Na continuação de seus comentários ao Salmo 101, tocado a fundo pela beleza e significado desse cântico bíblico, Dr. Plinio recordará a analogia entre a pungente situação do Salmista e um momento decisivo de sua própria existência: aquele em que decidiu abandonar o mundo e as rodas sociais para se dedicar exclusivamente ao serviço de Deus.
Como tivemos oportunidade de comentar anteriormente, nos três primeiros versículos do texto sagrado o Salmista faz um pedido. Em seguida, explica a razão de sua súplica e descreve a Deus o estado miserável em que se encontra, bem como tudo quanto está sofrendo.
Naturalmente, ele se dirige ao Criador, mas tem também a intenção de ser ouvido pelos homens. Deus tem ciência de tudo o que se passa conosco, sem haver necessidade de o declararmos. Porém, quantas vezes nos voltamos para Ele a fim de agradecer um benefício ou exprimir nossa dor por uma infelicidade, uma desdita que padecemos! Nas preces em geral, a alma diz ao Senhor: “Eu Lhe dou graças, estou contente”, ou “sinto-me aflita, angustiada, carente de tal dom”, etc. Embora o Altíssimo conheça a alma de cada um, deseja que o homem converse com Ele.
O transitório da vida terrena
Manifesta-se, então, o pecador arrependido:
Porque os meus dias dissiparam-se como fumo…
Quanta beleza nessa comparação! Para auferirmos sua pulcritude e seu lado tocante, é preciso compreendermos que a civilização daquele tempo possuía ainda muitos traços patriarcais. Sob vários aspectos, o homem vivia mais perto da natureza do que atualmente. Por exemplo, hoje temos a luz elétrica, enquanto na época do Rei David usava-se o fogo como fonte de iluminação. Ora, o fogo deita fumaça, e esta sendo efêmera — forma-se e logo se desfaz no ar — pode ser comparada à vida do homem: transitória e fugaz, dissipando-se como o fumo.
Certo, uma pessoa poderá viver longos anos, mas, que restará dela após a sua morte? Apenas os ossos. Tudo o mais se decompõe e a sua lembrança se esvai como a fumaça. Em muitos cemitérios vemos sepulturas com estátuas, bustos ou notas biográficas referentes aos ali enterrados. Não raro, isso é feito com o receio de que a recordação daquelas supostas celebridades desapareça.
A esse propósito, lembro-se de uma antiga residência construída na Rua da Consolação, próximo ao cemitério de mesmo nome. Casa em estilo característico do século XIX, térrea, grande, com uma espécie de pátio externo para evoluírem as carruagens, pois quando foi edificada não havia automóveis. Do lado de fora dessa mansão podia-se ler numa placa: “Aqui residiu e morreu o Barão de Ramalho”, e a data.
Certa vez, indo de bonde para o Colégio São Luís, passei diante dessa residência, li a inscrição e pensei: “Embora eu não tenha nascido muito tempo depois da morte do Barão de Ramalho, não sei quem foi, e vários dos meus colegas também não sabem. Que adianta essa pertinácia em se agarrar nuns trapos de recordação levada pelo tempo? Meus avós e parentes mais velhos o conheceram. Mas, se eu constituir família, o que saberão a respeito dele os meus filhos e netos?”
O Barão de Ramalho passou pela História ignorado até o momento de atingir a “celebridade” na hora da morte. A lembrança dele dissipou-se como o fumo.
Poucos são os personagens que não se submetem a essa lei do esquecimento e cujos nomes permanecem para sempre. Conta-se que, durante uma visita que o Imperador D. Pedro II fez ao escritor francês Victor Hugo, a neta deste entrou na sala para cumprimentar o monarca brasileiro, instruída para lhe dizer uma palavra amável. A menina o tratou de majestade, e o Imperador a interrompeu:
— Minha filha, aqui só há uma majestade: a do gênio, ou seja, Victor Hugo.
