Na sociedade deve haver uma hierarquia harmônica e proporcionada, a qual se manifesta, entre outras coisas, nos meios de transporte, que precisam ser belos e práticos. As carruagens existentes no Museu Nacional dos Coches, em Portugal, são exemplos característicos dessa verdade.
Tendo sido exposta, de modo muito sumário, a doutrina sobre o prático e o belo, é o momento de comentarmos algumas carruagens1 que se encontram no famoso Museu Nacional dos Coches, em Lisboa.
A parte nobre do corpo do homem deve aparecer mais que a inferior
Logo à primeira vista notamos como o chão dessa carruagem tem uma superfície menor do que a do teto; este se alarga, enquanto o chão é estreito. De maneira que se considerarmos como chão apenas a parte onde está a porta central, ele é minúsculo em comparação com o teto. A razão de ser disto é que, em tudo quanto o homem faz, há uma vantagem para ele em que a parte nobre de seu corpo apareça mais, e a parte inferior apareça muito menos.
Temos, assim, uma arquitetura que, para visar o belo, é altamente prática porque, a partir da parte baixa dos cristais até em cima, o que se vê do homem é a parte nobre, em que ele aparece como um busto. Imaginem que este carro não tivesse na parte de baixo o quadro pintado na porta, nem esses ornatos, mas tudo fosse vidro até embaixo. Perderia enormemente.
Porque ver pernas cruzadas, pés trançados que se agitam nervosamente, tudo isto é muito menos bonito do que ver os bustos elevados, a cabeça alta, do homem ou da dama, em atitude monumental, escultural.
Harmonia entre as diversas partes da carruagem
O carro tem duas partes bem diversas: uma é a que transporta, e outra a que é transportada. A parte que transporta são as rodas e a boleia onde senta o condutor. Atrás, entre as rodas grandes, há uma espécie de chãozinho para ficarem de pé os dois lacaios, de maneira que quando o carro para, imediatamente eles descem e vão correndo abrir as portas e pôr um banquinho embaixo — que já vem dentro do próprio carro —, para que o passageiro não seja obrigado a dar um pulo. Já pensaram como ficaria feio uma rainha idosa dando um pulo de lá para baixo?
Os lacaios, vestidos em geral de damascos, sedas, com chapéus de veludo com penas, já sabem fazer uma cortesia muito grande com a porta aberta; e, não havendo um fidalgo para dar a mão à senhora que desce, o lacaio lhe oferece o braço. Ela desce de um modo elegante, e sai.
Com o carro aberto pode-se olhar dentro e ver as sedas e os damascos nos assentos. Esta é a parte dos que são transportados.
Notem a diferença de construção das rodas da frente com as de trás. As rodas da frente são pequenas e mais robustas. As rodas de trás são mais leves, altas e elegantes. A razão disso está ligada ao equilíbrio e conforto dos passageiros. Desde a boleia até a cabine, de ambos os lados, há umas peças que suspendem e mantêm a carroceria alta, garantindo o equilíbrio entre a parte de trás e a da frente enquanto o carro sobe ou desce, de maneira que os passageiros não sejam jogados para frente ou para trás. Sem dúvida, fica muito elegante. É uma série de providências práticas que são muito belas.
O prático disfarçado pela beleza
Está posta uma situação digna de nota, em que o prático existe desde que se preste atenção, mas é preciso saber vê-lo, porque ele está de tal maneira disfarçado pela beleza, que quem observa não diz: “Oh, que sabedoria prática!”, mas exclama “Oh, que beleza!”
As molas mantêm a cabine numa posição tal que ela não se inclina demais e, sobretudo, não toma solavancos do solo, o que poderia tornar mais desagradável o trajeto.
Até mesmo a altura que vai do piso da carruagem ao calçamento está calculada para a perfeita comodidade das pessoas que se encontram no interior da cabine.
