drama do homem decaído, entregue ao capricho dos ventos que sopram no seu interior, nascidos da diversidade temperamental.
Como conhecer e ordenar o próprio temperamento
Ao final dessas breves reflexões, chegar-se-ia à conclusão de que parece tarefa impossível conhecer e guiar o próprio temperamento. E, portanto, de nada adianta pensar nesse assunto.
A meu ver, não há propósito em semelhante afirmação.
Tenhamos presente que cada um de nós possui seu tipo de temperamento. De acordo com a nação, o Estado, às vezes a cidade e até a família de onde é originário, seu caráter apresenta especificações, diferenças e peculiaridades. E ainda no seio familiar, o indivíduo demonstra aspectos próprios, tornando-se inconfundível e único com seu temperamento. Quanto a este se trata, pois, de saber como discerni-lo e ordená-lo.
O caráter do homem apresenta diferenças e peculiaridades de acordo com a nação, o Estado, a cidade e até a família de onde ele provém.
Por excelência o alcançamos através do cumprimento da Lei de Deus. Porque face a cada um dos Mandamentos, nossa alma manifesta afinidades e repulsas temperamentais. Por exemplo, o homem de índole violenta não é propenso à mentira, mas sim a transgredir o Não matarás. Já o de temperamento mais débil não é tendente a tirar a vida alheia, mesmo porque pode ser morto e precisa tomar cuidado… Entretanto, há duas formas de debilidade: a dos homens embutidos, fechados, pouco dados à conversa, assemelhando-se à tartaruga no seu casco. Tem-se a impressão de que se poderia deitá-los no chão, pôr-se de pé sobre eles e não fariam um comentário. Ali se deixariam ficar, encolhidos em si mesmos. E existe a fragilidade dos que reagem pela mentira, a arma própria do débil. Isso não impede que possa haver violentos pavorosamente mentirosos, e mentirosos de vez em quando horrivelmente violentos, pois o homem é variável. Ele seria nacarado, se ordenado. Mas, é como um nácar enlouquecido, movendo-se sem beleza nem disciplina, em virtude do pecado original.
“Diante dos Mandamentos, o homem percebe como deve ser, compreende o que precisa apoiar ou combater em si para que vença o lado bom de seu temperamento.”
Diante dos Mandamentos, porém, o homem vai percebendo como deveria ser, e compreende o que precisa apoiar ou combater em si. Pelos dons e virtudes sobrenaturais que iluminam sua inteligência, fortalecem sua vontade, elevam, modelam e ordenam sua sensibilidade, ele parte para essa luta contra os lados maus de seu temperamento, os quais constituem como que um outro homem dentro dele. É o inimicus homo1, que tem uma inteligência sujeita a erro e facilmente claudica, uma vontade tendente ao mal e uma sensibilidade que lhe faz achar agradáveis muitas coisas contrárias à finalidade e à natureza dele, bem como à ordem posta por Deus no universo.
Então se dá o grande entrechoque dos “dois homens”, dos dois temperamentos, das duas vontades e duas inteligências. Importa que o homem bom, o homem novo, vença o mau e o velho, para então, sob o amparo de Nossa Senhora, correspondermos aos desígnios divinos sobre nós: santificando-nos e glorificando o Criador nesta vida, a fim de estarmos com Ele e Maria Santíssima, por toda a eternidade.
1 ) O “homem inimigo”: expressão que tem sua origem na parábola do joio e do trigo (Mt 13, 24-30).