Se eu fosse perguntar aos meus jovens ouvintes quantos sabem quem foi Victor Hugo, tenho a impressão de que muitos responderiam negativamente. É o fumo que vai passando…
Reduzido à secura de um esqueleto
… e os meus ossos se secaram como gravetos.
Os gravetos são pequenos desmembramentos de galhos de árvores que caem no chão, secam e são utilizados para acender fogueiras, etc. Assim tornou-se o pecador: dele nada resta a não ser gravetos, isto é, o esqueleto. Esse é o pensamento contido no versículo em questão.
Todos somos destinados a ser gravetos. O homem que pecou e, em determinada época, por orgulho julgou-se grande, sendo eventualmente reverenciado e aclamado pelos outros, pensando que seria lembrado para sempre, este se enganou. Após sua morte ficou reduzido a ossos, como o tronco de uma árvore se acaba em gravetos.
Trata-se de uma comparação extremamente poética e bonita.
Fui ferido como o feno, e o meu coração secou-se, porque até me esqueci de comer o meu pão.
Essa frase indica o auge do exagero literário. É difícil conceber que alguém se esqueça de comer o pão. E isso aconteceu com o pecador devido ao paroxismo de tristeza, de arrependimento, de padecimento e aflição em que se achava.
Pior do que não ter pão é se esquecer de se alimentar dele. É uma situação deveras pungente.
À força de soltar gemidos, fiquei somente com a pele pegada aos ossos.
Versículo muito bonito. Quer dizer, “tantos foram meus gemidos que meu resto de saúde e vitalidade foi devorado pelo pranto. O pesar, a angústia, levaram-me a um ponto onde fiquei reduzido a pele e ossos.”
Imagem que nos incita à redobrada confiança
Tornei-me semelhante ao pelicano no deserto; tornei-me como a coruja no seu albergue.
Com o pelicano sucede algo de belo e um pouco lendário: ele alimenta os filhotes com seu próprio sangue. À míngua de outro sustento, com o bico longo arranha o peito (onde tem as penas mais delicadas), provoca sangria e os filhotes bebem esse sangue. É um símbolo do amor paterno que se sacrifica até o holocausto.
Há um cântico eucarístico — o Adoro Te devote — que compara Nosso Senhor Jesus Cristo ao pelicano, pois Ele, com sua Paixão e Morte, derramou seu Sangue para redimir os homens. Em certo trecho deste hino canta-se: “Pie pellicane, Jesu Domine — “Ó Senhor Jesus, ó piedoso pelicano”.
O Salmista, então, lembra essa ave como quem diz: “Até o pelicano, de que Vós sois o criador, dá o sangue pelos seus filhos famintos. Meu Deus, olhai-me, tenho fome, mas estou numa situação pior. Fiquei reduzido a um estado esquelético e Vós, meu Deus, não me ajudareis? Ó piedoso Pelicano!”
A imagem não encerra apenas beleza literária; ela nos toca até o fundo da alma. Lembro-me de que no alto da porta principal da Igreja do Sagrado Coração de Jesus pode-se ver uma representação dessa figura, indicando aos fiéis a idéia de que eles estão chegando junto ao trono da misericórdia e o Homem-Deus, a quem vão adorar, é como o piedoso pelicano. Que rezem, portanto, com intensa confiança.
Quantas vezes somos como o pássaro solitário no teto!
Velei, e tornei-me como o pássaro solitário no telhado.
Esse versículo me chamou especialmente a atenção quando, a certa altura de minha vida, rompi com o mundo, deixei de freqüentar a sociedade e imergi no movimento católico.
Durante anos eu fora sócio do prestigioso Clube Paulistano, dera-me com as melhores rodas, convivera nos mais seletos ambientes. Agora, passava perto das casas de alto nível, ou junto à porta do Clube (de cuja lista de associados mandara retirar meu nome) e me sentia alheio àquilo tudo. A idéia do pássaro solitário no telhado, distante do que acontece na casa de família onde outrora poderia ter morado numa gaiola ou num poleiro, fazia lembrar minha situação: “Vivi em meios mundanos, mas hoje estou sozinho, rompi com eles”.