Em geral, cabem seis passageiros nesse carro, dispostos frente a frente nas poltronas. Encostado à porta, há o banquinho utilizado quando as pessoas descem. Estas, conforme o caso, farão o percurso em silêncio e numa atitude de grande solenidade, ou conversando amavelmente. O povo tem o direito de vê-las numa dessas atitudes, e faz parte do dever delas apresentar esta beleza, pois as instituições políticas devem ornar os povos. O mais belo ornato de um povo é a sua instituição política.
As carruagens e a hierarquia existente numa sociedade
Analisemos agora outro veículo que é, sem dúvida, inferior ao anterior. Entretanto, não se pode dizer que seja um carro feio. É um carro bonito. Ele é lindo?
Em comparação com as coisas de hoje, ele é lindo, mas se comparado com o primeiro carro, não; ele é apenas bonito.
Pergunto: Então é uma baixa de nível fazer um carro assim?
Não, porque toda sociedade, qualquer que seja a forma de governo, deve ter uma hierarquia. E é preciso que essa hierarquia seja harmônica; quer dizer, não haja um tombo entre o primeiro carro e depois apenas liteiras. Convém que essa hierarquia seja por degraus. Este não é um carro para rei, mas para príncipes.
Por causa disto, ele é distinto, mas notem que a presença do ouro nele é muito menos abundante: o teto dele é muito menos ornado e de uma cor comum. As formas das janelas são muito menos fantasiosas e mais retilíneas, mas a justaposição de vermelho e ouro é bonita. Esse carro tem tudo o que o outro possui, mas de modo menos excelente.
Essas carruagens são do museu dos coches da corte, mas se houvesse um museu dos coches da burguesia, outro dos coches do clero, etc., simplesmente pelos coches teríamos uma ideia da ordem hierárquica daquela sociedade.
Até as liteiras bem mais modestas, que mães de famílias da classe popular tinham para se fazer transportar, eram interessantes. É a hierarquia social em que cada elo ama o elo de cima, e se faz respeitar pelo elo de baixo. E constitui uma boa organização social.
Vale a pena, a esse respeito, ler os discursos famosos de Pio XII sobre a nobreza e o patriciado romanos, para se ter uma ideia do que se deve pensar a este respeito.
Ósculo entre o belo e o prático
Considerem um pouco o prédio do museu e notem como a sala dos coches é muito bem calculada. Vistas num conjunto, todas as coisas belas apresentam uma beleza maior do que a simples soma delas. E por isso é bonito ver os coches no seu conjunto. Então foi feito um salão bem alto, com uma grande galeria em cima, para que o conhecedor possa percorrer os vários lados e analisar os coches no seu conjunto.
Para guardar bonitos coches tudo foi bem preparado. Quadros a óleo, provavelmente do tempo, representando cenas que se passaram neste ou naquele coche. O teto todo pintado e trabalhado. Tem-se vontade de haver ali no fundo, onde há uma cortina, um órgão para serem tocadas músicas extraordinárias, celebrando o passado de Portugal.
Vamos terminar pelo lado “pedestre”: foi gasto muito com esses coches. Eu pergunto: Não é um elemento de grande valor para o prestígio atual de Portugal? Notem que é uma glória de Portugal. Em geral, as nações que foram colônias se revoltam contra as metrópoles, e rompem à mão armada. Portugal até hoje tem, em Angola e Moçambique, gente que está lutando para que essas nações voltem à união com Portugal. Eu lhes garanto que muitos angolanos, moçambicanos que visitaram esse museu, levando álbuns com visões de coisas destas para Angola e Moçambique, deram o sabor da cultura portuguesa, e concorreram para esta união de Portugal com os seus súditos. Nós, de origem portuguesa, nos alegramos em dizer isto aqui. Mais uma vez o belo e o prático se osculam, se encontram. Era preciso termos chegado a este século descabelado e sujo para que se imaginasse esse dissídio entre o belo e o prático.
(Extraído de conferência de 4/10/1986)
1) As fotografias que ilustram esta seção não são as mesmas comentadas por Dr. Plinio.