Não se trata de uma recordação vã. Trago-a ao presente, para salientar que muitas vezes temos de ser como pássaros solitários no teto, em relação aos ambientes incompatíveis com nossa salvação.
Todo o dia me improperavam os meus inimigos, e os que me louvavam conjuravam-se contra mim.
Isso sucede de modo típico com aquele que se separa do mundo a fim de viver exclusivamente para Deus. Seus antigos amigos passam a persegui-lo, falam mal e caçoam dele. É o caminho pelo qual trilham necessariamente os que se convertem, como já o atestava o pecador penitente do Salmo: ele começou a se emendar e está sendo atacado por aqueles que antes se diziam seus companheiros. Estes agora tramam combinações para caluniá-lo e desacreditá-lo.
Tristeza cruciante
Porque comia a cinza como pão, e misturava a minha bebida com as minhas lágrimas.
Outra linda expressão, falando do homem que prepara para si uma refeição, mas chora enquanto come e bebe. Seu pão é misturado com as cinzas da penitência e o seu copo de água tem o sabor salgado das lágrimas que ele mesmo verteu…
São imagens de uma tristeza capaz de transpassar tudo, dominar o homem que pecou e ainda não se sente inteiramente perdoado por Deus. Ele sabe que ainda falta uma série de sacrifícios a fazer, de renúncias a executar. Então ele chora, seu pão é misturado com a cinza — é uma metáfora da contrição — e sua água tem o sabor das lágrimas.
À vista da tua ira e indignação, porque depois de me teres elevado, me arrojaste.
Quando ele praticava o bem, Deus o elevou, arranjando-lhe boas situações no mundo e — o que tem maior valor — aperfeiçoando sua alma. Ele era virtuoso, vivia na alegria da prática do bem e da amizade de Deus. Mas, pecou, e Deus o jogou no chão. Tornou-se semelhante a uma flor que se achava colocada como condecoração no peito do rei, e foi lançada no lixo, neste se transformando.
Os meus dias passaram como a sombra, e eu sequei-me como o feno.
Quer dizer, os dias de glória se passaram sem deixar vestígio, como a sombra atravessa uma superfície e desaparece sem deixar sinal algum, como se nada tivesse havido. Assim transcorrem os dias do pecador.
Humilhado, o pecador glorifica a Deus
Mas Tu, Senhor, permaneces para sempre, e a memória do teu nome estende-se de geração em geração.
Depois de se humilhar e dizer que sua vida passa como uma sombra, o Salmista começa a glorificar a Deus, e afirma: “Mas Tu, Senhor, permaneces para sempre”.
Quanta beleza nesta exclamação: “Tu, Senhor!”. A palavra “Senhor” parece subir, levada pelos anjos, até os pés de Deus, d’Aquele que é Rei dos reis e Senhor e de todos que exercem algum domínio.
E o pecador o que é? Um sujo, um fraco, um zero. Mas, bateu no peito, suplicando: “Tu és grande e eu tão pequeno, tende pena de mim”. E acrescenta: “A memória do teu nome estende-se de geração em geração”. Quer dizer, até o fim do mundo o nome de Deus será lembrado nesta Terra.
Tu, levantando-Te, terás piedade de Sião, porque é tempo de teres piedade dela e a hora já chegou.
No meu entender, trata-se de um versículo misterioso, dando a impressão de se referir à conversão do povo judeu. Porque há no calendário de Deus uma hora marcada em que os judeus pedem e obtêm perdão. Nesse momento tem início a glorificação do Senhor pelo povo que Ele escolheu.
Porque as suas próprias ruínas são amadas pelos teus servos, e eles olham com ternura aquela terra.
Pode-se dizer que esse trecho se refere à tradição, que é o amor às ruínas da Cristandade. Nós, servos de Maria Santíssima, veneramos essas ruínas e ansiamos pela hora de reerguê-las. Quando se der sua plena restauração, teremos aquela gloriosa era marial prenunciada por São Luís Grignion de Montfort.
(Continua em próximo número)